domingo, 26 de maio de 2024

Luciane Agnez: ‘Fake News - A tempestade perfeita’

Não há motivos para se espantar com o fato de “notícias falsas” serem propagadas no cenário da tragédia que atinge o Rio Grande do Sul. Na verdade, já era até previsível. A associação entre horror, comoção nacional e negacionismo é a tempestade perfeita para uma inundação daquilo que ficou conhecido por “fake news“. Afinal, há pouco tempo vimos uma infomedia piorando o que já estava ruim com a emergência da Covid-19. Perguntávamos, naquela ocasião, como seria a retomada no pós-pandemia e uma das esperanças era justamente o aprendizado que tiraríamos dela. 

As fake news não são motivo de piada. Por mais que algumas sejam risíveis, a maior parte surge de recortes da realidade, que copiam a narrativa noticiosa e se fantasiam de verdade. Em alguns casos, partem de uma descontextualização ou apelam para convicções pessoais e crenças morais. Esses conteúdos, que circulam pelas redes e chegam facilmente aos nossos sentidos, são apenas a face mais visível de campanhas de desinformação em massa, planejadas estrategicamente e com grande aparato tecnológico e econômico. E isso não tem graça. A velocidade com que boatos, mentiras e conteúdos enganosos são propagadas pela internet se soma ao alcance de milhões de pessoas, ampliando em muito o que já é em si uma catástrofe. No caso das chuvas no Rio Grande do Sul, a desinformação toma tempo e energia das autoridades, que precisam ficar desmentindo, e ainda intimidam doações e outras ajudas que poderiam chegar. 

Também seria um engano pensar que a motivação dessas campanhas é apenas política e ideológica. Esse fenômeno é em grande medida movido pela economia da atenção, ou seja, por aqueles que lucram caçando cliques, monetizando visualizações horrorizadas, rentabilizando a curiosidade mórbida, surfando na maré do negacionismo, da polarização e da pós-verdade. As big techs perceberam que os discursos extremos engajam, pois as pessoas reagem mais frequentemente diante do medo ou da indignação – e reação nas redes sociais é sinônimo de lucro. Assim, é evidente a importância de punir os que promovem campanhas massivas de desinformação e de regulamentar as plataformas digitais, esses grandes conglomerados internacionais que faturam alto com um tráfego (ou seria tráfico?) hediondo de dados.

Muitos questionam o que leva cidadãos a compartilharem conteúdos duvidosos e isso tem sido objeto de diversos estudos ao redor do mundo. Uma das motivações é identificada como “hipótese da novidade”, quando uma pessoa se sente bem em ser a primeira a levar para o seu grupo social uma possível novidade, algo inusitado ou quem sabe até relevante. Há ainda uma ideia comum de que “mal não faz” passar adiante, o que deveria ser o oposto — na dúvida, não se compartilha.

É preciso considerar que, em lugares como o Brasil, a desigualdade é também informacional, com diferentes acessos a informações plurais e de qualidade. Muitas pessoas sequer são capazes de diferenciar informações falsas de verdadeiras, ainda mais quando aquilo vem repassado por um amigo, com apelo a emoções e a valores morais, carregado de um tom alarmista ou conspiratório — e com recursos cada vez mais sofisticados de edição e montagem. Por fim, esses formatos narrativos, que invadem as nossas redes sociais, simplificam os temas mais diversos, às vezes de forma maniqueísta, numa estratégia de “memetização” da realidade, aderindo bem ao escárnio e à “lacração” que marcam as relações nesses ambientes digitais.

Com tudo isso, seria possível até inverter o questionamento inicial: por que os cidadãos não compartilhariam estes conteúdos?

Não podemos esquecer do sentimento geral de descrença nas instituições que acomete grande parte da nossa população, sejam elas o Estado, a imprensa ou até mesmo a ciência, que acabam servindo bem como o “vilão a ser derrotado” para narrativas maniqueístas e conspiratórias.

No caso da ciência, mesmo antes da pandemia ela já se mostrava diante de uma crise que em parte é também de comunicação. As áreas do conhecimento foram assumindo uma extrema especialização, que demandam cada vez mais tradução para o público em geral. A linguagem é difícil e o seu modo de fazer (nos laboratórios e nas universidades) deixa a ciência distante da realidade das pessoas. Além disso, o progresso técnico e científico, ao longo do século 20, não tornou a vida necessariamente mais feliz e pacífica, colocando em xeque as promessas da Modernidade e levantando dúvidas sobre o papel da ciência.

Quando o assunto são as mudanças climáticas, os desafios em se popularizar a ciência são ainda maiores. As consequências das ações humanas sobre o planeta não são observadas de modo imediato, ou seja, elas não são visíveis no momento em que os cientistas as estão anunciando. Existe também um grande desconhecimento sobre como a ciência é feita, como se chega a determinadas conclusões, como são medidos os impactos e como se dá a compreensão sobre alternativas. Além disso, mudanças de comportamento e das formas de produzir e distribuir riquezas estão submetidas a fortes interesses econômicos e consequentemente políticos.

Diante deste cenário, a imprensa exerce um papel fundamental para a popularização da ciência, mas no caso das questões ambientais os veículos brasileiros demoraram a ter uma cobertura regular e especializada. Em compensação, o noticiário se torna extensivo em situações de desastre ambiental, como quando ocorreram os rompimentos das barragens em Mariana e em Brumadinho, a contaminação por Césio 137 em Goiás, o naufrágio da plataforma P-36 no Rio de Janeiro, o vazamento de óleo no litoral nordestino ou agora, com as enchentes no Rio Grande do Sul.

A ruptura da normalidade provocada por essas tragédias e crimes ambientais tem valor noticioso, disso não se pode duvidar. No entanto, há grande risco do jornalismo se pautar pelo drama humano, até de modo sensacionalista, esvaziando as questões mais complexas — políticas, econômicas e científicas. Em momentos assim, um cientista pode até parecer um grilo falante, enquanto pessoas estão morrendo e outras tantas precisam recomeçar suas vidas. E não devemos ser ingênuos: os veículos jornalísticos também comercializam suas audiências e estão disputando a atenção nas redes e no espaço público, em busca de cliques e visualizações.

Para que as organizações de mídia alcancem esse desempenho e o fato relevante chegue ao conhecimento público, são os jornalistas profissionais que, mais uma vez, estão literalmente no meio da lama, ouvindo e vendo as vítimas da tragédia no Rio Grande do Sul, com dificuldades de locomoção e acesso, fazendo longas jornadas de cobertura, sentindo na pele o drama para contar, com recursos técnicos e éticos, o que de fato está acontecendo. Sem falar do importante trabalho dos projetos que fazem a verificação de conteúdos enganosos que circulam pela internet, ainda que seja como enxugar gelo: desmente ou contextualiza uma fake news enquanto tantas outras aparecem.

Faz parte do socorro às vítimas esclarecer as causas, informar sobre alternativas, buscar soluções em conjunto, para salvar as vidas de hoje e as de amanhã. A divulgação científica, não restrita a situações de catástrofes, tem uma importância ainda maior no âmbito educacional, cívico e de mobilização social. Além de promover a alfabetização científica, ela também contribui para o engajamento público com questões importantes, como as mudanças climáticas ou temas de saúde pública e avanços tecnológicos, capacitando os indivíduos para tomarem decisões mais bem informados e para participarem ativamente do debate público.

Do contrário, o que acontece depois que o pico da catástrofe passa? Por parte do público, mesmo que muito mobilizado, é comum ocorrer uma espécie de fadiga da compaixão, ou seja, as pessoas cansam de ficar vendo tantas notícias ruins, ou se anestesiam um pouco e aquele cenário vai entrando para a paisagem. No caso dos que embarcarem no mar da desinformação, talvez não ocorra nem o alcance maior da realidade. O resultado disso, a gente já deveria conhecer: atraso em se tomar medidas preventivas, comportamentos equivocados e possivelmente novas vítimas.

Voltando ao início, é melhor dizer: há motivos sim para se espantar com a avalanche de notícias falsas sobre a catástrofe que atinge o Sul do Brasil. E o principal deles é a suspeita de que aprendemos pouco com a pandemia.

 

¨      Além das inundações, uma enxurrada de fake News. Por Rui Martins

Tão logo se confirmou a situação de calamidade pública com as inundações se propagando por mais de 200 municípios gaúchos, surgiu uma enxurrada virtual de fake news despejada na Internet para circularem pelas redes sociais. Os boatos e mentiras com o objetivo de atingirem o governo federal chegaram a criar problemas para o atendimento, socorro e envio de mantimentos para os sinistrados.

Algumas pessoas e alguns grupos foram denunciados pela imprensa como criadores e distribuidores dessas fake news, mas tornara-se impossível conter seu fluxo, pois eram (e ainda são) replicadas por centenas de canais e milhares de redes sociais, contando com o apoio de grupos políticos e religiosos. Eu mesmo recebi fakes de um pastor e de militantes da extrema-direita bolsonarista.

Muita gente deve ter pensado, como eu, de ir coletando essas mensagens mentirosas para publicar um repertório das mais frequentes com seus responsáveis pela vasta propagação. Um paciente e quase impossível trabalho de pesquisa individual nas redes sociais.

Ora, o Laboratório de Estudos da Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro poupou esse trabalho a todos os pesquisadores e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, publicou no começo desta semana o primeiro resultado de suas pesquisas universitárias, orientadas pelas professoras Débora Salles e Marie Santini.

Os métodos de análise anunciados são o mapeamento qualitativo de influenciadores e narrativas de desinformação multiplataforma e análise manual de anúncios sensíveis e não sensíveis no Meta Ads, do Facebook e Instagram.

De acordo com a professora Marie Santini, “as narrativas dominantes são produzidas por influenciadores com grande número de seguidores e capacidade de angariar engajamentos… Eles têm grande conhecimento de como explorar emoções negativas”.

Além da desinformação, foram detectados 351 golpes explorando a tragédia, manipulada para fins políticos e econômicos. Assim “influenciadores, sites e políticos de extrema-direita têm utilizado a comoção para se autopromover e espalhar desinformação com o intuito de atacar e descredibilizar o governo”.

Os objetivos dessa fake news são afirmar que o atendimento do governo federal não tem sido suficiente, não haver ligação entre os eventos extremos e as mudanças climáticas, incluir a tragédia nas pautas morais com teorias de conspiração, aumentar a importância do papel da oposição na resposta à crise e se beneficiar da catástrofe se autopromovendo, fazendo pedidos de doação e utilizando-se de fraudes.

Na introdução à pesquisa da UFRJ, são também citadas reportagens investigativas e de checagem que nos direcionam à plataforma Aos Fatos, dedicada às campanhas de desinformação. Algumas das mais vistas desinformações tratam de doações descartadas, usando vídeo com cenas falsamente colhidas em Mathias Velho, Canoas. Na verdade, as cenas foram filmadas em setembro do ano passado em Encantado, quando empilhadeiras organizavam os donativos para aumentar o espaço nos armazéns.

Outra afirma que a TV SBT apagou uma reportagem mostrando caminhões com donativos sendo multados. Na verdade, foi um caso isolado e não se tratava de uma frota de caminhões. Um caminhão foi multado automaticamente por excesso de peso, porém a multa, e outros seis casos de multas ocorridos na pesagem, foram anuladas.

Outra mentira espalhada foi a de que o Ibama teria apreendido retroescavadeiras utilizadas para limpar estradas entre os municípios de Muçum e Vespasiano, no Rio Grande do Sul. O Ibama informou não fazer esse tipo de trabalho e que, diante das inundações, nem haveria condições para limpeza de estradas.

De uma maneira geral, ainda de acordo com Aos Fatos, ocorre o uso de cenas fora de contexto, gravadas em outros lugares, como China e México, e em épocas diferentes. Ou a divulgação de exigências falsas como a apresentação de documentos pelos proprietários de barcos e jet-skis utilizados pelos voluntários. Outras fakes objetivam criar pânico, como a notícia da descoberta de 300 corpos em Canoas, ou visam comprometer o governo federal com acusações de não estar prestando socorros.

Assim, o empresário Luciano Hang teria cedido mais aeronaves do que as Forças Armadas no resgate de vítimas das inundações. Um vídeo antigo é utilizado para enganar, como se Lula tivesse sido vaiado nestes dias no RS. Há ainda a alegação do governo federal ter patrocinado o show da Madonna com dinheiro destinado aos gaúchos. Ou que tudo foi um castigo de Deus, diante de tantos cultos africanos e candomblés.

·        Alguns desinformadores identificados

Talvez o mais importante seja o coach e influencer Pablo Marçal, com mais de oito milhões de seguidores só no Instagram. Num de seus fakes mais vistos, Pablo afirmou ser necessário notas fiscais para as doações. Seu fake diz textualmente que “a Secretaria da Fazenda do RS está barrando os caminhões de doações por falta de nota fiscal.”

Marçal, o senador Cleitinho (Republicanos-MG) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) formam o trio mais ativo na distribuição de falsas informações, já denunciados pelo ministro da Justiça para a Polícia Federal. Outro criador e disseminador de mentiras é Nego Di. É dele a falsa informação da exigência de brevê de piloto para os voluntários que desejam ajudar com barco ou jet-ski. E de que a Polícia Federal estava bloqueando os veículos com doações, desinformação já desmentida.

A influenciadora Michelle Dias Abreu divulgou vídeo culpando religiões de matriz africana pela tragédia no Rio Grande do Sul. Em outras palavras, o vídeo, que viralizou no YouTube, dá o recado de ter sido um castigo de Deus. O Ministério Público de Minas Gerais indiciou a mineira de 43 anos pelo crime de intolerância religiosa. Depois de ter visto o impacto de seu vídeo no Instagram, com 4 milhões de curtidas, Michele gravou depressa outro vídeo pedindo textualmente “perdão”.

Para o advogado-geral da União, Jorge Messias, as notícias falsas a respeito da situação de calamidade no RS são uma estratégia de desinformação para obter ganhos políticos e eleitorais, além de ganho financeiro, pois muitos canais são monetizados.

Paulo Pimenta, agora ministro de Estado da Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul definiu a desinformação sobre a tragédia no RS como tática da extrema-direita para destruir o Estado, para o povo considerar o Estado ineficiente e que as políticas públicas não funcionam. O ministro quer propor políticas públicas e programas de recuperação dentro de uma lógica sustentável, socioambiental e que se discutam e aprofundem as razões pelas quais aconteceu a tragédia.

 

Fonte: Observatório da Imprensa

 

Nenhum comentário: