Luciane Agnez: ‘Fake News - A tempestade
perfeita’
Não há motivos para se
espantar com o fato de “notícias falsas” serem propagadas no cenário da
tragédia que atinge o Rio Grande do Sul. Na verdade, já era até previsível. A
associação entre horror, comoção nacional e negacionismo é a tempestade
perfeita para uma inundação daquilo que ficou conhecido por “fake news“.
Afinal, há pouco tempo vimos uma infomedia piorando o que já estava ruim com a
emergência da Covid-19. Perguntávamos, naquela ocasião, como seria a retomada
no pós-pandemia e uma das esperanças era justamente o aprendizado que
tiraríamos dela.
As fake news não
são motivo de piada. Por mais que algumas sejam risíveis, a maior parte surge
de recortes da realidade, que copiam a narrativa noticiosa e se fantasiam de
verdade. Em alguns casos, partem de uma descontextualização ou apelam para
convicções pessoais e crenças morais. Esses conteúdos, que circulam pelas redes
e chegam facilmente aos nossos sentidos, são apenas a face mais visível de
campanhas de desinformação em massa, planejadas estrategicamente e com grande
aparato tecnológico e econômico. E isso não tem graça. A velocidade com que
boatos, mentiras e conteúdos enganosos são propagadas pela internet se soma ao
alcance de milhões de pessoas, ampliando em muito o que já é em si uma
catástrofe. No caso das chuvas no Rio Grande do Sul, a desinformação toma tempo
e energia das autoridades, que precisam ficar desmentindo, e ainda intimidam
doações e outras ajudas que poderiam chegar.
Também seria um engano
pensar que a motivação dessas campanhas é apenas política e ideológica. Esse
fenômeno é em grande medida movido pela economia da atenção, ou seja, por
aqueles que lucram caçando cliques, monetizando visualizações horrorizadas,
rentabilizando a curiosidade mórbida, surfando na maré do negacionismo, da
polarização e da pós-verdade. As big techs perceberam que os
discursos extremos engajam, pois as pessoas reagem mais frequentemente diante
do medo ou da indignação – e reação nas redes sociais é sinônimo de lucro.
Assim, é evidente a importância de punir os que promovem campanhas massivas de
desinformação e de regulamentar as plataformas digitais, esses grandes
conglomerados internacionais que faturam alto com um tráfego (ou seria tráfico?)
hediondo de dados.
Muitos questionam o
que leva cidadãos a compartilharem conteúdos duvidosos e isso tem sido objeto
de diversos estudos ao redor do mundo. Uma das motivações é identificada como
“hipótese da novidade”, quando uma pessoa se sente bem em ser a primeira a levar
para o seu grupo social uma possível novidade, algo inusitado ou quem sabe até
relevante. Há ainda uma ideia comum de que “mal não faz” passar adiante, o que
deveria ser o oposto — na dúvida, não se compartilha.
É preciso considerar
que, em lugares como o Brasil, a desigualdade é também informacional, com
diferentes acessos a informações plurais e de qualidade. Muitas pessoas sequer
são capazes de diferenciar informações falsas de verdadeiras, ainda mais quando
aquilo vem repassado por um amigo, com apelo a emoções e a valores morais,
carregado de um tom alarmista ou conspiratório — e com recursos cada vez mais
sofisticados de edição e montagem. Por fim, esses formatos narrativos, que
invadem as nossas redes sociais, simplificam os temas mais diversos, às vezes
de forma maniqueísta, numa estratégia de “memetização” da realidade, aderindo
bem ao escárnio e à “lacração” que marcam as relações nesses ambientes
digitais.
Com tudo isso, seria
possível até inverter o questionamento inicial: por que os cidadãos não
compartilhariam estes conteúdos?
Não podemos esquecer
do sentimento geral de descrença nas instituições que acomete grande parte da
nossa população, sejam elas o Estado, a imprensa ou até mesmo a ciência, que
acabam servindo bem como o “vilão a ser derrotado” para narrativas maniqueístas
e conspiratórias.
No caso da ciência,
mesmo antes da pandemia ela já se mostrava diante de uma crise que em parte é
também de comunicação. As áreas do conhecimento foram assumindo uma extrema
especialização, que demandam cada vez mais tradução para o público em geral. A
linguagem é difícil e o seu modo de fazer (nos laboratórios e nas
universidades) deixa a ciência distante da realidade das pessoas. Além disso, o
progresso técnico e científico, ao longo do século 20, não tornou a vida
necessariamente mais feliz e pacífica, colocando em xeque as promessas da
Modernidade e levantando dúvidas sobre o papel da ciência.
Quando o assunto são
as mudanças climáticas, os desafios em se popularizar a ciência são ainda
maiores. As consequências das ações humanas sobre o planeta não são observadas
de modo imediato, ou seja, elas não são visíveis no momento em que os
cientistas as estão anunciando. Existe também um grande desconhecimento sobre
como a ciência é feita, como se chega a determinadas conclusões, como são
medidos os impactos e como se dá a compreensão sobre alternativas. Além disso,
mudanças de comportamento e das formas de produzir e distribuir riquezas estão
submetidas a fortes interesses econômicos e consequentemente políticos.
Diante deste cenário,
a imprensa exerce um papel fundamental para a popularização da ciência, mas no
caso das questões ambientais os veículos brasileiros demoraram a ter uma
cobertura regular e especializada. Em compensação, o noticiário se torna
extensivo em situações de desastre ambiental, como quando ocorreram os
rompimentos das barragens em Mariana e em Brumadinho, a contaminação por Césio
137 em Goiás, o naufrágio da plataforma P-36 no Rio de Janeiro, o vazamento de
óleo no litoral nordestino ou agora, com as enchentes no Rio Grande do Sul.
A ruptura da
normalidade provocada por essas tragédias e crimes ambientais tem valor
noticioso, disso não se pode duvidar. No entanto, há grande risco do jornalismo
se pautar pelo drama humano, até de modo sensacionalista, esvaziando as
questões mais complexas — políticas, econômicas e científicas. Em momentos
assim, um cientista pode até parecer um grilo falante, enquanto pessoas estão
morrendo e outras tantas precisam recomeçar suas vidas. E não devemos ser
ingênuos: os veículos jornalísticos também comercializam suas audiências e
estão disputando a atenção nas redes e no espaço público, em busca de cliques e
visualizações.
Para que as
organizações de mídia alcancem esse desempenho e o fato relevante chegue ao
conhecimento público, são os jornalistas profissionais que, mais uma vez, estão
literalmente no meio da lama, ouvindo e vendo as vítimas da tragédia no Rio
Grande do Sul, com dificuldades de locomoção e acesso, fazendo longas jornadas
de cobertura, sentindo na pele o drama para contar, com recursos técnicos e
éticos, o que de fato está acontecendo. Sem falar do importante trabalho dos
projetos que fazem a verificação de conteúdos enganosos que circulam pela
internet, ainda que seja como enxugar gelo: desmente ou contextualiza uma fake
news enquanto tantas outras aparecem.
Faz parte do socorro
às vítimas esclarecer as causas, informar sobre alternativas, buscar soluções
em conjunto, para salvar as vidas de hoje e as de amanhã. A divulgação
científica, não restrita a situações de catástrofes, tem uma importância ainda
maior no âmbito educacional, cívico e de mobilização social. Além de promover a
alfabetização científica, ela também contribui para o engajamento público com
questões importantes, como as mudanças climáticas ou temas de saúde pública e
avanços tecnológicos, capacitando os indivíduos para tomarem decisões mais bem
informados e para participarem ativamente do debate público.
Do contrário, o que
acontece depois que o pico da catástrofe passa? Por parte do público, mesmo que
muito mobilizado, é comum ocorrer uma espécie de fadiga da compaixão, ou seja,
as pessoas cansam de ficar vendo tantas notícias ruins, ou se anestesiam um
pouco e aquele cenário vai entrando para a paisagem. No caso dos que embarcarem
no mar da desinformação, talvez não ocorra nem o alcance maior da realidade. O
resultado disso, a gente já deveria conhecer: atraso em se tomar medidas
preventivas, comportamentos equivocados e possivelmente novas vítimas.
Voltando ao início, é
melhor dizer: há motivos sim para se espantar com a avalanche de notícias
falsas sobre a catástrofe que atinge o Sul do Brasil. E o principal deles é a
suspeita de que aprendemos pouco com a pandemia.
¨
Além das inundações,
uma enxurrada de fake News. Por Rui Martins
Tão logo se confirmou
a situação de calamidade pública com as inundações se propagando por mais de
200 municípios gaúchos, surgiu uma enxurrada virtual de fake news despejada
na Internet para circularem pelas redes sociais. Os boatos e mentiras com o
objetivo de atingirem o governo federal chegaram a criar problemas para o
atendimento, socorro e envio de mantimentos para os sinistrados.
Algumas pessoas e
alguns grupos foram denunciados pela imprensa como criadores e distribuidores
dessas fake news, mas tornara-se impossível conter seu fluxo,
pois eram (e ainda são) replicadas por centenas de canais e milhares de redes
sociais, contando com o apoio de grupos políticos e religiosos. Eu mesmo recebi
fakes de um pastor e de militantes da extrema-direita bolsonarista.
Muita gente deve ter
pensado, como eu, de ir coletando essas mensagens mentirosas para publicar um
repertório das mais frequentes com seus responsáveis pela vasta propagação. Um
paciente e quase impossível trabalho de pesquisa individual nas redes sociais.
Ora, o Laboratório de
Estudos da Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
poupou esse trabalho a todos os pesquisadores e o jornal Zero Hora,
de Porto Alegre, publicou no começo desta semana o primeiro resultado de suas
pesquisas universitárias, orientadas pelas professoras Débora Salles e Marie
Santini.
Os métodos de análise
anunciados são o mapeamento qualitativo de influenciadores e narrativas de
desinformação multiplataforma e análise manual de anúncios sensíveis e não
sensíveis no Meta Ads, do Facebook e Instagram.
De acordo com a
professora Marie Santini, “as narrativas dominantes são produzidas por
influenciadores com grande número de seguidores e capacidade de angariar
engajamentos… Eles têm grande conhecimento de como explorar emoções negativas”.
Além da desinformação,
foram detectados 351 golpes explorando a tragédia, manipulada para fins
políticos e econômicos. Assim “influenciadores, sites e políticos de
extrema-direita têm utilizado a comoção para se autopromover e espalhar
desinformação com o intuito de atacar e descredibilizar o governo”.
Os objetivos
dessa fake news são afirmar que o atendimento do governo
federal não tem sido suficiente, não haver ligação entre os eventos extremos e
as mudanças climáticas, incluir a tragédia nas pautas morais com teorias de
conspiração, aumentar a importância do papel da oposição na resposta à crise e
se beneficiar da catástrofe se autopromovendo, fazendo pedidos de doação e
utilizando-se de fraudes.
Na introdução à
pesquisa da UFRJ, são também citadas reportagens investigativas e de checagem
que nos direcionam à plataforma Aos Fatos, dedicada às campanhas de
desinformação. Algumas das mais vistas desinformações tratam de doações
descartadas, usando vídeo com cenas falsamente colhidas em Mathias Velho,
Canoas. Na verdade, as cenas foram filmadas em setembro do ano passado em
Encantado, quando empilhadeiras organizavam os donativos para aumentar o espaço
nos armazéns.
Outra afirma que a TV
SBT apagou uma reportagem mostrando caminhões com donativos sendo multados. Na
verdade, foi um caso isolado e não se tratava de uma frota de caminhões. Um
caminhão foi multado automaticamente por excesso de peso, porém a multa, e outros
seis casos de multas ocorridos na pesagem, foram anuladas.
Outra mentira
espalhada foi a de que o Ibama teria apreendido retroescavadeiras utilizadas
para limpar estradas entre os municípios de Muçum e Vespasiano, no Rio Grande
do Sul. O Ibama informou não fazer esse tipo de trabalho e que, diante das
inundações, nem haveria condições para limpeza de estradas.
De uma maneira geral,
ainda de acordo com Aos Fatos, ocorre o uso de cenas fora de contexto, gravadas
em outros lugares, como China e México, e em épocas diferentes. Ou a divulgação
de exigências falsas como a apresentação de documentos pelos proprietários de
barcos e jet-skis utilizados pelos voluntários. Outras fakes objetivam criar
pânico, como a notícia da descoberta de 300 corpos em Canoas, ou visam
comprometer o governo federal com acusações de não estar prestando socorros.
Assim, o empresário
Luciano Hang teria cedido mais aeronaves do que as Forças Armadas no resgate de
vítimas das inundações. Um vídeo antigo é utilizado para enganar, como se Lula
tivesse sido vaiado nestes dias no RS. Há ainda a alegação do governo federal
ter patrocinado o show da Madonna com dinheiro destinado aos gaúchos. Ou que
tudo foi um castigo de Deus, diante de tantos cultos africanos e candomblés.
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Alguns desinformadores
identificados
Talvez o mais
importante seja o coach e influencer Pablo Marçal, com mais de oito milhões de
seguidores só no Instagram. Num de seus fakes mais vistos, Pablo afirmou ser
necessário notas fiscais para as doações. Seu fake diz textualmente que “a
Secretaria da Fazenda do RS está barrando os caminhões de doações por falta de
nota fiscal.”
Marçal, o senador
Cleitinho (Republicanos-MG) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP)
formam o trio mais ativo na distribuição de falsas informações, já denunciados
pelo ministro da Justiça para a Polícia Federal. Outro criador e disseminador
de mentiras é Nego Di. É dele a falsa informação da exigência de brevê de
piloto para os voluntários que desejam ajudar com barco ou jet-ski. E de que a
Polícia Federal estava bloqueando os veículos com doações, desinformação já
desmentida.
A influenciadora
Michelle Dias Abreu divulgou vídeo culpando religiões de matriz africana pela
tragédia no Rio Grande do Sul. Em outras palavras, o vídeo, que viralizou no
YouTube, dá o recado de ter sido um castigo de Deus. O Ministério Público de
Minas Gerais indiciou a mineira de 43 anos pelo crime de intolerância
religiosa. Depois de ter visto o impacto de seu vídeo no Instagram, com 4
milhões de curtidas, Michele gravou depressa outro vídeo pedindo textualmente
“perdão”.
Para o advogado-geral
da União, Jorge Messias, as notícias falsas a respeito da situação de
calamidade no RS são uma estratégia de desinformação para obter ganhos
políticos e eleitorais, além de ganho financeiro, pois muitos canais são
monetizados.
Paulo Pimenta, agora
ministro de Estado da Secretaria Extraordinária da Presidência da República
para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul definiu a desinformação sobre a
tragédia no RS como tática da extrema-direita para destruir o Estado, para o povo
considerar o Estado ineficiente e que as políticas públicas não funcionam. O
ministro quer propor políticas públicas e programas de recuperação dentro de
uma lógica sustentável, socioambiental e que se discutam e aprofundem as razões
pelas quais aconteceu a tragédia.
Fonte: Observatório da
Imprensa
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