Leonardo Lucena: ‘Tragédia no RS mostra que
o desastre da esquerda e da direita foi não dar funções sociais às cidades
A tragédia
climático-governamental no Rio Grande do Sul mostra que políticos da esquerda e
da direita têm como um de seus principais desafios dar funções sociais às
cidades brasileiras. Por que representantes dos dois campos políticos
dissociaram trabalho e serviço público?
Bem-estar social não
se mede por imóveis. Muitos espaços urbanos foram construídos com
representantes do sistema político econômico tendo o pensamento reducionista de
fazer uma “doméstico-individualização” da qualidade de vida, como se ela fosse
garantida apenas no interior de um lar doméstico, de uma moradia, e não fora de
casas e apartamentos.
O nível do bem-estar
social também deve ser medido pelo grau de ocupação nas ruas. Brasileiros de
zonas urbanas moram em “cidades-fantasmas” ou com poucos locais seguros de
convivência entre as pessoas, como praça, biblioteca, lugar de prática
esportiva e atividade artística. Basta comparar com cidades de países
desenvolvidos.
Nem o concreto
(habitações, calçadas, etc.) nem o meio ambiente são vistos para terem um
sentido social, o que fica mais evidente em catástrofe climática. O prejuízo
não ocorre somente contra fauna e flora, mas também para setores como saúde,
educação, mobilidade, segurança e lazer. Os democratas brasileiros ignoraram o
planejamento urbano.
O processo de
urbanização brasileiro vem pelo menos desde o século 19, por volta de
1870-1875. Apenas no século 21 é que é o Brasil passou a ter uma legislação
voltada para o saneamento, com a Lei 11.445/2007, alterada pela Lei
14.026/2020, um avanço, porém tardio por razões históricas e políticas em um
país que, atualmente, tem 100 milhões de pessoas não têm acesso a redes de
esgoto e 35 milhões têm falta de água potável, de acordo com números publicados
pelo Instituto Trata Brasil em 2023 e divulgados com base nos indicadores de
2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.
A expressão
“saneamento básico” está prevista na Constituição Federal no artigo 21, inciso
XX, sobre a competência da União para “instituir diretrizes para o
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos”.
De acordo com o artigo
23 (IX), União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem colocar em prática
“programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e
de saneamento básico”. No art. 200, IV,
o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa “participar da formulação da política e
da execução das ações de saneamento básico”.
• Serviço público e população em situação
de rua
A realidade é
preocupante. Além das estatísticas do Instituto Trata Brasil, outra pesquisa,
divulgada nesta terça (7) pela Fundação João Pinheiro (dados de 2022), mostrou
que, no país, quatro em cada 10 domicílios (41,2%) nas cidades têm problemas
como falta de saneamento básico, banheiro, armazenamento de água, energia e
insegurança fundiária. Em 26 milhões de residências faltam alguns desses
serviços básicos e previstos na lei.
O déficit habitacional
do Brasil foi de 6,2 milhões de domicílios em 2022 (8%) do total de habitações
ocupadas no país, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (PnadC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
publicada no último dia 24 de abril. Houve alta de 4% no total de déficit de
domicílios em comparação com 2019 (5.964.993).
O Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) informou, em setembro do ano passado, que o
Brasil teve aumento de 935,31% na população de rua – eram 21.934 em 2013 e
227.087 mil até agosto de 2023.
Os números preocupam.
E, durante enchentes, como essas no Rio Grande do Sul, ocorre de forma mais
acelerada a degradação física, psicológica, em pessoas que nem aparecem nos
“mapas” do sistema político para que, de alguma forma, saibam quais os melhores
caminhos a percorrer para ter o ‘direito supremo’: viver e ser feliz.
• Por que Deus permitiu a enchente? A
pergunta que pede resposta. Por Jung Mo Sung
"Dizer que o caos
das enchentes não é punição de Deus, mas fruto da crise ambiental gerada pelo
moderno, capitalista e comunista, e das más administrações dos governos é um
primeiro passo para sairmos desse erro. Mas esse argumento “secular” não resolve
a parte teológica da pergunta sobre Deus todo-poderoso e o amor. Por que Deus
bom permite isso?", escreve Jung Mo Sung, graduado em Filosofia e em
Teologia, doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São
Paulo e pós-doutor em Educação pela Univiversidade Metodista de Piracicaba. É
professor titular da Universidade Metodista de São Paulo, no PPG em Ciências da
Religião.
<><> Eis o
artigo.
O caos, destruição e
mortes nas enchentes no Rio Grande do Sul (sem esquecer também o que aconteceu
na China, Afeganistão, Quênia, Tanzânia...) trazem às pessoas que creem que
existe um ser sobrenatural, Deus, ou uma energia ou lei, por exemplo, carma, que
move e controla o universo, uma pergunta filosófico-teológica fundamental: por
que “Deus” permite que pessoas boas sofram assim? Pode Deus ser insensível ou
injusto? Se Deus é bom, esses sofrimentos seriam provas da impotência de Deus
e, portanto, não ser deus de verdade, mas apenas uma projeção do desejo humano?
Nos cursos ou retiros
espirituais, é muito comum usar a beleza e a grandeza do universo para “provar”
que Deus existe. Mas a vida humana não é feita só de beleza ou de momentos
espirituais positivos, mas também cheia de maldade, sofrimentos injustos e opressões.
E muitas vezes, como é o caso das enchentes, esses sofrimentos veem das
consequências de ações humanas, muitas vezes inconscientes e não intencionais,
e da própria dinâmica da natureza. Isto é, a vida é cheia de contradições e
conflitos de interpretações.
Nesses momentos, a
questão da teodiceia – justificar Deus frente aos sofrimentos injustos – é
importante para as comunidades religiosas, especialmente cristãs que aprendem
que Deus é justo, bom, amoroso e todo-poderoso. Quais são as respostas
biblicamente adequadas e compreensíveis e plausíveis para as comunidades do
nosso tempo?
No artigo anterior, “O
caos da enchente, para que serve a religião?”, tratei do papel da religião na
criação e na manutenção da ordem contra o medo e a insegurança do caos;
especialmente em época de crise compreendido como fruto da desobediência das
leis de Deus ou do universo. E, nesse processo da dialética entre a ordem
versus o caos, que aparece o argumento da punição de Deus como um processo
salvífico, da reconstrução da ordem ou do “equilíbrio”. Toda teologia ou
religião que está fundada na ideia de um Deus todo-poderoso (bom ou mal, não
importa) implica em exigências sacrificiais e punições.
Nesse tipo de
teologia, se o sofrimento é fruto da punição de Deus, essa dor não pode ser
injusta, mas sim merecida. Mesmo que as pessoas não saibam quais pecados
cometeram, pois Deus sabe.
Dizer que o caos das
enchentes não é punição de Deus, mas fruto da crise ambiental gerada pelo
moderno, capitalista e comunista, e das más administrações dos governos é um
primeiro passo para sairmos desse erro. Mas esse argumento “secular” não
resolve a parte teológica da pergunta sobre Deus todo-poderoso e o amor. Por
que Deus bom permite isso? Focar plenamente nas causas ambientais e sociais (a
crítica ao sistema capitalista) atende às demandas das pessoas e grupos que não
têm preocupações teológicas ou de fé. Mas grupos religiosos precisam também de
respostas teológicas.
Um caminho de resposta
a oferecer é que, na revelação bíblica, Deus é todo-poderoso para criar o
universo e para ressuscitar as pessoas da morte, mas por seu amor à humanidade,
ao entrar na história, Deus se abdicou do poder divino (cf Fl 2,6-7). Isso porque
a relação de amor pressupõe a liberdade. Poder exige obediência, o amor
pressupõe a liberdade. A história da humanidade é do âmbito da liberdade, mesmo
que não seja da liberdade plena, pois tudo que humano é relativo.
No âmbito da religião,
do sagrado e profano, o ser humano pode encontrar segurança da ordem, frutos da
obediência às leis. No âmbito da fé, que aprendemos com Jesus, podemos
encontrar a coragem, força para superar o medo, e vivermos o amor solidário uns
outros na comunidade como expressão mais plena possível de liberdade humana.
Como diz apóstolo Paulo, onde está o Espírito Santo, espírito de amor, está a
liberdade. (2Cor 3,17)
Não se pode amar a
Deus e a outras pessoas sem vivermos a liberdade. E como não é possível
vivermos a liberdade sem a possibilidade do mal (eticamente falando) e do
pecado, Deus fez o mundo tal que o pecado é uma possibilidade inevitável. Por
isso, Comblin retomava frequentemente um texto bíblico muito citado por Juan
Luis Segundo: “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e
abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3,20) e
disse: “se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação
fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar” (COMBLIN, J. Cristãos rumo
ao século XXI: nova caminhada de libertação, p. 66).
• A política ignora a mudança climática
Há politização demais
e política de menos na forma como o Brasil está lidando com as mudanças
climáticas e seus efeitos nos desastres naturais cada vez mais intensos e
frequentes – como é o caso da tragédia no Rio Grande do Sul, a mais grave do
gênero enfrentada pelo País nos últimos anos e possivelmente o prenúncio de
muitas outras que virão no futuro próximo. Da esquerda à direita, do governo
federal aos governadores e prefeitos, do Congresso Nacional aos legisladores
estaduais e municipais, o fato é que a agenda climática e ambiental sempre foi,
e segue sendo, um tema lateral na política brasileira. A constatação se torna
ainda mais relevante quando se assiste tanto à descoordenação entre as
diferentes lideranças que deveriam agir de maneira concertada quanto ao
tiroteio, explícito ou velado, em que cada grupo, partido ou – vá lá –
ideologia busca transferir culpas pela tragédia.
Enquanto isso, a
boiada tenta passar. No Congresso, apesar da recente aprovação do projeto de
lei que cria diretrizes para a formulação de planos de adaptação às mudanças
climáticas, tramitam 25 projetos que agridem normas ambientais. Um deles
regulamenta um termo autodeclaratório de que o empreendimento está de acordo
com as regras exigidas, além de estipular prazos máximos para o andamento do
processo de licenciamento ambiental. Se é fato que a desburocratização dos
procedimentos é uma necessidade para destravar projetos econômicos, também é
verdade que o projeto de lei pode criar uma espécie de “autolicenciamento” e
inibir a análise de casos mais complexos. Há mais: um projeto propõe reduzir a
reserva legal na Amazônia, enquanto outro elimina a proteção de campos nativos;
mais um admite a exploração mineral em unidades de conservação, enquanto outro
anistia desmatadores; um esvazia o poder de fiscalização do Ibama, enquanto
outro flexibiliza normas de regularização fundiária.
O problema vai além da
Câmara e do Senado. Vozes lulopetistas e bolsonaristas se apressaram a colocar
o dedo em riste contra o governador Eduardo Leite (PSDB), acusando-o de
favorecer a alteração de 450 pontos do Código Florestal gaúcho. Não faltou
oportunismo na crítica, afinal decerto tais mudanças não provocaram as
enchentes. Mas convém não ignorar o fato de que as alterações não apenas são
questionáveis quando se pensa nos efeitos ambientais de longo prazo, como nem
sequer seriam notadas não fosse a tragédia trazida pelas chuvas. Por outro
lado, enquanto as gralhas bolsonaristas gritam, resta lembrar a sucessão de
retrocessos promovidos pelo governo Bolsonaro – aquele que enxergava na
floresta em pé um inimigo e o aquecimento do planeta um delírio esquerdista.
O desenvolvimentismo
lulopetista não fica atrás. Apesar do verniz ambientalista do terceiro mandato,
o presidente Lula da Silva, o PT e a esquerda jamais deram grande atenção à
pauta do clima e do meio ambiente. Essa pauta foi historicamente deixada em segundo
plano, ora como uma agenda restrita a “ongueiros” amazônicos e ambientalistas
radicais, ora como se fosse uma preocupação típica de liberais. Nos governos
petistas, houve fartos exemplos de projetos grandiosos que não levaram em conta
os impactos climáticos já previstos àquele tempo – esta semana, por exemplo,
uma pesquisadora lembrou o desmonte, por Dilma Rousseff, de um programa de
adaptação climática, em nome do cartão postal que grandes empreendimentos
desenvolvimentistas simbolizavam para sua errática gestão.
O Brasil bateu recorde
de desastres naturais em 2023, resultado da conjugação de fatores climáticos,
da intervenção humana e da tibieza das lideranças políticas em todos os níveis
ante o problema. Diante das evidências e da tragédia gaúcha, há dois caminhos a
escolher: ou segue a politização inconsequente ou opta por reconhecer que até
aqui relegamos a agenda climática e ambiental ora ao descaso, ora ao
negacionismo – e sempre ao segundo plano. Tratá-la com o devido peso ajudará,
primeiro, a separar o que é o catastrofismo que imobiliza do que é informação
capaz de mobilizar o País à ação; e, segundo, a incluir o clima na equação dos
projetos de desenvolvimento econômico. Sem isso, seguiremos sacrificando o
futuro em nome do presente.
Fonte: Brasil
247/IHU/Agencia Estado
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