terça-feira, 28 de maio de 2024

Leonardo Lucena: ‘Tragédia no RS mostra que o desastre da esquerda e da direita foi não dar funções sociais às cidades

A tragédia climático-governamental no Rio Grande do Sul mostra que políticos da esquerda e da direita têm como um de seus principais desafios dar funções sociais às cidades brasileiras. Por que representantes dos dois campos políticos dissociaram trabalho e serviço público?

Bem-estar social não se mede por imóveis. Muitos espaços urbanos foram construídos com representantes do sistema político econômico tendo o pensamento reducionista de fazer uma “doméstico-individualização” da qualidade de vida, como se ela fosse garantida apenas no interior de um lar doméstico, de uma moradia, e não fora de casas e apartamentos.

O nível do bem-estar social também deve ser medido pelo grau de ocupação nas ruas. Brasileiros de zonas urbanas moram em “cidades-fantasmas” ou com poucos locais seguros de convivência entre as pessoas, como praça, biblioteca, lugar de prática esportiva e atividade artística. Basta comparar com cidades de países desenvolvidos.

Nem o concreto (habitações, calçadas, etc.) nem o meio ambiente são vistos para terem um sentido social, o que fica mais evidente em catástrofe climática. O prejuízo não ocorre somente contra fauna e flora, mas também para setores como saúde, educação, mobilidade, segurança e lazer. Os democratas brasileiros ignoraram o planejamento urbano.

O processo de urbanização brasileiro vem pelo menos desde o século 19, por volta de 1870-1875. Apenas no século 21 é que é o Brasil passou a ter uma legislação voltada para o saneamento, com a Lei 11.445/2007, alterada pela Lei 14.026/2020, um avanço, porém tardio por razões históricas e políticas em um país que, atualmente, tem 100 milhões de pessoas não têm acesso a redes de esgoto e 35 milhões têm falta de água potável, de acordo com números publicados pelo Instituto Trata Brasil em 2023 e divulgados com base nos indicadores de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.

A expressão “saneamento básico” está prevista na Constituição Federal no artigo 21, inciso XX, sobre a competência da União para “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”. 

De acordo com o artigo 23 (IX), União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem colocar em prática “programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.  No art. 200, IV, o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa “participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico”.

•        Serviço público e população em situação de rua

A realidade é preocupante. Além das estatísticas do Instituto Trata Brasil, outra pesquisa, divulgada nesta terça (7) pela Fundação João Pinheiro (dados de 2022), mostrou que, no país, quatro em cada 10 domicílios (41,2%) nas cidades têm problemas como falta de saneamento básico, banheiro, armazenamento de água, energia e insegurança fundiária. Em 26 milhões de residências faltam alguns desses serviços básicos e previstos na lei.

O déficit habitacional do Brasil foi de 6,2 milhões de domicílios em 2022 (8%) do total de habitações ocupadas no país, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicada no último dia 24 de abril. Houve alta de 4% no total de déficit de domicílios em comparação com 2019 (5.964.993).

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) informou, em setembro do ano passado, que o Brasil teve aumento de 935,31% na população de rua – eram 21.934 em 2013 e 227.087 mil até agosto de 2023.

Os números preocupam. E, durante enchentes, como essas no Rio Grande do Sul, ocorre de forma mais acelerada a degradação física, psicológica, em pessoas que nem aparecem nos “mapas” do sistema político para que, de alguma forma, saibam quais os melhores caminhos a percorrer para ter o ‘direito supremo’: viver e ser feliz.

 

•        Por que Deus permitiu a enchente? A pergunta que pede resposta. Por Jung Mo Sung

"Dizer que o caos das enchentes não é punição de Deus, mas fruto da crise ambiental gerada pelo moderno, capitalista e comunista, e das más administrações dos governos é um primeiro passo para sairmos desse erro. Mas esse argumento “secular” não resolve a parte teológica da pergunta sobre Deus todo-poderoso e o amor. Por que Deus bom permite isso?", escreve Jung Mo Sung, graduado em Filosofia e em Teologia, doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e pós-doutor em Educação pela Univiversidade Metodista de Piracicaba. É professor titular da Universidade Metodista de São Paulo, no PPG em Ciências da Religião.

<><> Eis o artigo.

O caos, destruição e mortes nas enchentes no Rio Grande do Sul (sem esquecer também o que aconteceu na China, Afeganistão, Quênia, Tanzânia...) trazem às pessoas que creem que existe um ser sobrenatural, Deus, ou uma energia ou lei, por exemplo, carma, que move e controla o universo, uma pergunta filosófico-teológica fundamental: por que “Deus” permite que pessoas boas sofram assim? Pode Deus ser insensível ou injusto? Se Deus é bom, esses sofrimentos seriam provas da impotência de Deus e, portanto, não ser deus de verdade, mas apenas uma projeção do desejo humano?

Nos cursos ou retiros espirituais, é muito comum usar a beleza e a grandeza do universo para “provar” que Deus existe. Mas a vida humana não é feita só de beleza ou de momentos espirituais positivos, mas também cheia de maldade, sofrimentos injustos e opressões. E muitas vezes, como é o caso das enchentes, esses sofrimentos veem das consequências de ações humanas, muitas vezes inconscientes e não intencionais, e da própria dinâmica da natureza. Isto é, a vida é cheia de contradições e conflitos de interpretações.

Nesses momentos, a questão da teodiceia – justificar Deus frente aos sofrimentos injustos – é importante para as comunidades religiosas, especialmente cristãs que aprendem que Deus é justo, bom, amoroso e todo-poderoso. Quais são as respostas biblicamente adequadas e compreensíveis e plausíveis para as comunidades do nosso tempo?

No artigo anterior, “O caos da enchente, para que serve a religião?”, tratei do papel da religião na criação e na manutenção da ordem contra o medo e a insegurança do caos; especialmente em época de crise compreendido como fruto da desobediência das leis de Deus ou do universo. E, nesse processo da dialética entre a ordem versus o caos, que aparece o argumento da punição de Deus como um processo salvífico, da reconstrução da ordem ou do “equilíbrio”. Toda teologia ou religião que está fundada na ideia de um Deus todo-poderoso (bom ou mal, não importa) implica em exigências sacrificiais e punições.

Nesse tipo de teologia, se o sofrimento é fruto da punição de Deus, essa dor não pode ser injusta, mas sim merecida. Mesmo que as pessoas não saibam quais pecados cometeram, pois Deus sabe.

Dizer que o caos das enchentes não é punição de Deus, mas fruto da crise ambiental gerada pelo moderno, capitalista e comunista, e das más administrações dos governos é um primeiro passo para sairmos desse erro. Mas esse argumento “secular” não resolve a parte teológica da pergunta sobre Deus todo-poderoso e o amor. Por que Deus bom permite isso? Focar plenamente nas causas ambientais e sociais (a crítica ao sistema capitalista) atende às demandas das pessoas e grupos que não têm preocupações teológicas ou de fé. Mas grupos religiosos precisam também de respostas teológicas.

Um caminho de resposta a oferecer é que, na revelação bíblica, Deus é todo-poderoso para criar o universo e para ressuscitar as pessoas da morte, mas por seu amor à humanidade, ao entrar na história, Deus se abdicou do poder divino (cf Fl 2,6-7). Isso porque a relação de amor pressupõe a liberdade. Poder exige obediência, o amor pressupõe a liberdade. A história da humanidade é do âmbito da liberdade, mesmo que não seja da liberdade plena, pois tudo que humano é relativo.

No âmbito da religião, do sagrado e profano, o ser humano pode encontrar segurança da ordem, frutos da obediência às leis. No âmbito da fé, que aprendemos com Jesus, podemos encontrar a coragem, força para superar o medo, e vivermos o amor solidário uns outros na comunidade como expressão mais plena possível de liberdade humana. Como diz apóstolo Paulo, onde está o Espírito Santo, espírito de amor, está a liberdade. (2Cor 3,17)

Não se pode amar a Deus e a outras pessoas sem vivermos a liberdade. E como não é possível vivermos a liberdade sem a possibilidade do mal (eticamente falando) e do pecado, Deus fez o mundo tal que o pecado é uma possibilidade inevitável. Por isso, Comblin retomava frequentemente um texto bíblico muito citado por Juan Luis Segundo: “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3,20) e disse: “se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar” (COMBLIN, J. Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação, p. 66).

 

•        A política ignora a mudança climática

Há politização demais e política de menos na forma como o Brasil está lidando com as mudanças climáticas e seus efeitos nos desastres naturais cada vez mais intensos e frequentes – como é o caso da tragédia no Rio Grande do Sul, a mais grave do gênero enfrentada pelo País nos últimos anos e possivelmente o prenúncio de muitas outras que virão no futuro próximo. Da esquerda à direita, do governo federal aos governadores e prefeitos, do Congresso Nacional aos legisladores estaduais e municipais, o fato é que a agenda climática e ambiental sempre foi, e segue sendo, um tema lateral na política brasileira. A constatação se torna ainda mais relevante quando se assiste tanto à descoordenação entre as diferentes lideranças que deveriam agir de maneira concertada quanto ao tiroteio, explícito ou velado, em que cada grupo, partido ou – vá lá – ideologia busca transferir culpas pela tragédia.

Enquanto isso, a boiada tenta passar. No Congresso, apesar da recente aprovação do projeto de lei que cria diretrizes para a formulação de planos de adaptação às mudanças climáticas, tramitam 25 projetos que agridem normas ambientais. Um deles regulamenta um termo autodeclaratório de que o empreendimento está de acordo com as regras exigidas, além de estipular prazos máximos para o andamento do processo de licenciamento ambiental. Se é fato que a desburocratização dos procedimentos é uma necessidade para destravar projetos econômicos, também é verdade que o projeto de lei pode criar uma espécie de “autolicenciamento” e inibir a análise de casos mais complexos. Há mais: um projeto propõe reduzir a reserva legal na Amazônia, enquanto outro elimina a proteção de campos nativos; mais um admite a exploração mineral em unidades de conservação, enquanto outro anistia desmatadores; um esvazia o poder de fiscalização do Ibama, enquanto outro flexibiliza normas de regularização fundiária.

O problema vai além da Câmara e do Senado. Vozes lulopetistas e bolsonaristas se apressaram a colocar o dedo em riste contra o governador Eduardo Leite (PSDB), acusando-o de favorecer a alteração de 450 pontos do Código Florestal gaúcho. Não faltou oportunismo na crítica, afinal decerto tais mudanças não provocaram as enchentes. Mas convém não ignorar o fato de que as alterações não apenas são questionáveis quando se pensa nos efeitos ambientais de longo prazo, como nem sequer seriam notadas não fosse a tragédia trazida pelas chuvas. Por outro lado, enquanto as gralhas bolsonaristas gritam, resta lembrar a sucessão de retrocessos promovidos pelo governo Bolsonaro – aquele que enxergava na floresta em pé um inimigo e o aquecimento do planeta um delírio esquerdista.

O desenvolvimentismo lulopetista não fica atrás. Apesar do verniz ambientalista do terceiro mandato, o presidente Lula da Silva, o PT e a esquerda jamais deram grande atenção à pauta do clima e do meio ambiente. Essa pauta foi historicamente deixada em segundo plano, ora como uma agenda restrita a “ongueiros” amazônicos e ambientalistas radicais, ora como se fosse uma preocupação típica de liberais. Nos governos petistas, houve fartos exemplos de projetos grandiosos que não levaram em conta os impactos climáticos já previstos àquele tempo – esta semana, por exemplo, uma pesquisadora lembrou o desmonte, por Dilma Rousseff, de um programa de adaptação climática, em nome do cartão postal que grandes empreendimentos desenvolvimentistas simbolizavam para sua errática gestão.

O Brasil bateu recorde de desastres naturais em 2023, resultado da conjugação de fatores climáticos, da intervenção humana e da tibieza das lideranças políticas em todos os níveis ante o problema. Diante das evidências e da tragédia gaúcha, há dois caminhos a escolher: ou segue a politização inconsequente ou opta por reconhecer que até aqui relegamos a agenda climática e ambiental ora ao descaso, ora ao negacionismo – e sempre ao segundo plano. Tratá-la com o devido peso ajudará, primeiro, a separar o que é o catastrofismo que imobiliza do que é informação capaz de mobilizar o País à ação; e, segundo, a incluir o clima na equação dos projetos de desenvolvimento econômico. Sem isso, seguiremos sacrificando o futuro em nome do presente.

 

Fonte: Brasil 247/IHU/Agencia Estado

 

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