Jean Pierre Chauvin: Escola — nem empresa,
nem quartel
No Brasil, a panaceia
“técnica-sem-ideologia” caminha de mãos atadas ao discurso que pretende
justificar os cortes massivos nas já diminutas verbas destinadas à Educação e à
Pesquisa
“O golpe não se
reduziu a mera operação político-militar, com a finalidade de expulsar o
Presidente da República. Consistiu também em ampla e prolongada campanha de
convencimento da população brasileira, acima de tudo sua camada média” (Evaldo
Vieira).
“[…] comparada a
outras profissões, a militar representaria um caso-limite sociológico,
contribuindo para uma grande coesão ou homogeneidade interna (“espírito de
corpo”), mesmo que frequentemente ao preço de um distanciamento entre os
militares e o mundo civil” (Celso Castro)
1.
A apologia de
mentalidades e práticas supostamente novas é um antigo clichê reproduzido de
alto a baixo nestas Bruzundangas. É sintomático que a grade curricular do assim
chamado novo Ensino Médio descontinue atividades e disciplinas que estimulam a
criatividade e a reflexão, substituindo-as por instruções para melhor
empreender e inovar, sob os auspícios de uma existência digna e útil, quando o
aluno deixar a escola.
István Mészáros
ensinava que “Limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas
interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou
não, o objetivo de uma transformação social quantitativa”.
Mais recentemente,
Christian Laval mostrou que “As reformas liberais na educação são duplamente
orientadas pelo papel crescente do saber na atividade econômica e pelas
restrições impostas pela competição sistemática entre as economias”. Luiz
Carlos de Freitas ressalta que a reforma empresarial da educação “remonta ao
nascimento de uma ‘nova direita’ que procura combinar o liberalismo econômico
(neoliberal, no sentido de ser uma retomada do liberalismo clássico do século
XIX) com autoritarismo social”.
Numerosos
historiadores, sociólogos e filósofos (Perry Anderson, Noam Chomsky, Mark
Fisher, Grégoire Chamayou, Florestan Fernandes, Marilena Chaui, Rubens Casara
etc.) já mostraram que o neoliberalismo defende a “não-intervenção” do mercado;
o que não implica a ausência do Estado, mas sim sua atuação decisiva para
reduzir os danos, desregular os direitos e assegurar a manutenção da ordem
social – fatores indispensáveis tendo em vista o bom andamento dos negócios.
No Brasil, pelo menos
desde a década de 1990, as instituições de ensino básico (e superior) passaram
a adotar o idioma e os trejeitos do mercado, desestimulando qualquer raciocínio
que não ensine os estudantes a se (de)formarem na arte de barganhar por notas,
estágios e outras “oportunidades de crescimento profissional”. Como se sabe, a
terminologia usada nos novos manuais de Empreendimento, Finanças e Marketing
está repleta de alusões ao jargão militar do mundo pós-guerra: “cavar
trincheiras”, “promover campanhas agressivas”, “nichar” produtos, “enfrentar a
concorrência” etc.
Em nosso país, a
panaceia “técnica-sem-ideologia” (aprimorada com os acordos MEC/USAID, na
década de 1970) caminha de mãos atadas ao discurso que pretende justificar os
cortes massivos nas já diminutas verbas destinadas à Educação e à Pesquisa.
Entretanto, como ainda proliferam alunos e professores indóceis, vez ou outra o
Estado aplica novos métodos repressivos, recordando aos “cidadãos de bem” que
lecionar é um ato de vocação: embora desprezado como um profissional com
formação especializada, o educador deve se sentir satisfeito, pois recebe
pouco, mas ama o que faz.
2.
Desde a ditadura
brasileira mais longa (1964-1985), conceitos amplos e vagos como “modernidade”,
“liberdade”, “democracia” e “patriotismo” são sequestrados pelas vozes de
comando para serem repercutidos, com sinal trocado, por locutores de rádio e
telejornais, apresentadores de programas de auditório, correspondentes
internacionais, repórteres exclusivos, colunistas especializados e editores de
veículos de notícia, escancaradamente alinhados com os generais tutelados pela
CIA, irmanados a industriais, banqueiros, pastores de televisão e outros
charlatães.
Cristalizadas como
palavras da disciplina e da ordem, essas “categorias” se incorporaram ao senso
comum. Ser moderno, livre, democrata e patriota implicava combater, torturar,
eliminar o simpatizante comunista, encarnado na figura do professor subversivo,
do aluno militante, do cientista maluco, do sindicalista vadio, do intelectual
que negava os valores da família etc.
Desde o golpe de 1964
– repercutido na Marcha da Família com Deus pela Liberdade (em uma série de
eventos amplamente disseminados pela imprensa reacionária e entreguista) –
raros foram os legisladores, prefeitos e governadores cujo programa não fosse
excludente e alinhavado pelos interesses das classes dominantes.
Nesse quesito, o
paulista pode se orgulhar. Epicentro do Integralismo e porta-voz do
anticomunismo, desde a década de 1930, parte expressiva dos neo-bandeirantes
continua a celebrar os atos de covardia e sadismo, em nome da “ordem”, do
“direito de ir e vir” e das pautas controversas que só interessam a
megaempresários, especuladores e rentistas.
A farta distribuição
de cacetetes a alunos e professores que protestavam na Alesp no dia 21 de maio
contra as escolas cívico-militares reedita episódios tenebrosos, mas
recorrentes, protagonizados segundo a lógica da guerra na “Casa do Povo”. Essas
tristes cenas não constituem um fato isolado ou natural; relembram que
aproximadamente metade de nossos conterrâneos (muitos deles, colegas do mesmo
ofício) persistem em depositar passaportes para o embate físico (e simbólico)
nas urnas.
Embora suspeite do
efetivo alcance destas linhas, não me furto a recomendar duas obras decisivas
que ensinam a localizar as raízes do assanhamento por transformar a sala de
aula em reduto de quartel, substituindo o avental pela farda. Refiro-me à
Estado e miséria social no Brasil, de Evaldo Vieira (meu ex-professor, durante
a Licenciatura), publicado em 1982; e O espírito militar, de Celso Castro,
editado em 1990. Não é por outro motivo que eles assinam as epígrafes.
Fonte: A Terra é
Redonda
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