Investimento da China na Líbia: onde outros
enxergam crise, Pequim vê oportunidades, notam analistas
Considerado um Estado
falido, a Líbia pós-Primavera Árabe está mergulhada em crise econômica e
política. Apesar disso, a China permanece investindo pesado no país. À Sputnik
Brasil, analistas apontam que a abordagem reflete a estratégia de Pequim de
expandir com sucesso sua influência em países considerados arriscados.
Devastada pela
Primavera Árabe, a Líbia é considerada hoje um Estado falido, mergulhado em
crise econômica, disputas políticas e em insegurança alimentar. Segundo dados
do Banco Africano de Desenvolvimento, pelo menos 800 mil pessoas necessitam de
assistência humanitária no país e a taxa de desemprego gira em torno dos 20%.
Para muitos países,
tal cenário faz da Líbia um destino bastante improvável para investimentos, mas
não para a China, que permanece investindo pesado no país. Em abril, o governo
líbio deu sinal verde para simplificar os procedimentos para a entrada de empresas
chinesas que pretendem atuar no país em setores que vão desde a produção de
petróleo a cerâmica.
Em entrevista à
Sputnik Brasil, especialistas explicam por que a China se mantém interessada em
um Estado em crise, que benefícios a Líbia oferece a Pequim e como o avanço da
influência chinesa no país altera o xadrez geopolítico no Oriente Médio.
Bruno Huberman,
professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), afirma que, atualmente, "a China é um dos únicos países do
mundo com capacidade de investimento".
"Porque a China
tem superávit gigantesco na sua balança comercial, e isso permite ao país ter
um capital gigantesco para investir em outros países, diferente dos Estados
Unidos, que é a maior economia do mundo ainda de alguma forma, mas por ter um déficit
gigantesco, é um país que sobrevive principalmente vendendo títulos do tesouro
americano, que traz investimentos. Ou seja, os Estados Unidos não investem mais
no mundo, quem investe é a China."
Ele acrescenta que o
caso líbio é uma excelente oportunidade para investidores chineses, que também
traz benefícios para a Líbia.
"Os líbios estão
precisando de investimento porque a Líbia, historicamente, é um dos maiores
produtores de petróleo do mundo, por isso que aconteceu o que aconteceu na
Líbia. Só que a profundidade dos problemas que se deu ali não permitiu que as
empresas privadas ocidentais se tornassem detentoras da extração, da produção,
do refino do petróleo líbio", explica.
Segundo o
especialista, isso levou a China a elevar sua presença tanto na Líbia quanto em
outros países da África e da Ásia.
"Isso, do ponto
de vista chinês, é uma oportunidade de negócios para os chineses. E os chineses
não são investidores que historicamente têm buscado manipular a política
interna dos países onde eles investem [...] eles respeitam a soberania política",
aponta o especialista.
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Como a presença de China e Rússia na Líbia
afeta o xadrez político no Oriente Médio?
Huberman destaca que a
China não é o único país que busca aumentar a influência na Líbia, e aponta a
presença militar da Rússia, que "tem permitido uma crescente influência
militar e política russa". Segundo ele, o aumento da presença militar da
Rússia e econômica da China tem reflexos para além da Líbia e pinta um cenário
no qual países do continente africano se sentem mais à vontade para exercer sua
autonomia fora da esfera de influência do Ocidente, sobretudo de antigas
metrópoles, como a França.
"Então, os países
ocidentais não são a única alternativa. Você tem esse bloco oriental, que tem
esse consolidado [...], formado entre Rússia e China e outros países, que
permite um apoio militar-econômico, russo militar e China econômico, que
permite uma crescente autonomia para esses atores tomarem as suas próprias
decisões e as disputas políticas ocorrendo de uma forma mais autônoma, sem uma
interferência tão gritante dos países ocidentais, como vinha sendo. Porque uma
interferência dos países ocidentais, como eles historicamente fizeram,
significaria confrontar os chineses e russos", explica.
"Então, a gente
tem visto essas transformações na África de uma forma bastante significativa
nos últimos anos. Essa é a principal mudança política que a crescente presença
russa e chinesa em outras partes da Ásia e na África tem resultado, crescente
autonomia. Se isso vai significar uma resolução da questão líbia, isso já é
outra história", acrescenta.
A opinião é
compartilhada por Luis Haroldo Santos Junior, doutorando em estudos
estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), que destaca que o interesse da China na Líbia é anterior à Primavera
Árabe.
"Até a eclosão do
conflito civil, Pequim era um dos maiores investidores no país, com
investimentos estimados em cerca de 20 bilhões de dólares por meio da atuação
de dezenas de companhias. Além de ter uma atuação destacada em vários setores
da economia, como infraestrutura, a China importava elevadas quantidades de
petróleo, sendo a Líbia, na época, um importante fornecedor desse insumo para a
economia chinesa. Com o início da guerra civil líbia, porém, muitos desses
investimentos tiveram de ser suspensos, dada a retirada de companhias da região
e a evacuação de mais de 30 mil trabalhadores chineses."
Ele acrescenta que o
movimento de Pequim hoje visa retomar esses investimentos e assegurar que suas
companhias estejam presentes nos esforços de reconstrução da Líbia no cenário
pós-conflito civil. Nesse contexto, ele afirma ser interessante analisar a estratégia
pragmática e de longo prazo da China.
"Apesar de ser
uma estratégia arriscada, dada a instabilidade pela qual o país ainda passa, a
China considera que a celebração de contratos agora pode angariar ganhos
econômicos no futuro. Essa estratégia tem precedentes, como pode ser verificado
em relação à sua aproximação com Angola, Iraque e Sudão no início dos anos
2000. Em Angola, Pequim celebrou uma série de contratos para a reconstrução da
infraestrutura do país que acabava de sair de uma guerra civil. No caso do
Iraque, após a invasão dos EUA em 2003, o cenário de instabilidade não impediu
que a China firmasse acordos para a exploração de petróleo no país, culminando
em contratos celebrados com o governo local em 2008", explica.
"No Sudão, apesar
de este Estado ser considerado um 'pária' internacional no início do século
XXI, a China reforçou seus laços com as autoridades locais e investiu no setor
energético do país, ajudando a recuperar a capacidade de exportação desse insumo.
Em todos esses casos, a estratégia chinesa rendeu benefícios, ao assegurar
acordos de construção física e garantir o suprimento de petróleo para sua
economia, que se encontrava em plena expansão", complementa.
Segundo o
especialista, o que sustenta a política da China de investir em países
considerados arriscados "é sua estratégia de internacionalizar suas
empresas, a partir da virada do século XX para o XXI".
"No âmbito dessa
estratégia, um dos objetivos seria garantir acesso a recursos naturais e
energéticos que pudessem sustentar a economia chinesa em rápida expansão,
momento em que o petróleo passou a ser considerado um assunto de relevância
para a segurança nacional. Como esses países enfrentavam uma marginalização
internacional em virtude da instabilidade política, havia pouco investimento
ocidental. Para a China, porém, esse era o espaço deixado para que seus
investimentos pudessem ser realizados, ainda que sob grandes riscos, uma vez
que em outros países mais 'estáveis' as firmas chinesas encontravam mercados
relativamente saturados, com pouco espaço para penetração de novos
competidores."
Santos Junior também
aponta que "Pequim tem logrado êxito em se colocar como um ator neutro nas
disputas internas do país" e que "o pragmatismo chinês está orientado
a auferir ganhos econômicos com a recuperação da estabilidade líbia, assegurando
uma presença que renderá benefícios às companhias chinesas".
Ele afirma que a
presença da China e da Rússia na Líbia é um reflexo de "uma progressiva
expansão de influência mais ampla desses dois países no continente africano e
no Oriente Médio como um todo".
"Essa maior
presença oferece um contraponto à tradicional presença ocidental, cujas antigas
potências ainda são acusadas de práticas neocoloniais. Se antes a maioria dos
Estados árabes e africanos dependiam de apoio ocidental, agora eles podem recorrer
a outros atores com ampla capacidade econômica e militar e que oferecem
distintas abordagens de relacionamento. A China, por exemplo, adota uma
política de não interferência nos assuntos internos de seus parceiros, evitando
qualquer imposição de condicionalidades para a realização de negócios com tais
países. Para as lideranças locais que se ressentem das tradicionais imposições
feitas pelas antigas metrópoles coloniais, essa abordagem mais pragmática e de
não interferência exerce relevante apelo."
Ele enfatiza que para
os EUA "a maior presença desses outros atores representa um risco para o
controle dos recursos energéticos locais, razão pela qual os estadunidenses têm
empreendido esforços para conter a expansão sino-russa no continente africano e
no Oriente Médio".
"O caso da Líbia,
portanto, se insere nessas disputas mais amplas, em que estão em jogo sobretudo
as disputas pelos recursos energéticos do país. Embora a China tenha uma
postura mais pragmática e orientada à dimensão econômica, a manutenção da estabilidade
política é de vital importância para o país. Não sem razão, os conflitos locais
decorrentes da Primavera Árabe forçaram a retirada de companhias chinesas da
Líbia, afetando os investimentos que eram realizados na economia local."
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Por que a Primavera Árabe afetou mais
duramente a Líbia do que a Síria?
Huberman aponta que
dos países afetados por disputas internas desencadeadas pela Primavera Árabe,
os casos da Líbia e da Síria são os mais notáveis, porém, "os resultados
foram distintos por causa da correlação de poderes que cada país detinha".
"Ambos são países
fora da órbita óbvia ocidental, mas de alguma forma foram países que após o fim
da Guerra Fria e com o fim da União Soviética (URSS) se aproximaram do bloco
ocidental de forma significativa por sobrevivência econômica e política. Mas
não foram países que se tornaram aliados fundamentais do Ocidente."
Ele destaca que a
Líbia se aproximou mais do Ocidente do que a Síria, principalmente da Itália,
por meio das relações entre Muamar Kadafi (antigo líder líbio) e Silvio
Berlusconi (primeiro-ministro italiano em três ocasiões, entre os anos de 1994
e 2011).
"Havia uma
aproximação importante, a Líbia tinha feito reformas econômicas, privatizações,
assim como a Síria, orientadas pelo Banco Mundial, FMI. Então, quando os
protestos surgem, como esses dois países eram dois países estratégicos
importantes do ponto de vista econômico e político, a Líbia principalmente
econômico, por causa da produção de petróleo, e a Síria principalmente
política, pela sua influência no Oriente Médio [...], foi uma oportunidade para
os países ocidentais apoiarem militarmente as forças guerrilheiras opositoras,
de uma forma a destruir os regimes."
Ele afirma que
enquanto Bashar Assad, presidente sírio, conseguiu reprimir os protestos
internos, Kadafi decidiu usar suas forças aéreas contra os opositores, o que
abriu margem para uma ação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)
no país, que "desestruturou a capacidade do governo líbio de se manter no
poder e permitiu que as forças guerrilheiras, apoiadas pelos ocidentais,
tomassem o poder e assassinassem Kadafi".
"E o que se
seguiu foi uma guerra civil. O que a gente vê na Líbia é uma destruição do
país. A Líbia era um dos países mais urbanizados e desenvolvidos da África e do
mundo árabe. E hoje em dia é um país completamente destruído, com nível de
pobreza e insegurança alimentar alarmantes, insegurança política. É um desastre
o que a gente tem visto na Líbia porque o fim do governo Kadafi abriu uma
disputa por poder fratricida e o resultado é uma manutenção da guerra
civil."
Huberman acrescenta
que o resultado da intervenção da OTAN na Líbia "não foi libertação e
respeito aos direitos humanos do povo líbio, mas o aprofundamento do
desrespeito aos direitos humanos líbios".
"Na Síria, isso
não aconteceu por causa do apoio russo. Porque antes da Primavera Árabe a
Rússia já vinha se aproximando um pouco mais da Síria. E a Síria tem conexões
históricas com a Rússia por causa do período soviético. E essa aproximação
significou um apoio fundamental do governo Assad pelo [presidente russo,
Vladimir] Putin, um apoio militar, o que assegurou que Assad se mantivesse no
poder."
Ele afirma que a
manutenção de Assad no poder "significa que o povo sírio não sofre
atualmente tanto quanto o povo líbio, porque o Estado não foi destruído".
"E o que
aconteceu na Líbia é que o Estado foi destruído. Não é um Estado falido, é um
Estado destruído, basicamente. Então fica essa diferença que explica porque a
Líbia está desse jeito, é o país com a catástrofe mais profunda em relação ao
que a gente vê como resultado das primaveras árabes de alguns anos atrás."
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Que oportunidades a Líbia oferece para a
China?
Luis Haroldo Santos
Junior afirma que para além do petróleo e do gás natural, a Líbia "dispõe
de amplo potencial na área de energias renováveis, em especial a energia
solar", setor em que companhias chinesas têm buscado cada vez mais
mercados e parcerias.
"Com efeito, a
China é, atualmente, líder mundial em investimento em energias renováveis,
sendo o país que mais produz placas fotovoltaicas no mundo. Outro setor que
apresenta oportunidades para as firmas chinesas é o de construção, que deverá
exigir investimentos maciços no esforço de reconstrução do país."
Em contraponto,
"a iniciativa chinesa da Nova Rota da Seda oferece uma série de
oportunidades à Líbia", que desde 2018 expressa intenção de fazer parte da
iniciativa.
"Tendo como
objetivo investir sobretudo em setores de infraestrutura que permitam melhorar
a conectividade física da China com outras regiões, o governo chinês tem
aportado vultosos recursos para o desenvolvimento de projetos nos países
recipiendários desses investimentos. Para a Líbia, esses recursos serão
fundamentais para a reconstrução de sua infraestrutura devastada pela guerra
civil, antevendo que muitos investimentos deverão ser destinados para
reconstruir a economia nacional. Por essa razão, as autoridades nacionais
enxergam com bons olhos a inclusão do país nesse projeto chinês."
Ademais, ele aponta
que, além dessas questões, um grande diferencial dos investimentos chineses,
sobretudo em infraestrutura, é a velocidade com que as obras são feitas.
"As firmas
chinesas se notabilizam pela rapidez na realização de seus empreendimentos,
dado o vasto conhecimento técnico adquirido no próprio mercado doméstico
chinês. Para países com imensas necessidades de investimento e reconstrução
[caso da Líbia[, essa característica chinesa exerce forte apelo", diz o
especialista.
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Especialista indica
'novos horizontes' que serão abertos ao Bahrein após adesão ao BRICS
Um economista do
Bahrein vê vantagens na integração do país árabe com os países do BRICS,
incluindo algumas das maiores economias do mundo, como a Rússia e a China.
O convite de Hamad bin
Isa al-Khalifa, rei do Bahrein, e líder da Liga das Nações Árabes, por Vladimir
Putin, presidente da Rússia, à próxima cúpula do BRICS em outubro, é
representativa das mudanças positivas promovidas pela organização, argumentou
um economista bareinita.
"O BRICS
desempenha hoje um papel fundamental na economia global, e alguns países árabes
já aderiram à associação. Uma das principais vantagens do BRICS, na minha
opinião, é a oportunidade de reduzir a dependência do dólar, porque é a moeda
em que a maioria das transações no setor de petróleo e gás é realizada. A
possível adesão do Bahrein ao BRICS abrirá novos horizontes, inclusive na área
do comércio em moeda nacional", disse Usama Muin em declarações à Sputnik.
"Além disso, os
instrumentos do BRICS permitirão trocas mutuamente benéficas e relações
comerciais justas. O reforço da cooperação dentro da associação também reduzirá
a probabilidade de crises, já que os membros do BRICS são algumas das maiores
economias do mundo, incluindo a Rússia e a China."
Segundo o
especialista, "a inclusão do Bahrein no BRICS obviamente terá um impacto
positivo na economia do reino e expandirá significativamente suas oportunidades
de exportação. Há também potencial em outros países do golfo [Pérsico], então
espero que essa aliança se expanda ainda mais".
Fonte: Sputnik Brasil
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