sexta-feira, 24 de maio de 2024

Imposto mínimo de 2% sobre super-ricos multiplicaria por 10 orçamento do Ministério do Meio Ambiente

A criação de um imposto de 2% sobre a riqueza dos 0,2% mais ricos do Brasil seria suficiente para arrecadar R$ 41,9 bilhões por ano, segundo cálculo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made/USP) publicado nesta quarta-feira (22/5).

Esse valor seria suficiente para triplicar o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia e aumentar em mais de 10 vezes o orçamento do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas de 2023. Segundo um relatório do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), o orçamento autorizado para Meio Ambiente foi de R$ 4,3 bilhões em 2023 e o de fato executado pelos orgãos ambientais foi de R$ 3,29 bi.

O valor de R$ 41,9 bilhões que poderia ser arrecadado também é equivalente a cerca de 25% do total gasto com o Bolsa Família em 2023, ano de investimento recorde no programa, segundo o estudo do Made/USP.

Incidindo sobre os 0,2% mais ricos do país, o imposto atingiria 267.460 mil pessoas no Brasil que têm riqueza declarada de mais de R$ 13 milhões e uma renda média mensal de R$ 218 mil reais, segundo a publicação do Made/USP.

"O perfil de riqueza desses 0,2%, é bem diferente do resto da população", diz o economista Guilherme Klein, professor da Universidade de Leeds (Reino Unido) e pesquisador associado do Made/USP.

A grande maioria dos brasileiros que possuem alguma riqueza declarada (somente 27% da população) têm a maior parte disso acumulado em imóveis — em média, R$ 97 mil reais. "Em geral, são as casas onde as pessoas moram", explica o economista.

Enquanto isso, a maior parte da riqueza dos 0,2% no topo é composta por ativos financeiros, diz o estudo. Ou seja, é composta por ações, fundos de investimentos, títulos de dívida, letras de crédito, etc.

O estudo foi feito com base na proposta dos economistas franceses Thomas Piketty, Gabriel Zucman e Emmanuel Saez em seu relatório global de 2022 de criar um imposto global mínimo sobre a riqueza dos bilionários.

Também foi baseado no trabalho desses economistas que, neste ano, o Brasil liderou uma proposta no G20 (o grupo dos países mais ricos) de criar uma taxação global mínima de 2% sobre a riqueza dos bilionários.

A vantagem desse acordo internacional, segundo o economista francês Gabriel Zucman — convidado pelo Brasil a falar em uma reunião do G20 em Brasília nesta semana — é evitar que os super-ricos movimentem essa riqueza internacionalmente para fugir dos impostos.

A principal crítica normalmente feita a esse tipo de proposta de taxar super-ricos é a possibilidade de fuga de capital.

"Um acordo internacional diminui as chances de países 'perderem' residentes, porque vai haver um imposto mínimo global", disse Zucman à BBC News Brasil em março.

A análise do Made/USP leva em consideração que os ativos financeiros que compõem a riqueza dos 0,2% no topo são muito mais fáceis de movimentar.

"Os super-ricos podem facilmente mudar de local e movimentar suas riquezas, que são compostas por ativos financeiros e por essa natureza são mais móveis", reconhece Klein.

"Inclusive é uma coisa que a gente mostra na pesquisa também. Por isso, é tão importante que haja uma articulação política global para tornar viável a proposta."

Quanto às críticas de que esse nível de articulação seja muito ambicioso, Zucman defendeu a ideia de que um acordo global não é irrealista e poderia acontecer nos moldes da taxação mínima internacional sobre empresas multinacionais, iniciativa proposta pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para reduzir o envio de lucros para paraísos fiscais e que foi aprovada em 2021 por 140 países.

"É possível ter um grande número de países, como aconteceu em 2021, quando 140 países concordaram com um imposto mínimo de 15% para multinacionais", disse ele à BBC News Brasil.

"É possível criar esse imposto de uma forma que os ricos não poderiam evitá-lo se mudando. É muito importante entendermos que a competição tributária internacional não é uma lei da natureza. É uma escolha política. Podemos escolher tolerar isso ou não."

A implementação global desse imposto mínimo, segundo ele, aconteceria de forma a complementar o que já se paga de imposto localmente.

Por exemplo, em um país onde os mais ricos já pagam o equivalente a 1% de imposto, essa taxação seria aumentada até atingir 2%.

•        Super-ricos são o grupo que paga menos impostos

O estudo do Made/USP, no entanto, não analisou somente os bilionários no Brasil, mas uma variedade de cenários e níveis de impostos que poderiam ser cobrados sobre bilionários e multimilionários.

Segundo a lista da revista Forbes, havia 51 bilionários no Brasil em 2023. Mas é difícil isolar esse grupo com as bases de dados disponíveis, explica Klein — o estudo foi feito com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e nos dados de renda e riqueza da Receita Federal de 2022.

Existe uma dificuldade adicional de que a riqueza costuma ser subestimada nos dados da Receita.

Por isso, o grupo analisou o potencial de arrecadação da taxação mínima sobre o grupo dos 0,2% mais ricos, que atualmente pagam menos de 2% de sua riqueza em imposto de renda.

"No Brasil, o único grupo que paga menos de 2% de sua riqueza em imposto de renda são os 0,2% do topo — atualmente o imposto de renda dessa faixa da população é de cerca de 0,8% de sua riqueza", afirma Klein.

O pesquisador afirma que essa taxação dos 2% de imposto sobre os 0,2% mais ricos ajudaria também a reduzir a regressividade do sistema tributário — ou seja, o fato de que, hoje, os mais ricos pagam proporcionalmente menos impostos no Brasil.

"A alíquota efetiva [a razão entre o total de impostos e a renda] dos 0,2% no topo é de apenas 4%. Enquanto isso, para o grupo de 1% da população que está logo abaixo dos 2% mais ricos, ela é de 12% em média", explica Klein.

"Com a aplicação do imposto mínimo de 2% sobre os 0.2% mais ricos, sua alíquota efetiva sobe para 10%, ou seja, você reduz a regressividade — mas mesmo assim os super-ricos continuariam pagando proporcionalmente menos impostos do que o resto da população. Então não é algo que seria absurdo do ponto de vista de progressividade tributária."

•        Tributar renda x tributar riqueza

Diversos estudos econômicos no mundo todo mostram que uma das dificuldades para tributar bilionários e multimilionários é que, para os super-ricos, é muito fácil estruturar a riqueza de forma que ela não gere o que é formalmente considerado renda.

No Brasil, por exemplo, a classe média tem uma parcela maior de seus ganhos proveniente de salários, que, em geral, são tributados na fonte, com alíquotas progressivas que chegam a 27,5% para ganhos mensais acima de R$ 4.664,69.

Mas os super-ricos em geral têm rendimentos mensais que não vêm de salários, mas de lucros e dividendos de ações de suas empresas, que, no Brasil, não pagam imposto.

Segundo Klein, a ideia de tributar a riqueza em vez da renda é uma forma de corrigir esse problema.

No entanto, essa forma de taxação costuma ser criticada pela dificuldade de taxar periodicamente um montante de riqueza.

"Esse é um ponto muito importante e legítimo: como você vai tirar um fluxo [de imposto] de algo que é um estoque [a riqueza]? Então, a pessoa teria que vender um ativo ou uma casa para pagar? Na verdade, não", diz ele.

"Nossos estudos mostram que, como resultado dessa riqueza, essas pessoas têm rendimentos anuais mais do que suficientes para pagar 2% de imposto sobre o total da riqueza."

 

•        O enfrentamento consequente da crise ambiental. Por Luiz Felipe Miguel

Os gaúchos ainda esperam a água baixar para voltar às suas casas, contam os mortos e avaliam a medida da devastação. Nem por isso os negacionistas do colapso climático se calam. Aferram-se ao fato de que no passado também ocorreram cheias (a de 1941, em Porto Alegre, é sempre evocada) para enquadrar a tragédia como “fatalidade”. Prosseguem na cruzada contra o método científico, usando casos isolados para contestar regularidades e tendências, tal como fizeram durante a pandemia do novo coronavírus.

Sim, há muitos registros de inundações, de temperaturas extremas ou de calor ou frio fora de hora no passado. O ponto é que estes fenômenos estão se tornando mais – muito mais – constantes e intensos. Os dados são eloquentes e décadas de pesquisa apontam para a ação humana como causa. O consenso científico está estabelecido, mesmo com todo o esforço dos “mercadores da dúvida” (pesquisadores bancados por grandes corporações, que produzem estudos enviesados em temas como tabagismo, opioides, alimentos ultraprocessados ou aquecimento global).

Falar em “ação humana”, no entanto, é muito vago. Parece distribuir a culpa entre todos nós. No entanto, as responsabilidades são muito diversas. O custo ambiental do cidadão de um país rico, com seu padrão de consumo mais elevado, equivale a muitas vezes aquele do morador de um país pobre. E, dentro de cada sociedade, evidentemente os mais ricos têm maior impacto, com seus automóveis dispendiosos, jatinhos particulares, lanchas e iates, profusão de gadgets em constante substituição etc. Um relatório do ano passado estima que os 10% mais ricos dos Estados Unidos, isto é, cerca de 0,4% dos habitantes do mundo, são responsáveis por 40% da poluição de todo o planeta.

Ao mesmo tempo, as consequências também são distribuídas desigualmente – e as primeiras vítimas são sempre os mais pobres. Os países ricos “exportam” boa parte de sua poluição, transferindo seja as plantas industriais, seja já os resíduos. E, em cada país, os ricos têm acesso aos bens e serviços que minimizam as consequências do colapso ambiental, de equipamentos de climatização à imóveis em áreas menos vulneráveis.

Em suma: estamos todos no mesmo barco, como se costuma dizer. Mas há muita diferença entre estar na primeira ou na terceira classe. E, quando ele afundar, o que é seu destino provável, só alguns terão acesso aos botes de salvação.

São culpados os empresários gananciosos, os políticos que vivem a serviço deles bloqueando medidas de proteção ambiental, é culpada a mídia que calibra o noticiário com a preocupação de não melindrar muito os grandes anunciantes. Precisamos indicar a responsabilidade de cada um deles. Mas também o fato de que suas ações – como, em alguma medida, a de todos nós – seguem a dinâmica de um sistema: o capitalismo.

A lógica da acumulação capitalista, com sua incessante demanda por geração de valor, torna toda a natureza “um objeto da humanidade”, como disse Karl Marx. A preservação ambiental é absolutamente contraditória a essa lógica. Como expôs o filósofo japonês Kohei Saito, o capitalismo reorganiza radicalmente a relação da humanidade como a natureza “a partir da perspectiva da máxima extração possível de trabalho abstrato”. Como se trata de gerar valor, não de suprir necessidades, não há limite para a extração de matérias-primas e para seu processamento. E cada um de nós, habitantes do mundo capitalista, somos ensinados desde cedo a buscar no consumo incessante a compensação para a alienação de nossas vidas.

As corporações podem fazer o teatrinho da “sustentabilidade”, mas o enfrentamento do colapso climático é necessariamente o enfrentamento do império do capital. Ao mesmo tempo, sua lógica contaminou também os países do “socialismo real”. Quando, após a Segunda Guerra, os dirigentes soviéticos estabeleceram como meta superar o padrão de vida ocidental, aceitavam uma métrica capitalista. O mesmo se pode dizer, hoje, da China.

Karl Marx não foi, evidentemente, um ambientalista avant la lettre. É inútil buscar nele uma presciência milagrosa sobre os desafios ecológicos que enfrentamos hoje. Mas a crítica ao capitalismo, a seu caráter predatório, à violência que ele engendra, cujos mecanismos foram em grande medida desvendados por Marx e pelos pensadores que seguiram seus passos, tudo isso é essencial a qualquer enfrentamento consequente da crise ambiental.

 

Fonte: BBC News Brasil/A Terra é Redonda

 

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