Estamos
vivendo uma obsessão pelas proteínas?
A
proteína é um macronutriente dotado de superpoderes. Vive dias de glória,
enquanto as gorduras e os carboidratos atravessam uma longa e persistente crise
de imagem. Paradoxalmente, ocupa também o centro da tensão entre alimento e
meio ambiente nas discussões sobre o futuro do sistema alimentar. Hoje é o elo
fundamental da mais importante relação agro-exportadora da balança comercial
brasileira.
Entender
e esboçar uma arqueologia do saber a respeito das proteínas tornou-se
imperativo na medida em que o tema vem ocupando um espaço cada vez maior em
nossa rotina como um projeto que cobre sistemas alimentares.
É
bom deixar claro, antes de seguir adiante, que esse texto não pretende defender
ou condenar o consumo de proteína animal. Também é importante ter em mente que
se você está preocupado em saber quantos gramas de proteína há em um filé, no
ovo ou em uma porção de grãos, é bem provável que faça parte do grupo de
brasileiros que ainda exercem escolha sobre o que comer.
Na
versão plant based ou na promessa da carne cultivada, as fontes alternativas de
proteína para muitos podem representar esperança nas discussões sobre o futuro
dos sistemas alimentares.
Na
perspectiva dos hábitos, protagoniza as recomendações para quem busca ganhar
massa muscular, conquistar hipertrofia ou está em processo de emagrecimento. No
vai-e-vém das dietas, a proteína sai ilesa.
Também
é a aposta da indústria de alimentos em um cenário pós-glutidas, as canetas que
vêm sendo utilizadas para o tratamento da obesidade (Ozempics e afins). Entre
os (vários) efeitos indesejados dessa nova geração de medicamentos, está a
perda de massa muscular.
É a
razão de existir de um mercado que em poucas décadas se tornaria bilionário, o
de whey protein, impulsionado, em grande medida, pela necessidade de dar
destinação a um excedente da produção leiteira dos Estados Unidos e a
disseminação de um way of life em que se espera do corpo a eficiência máxima e
dos alimentos, funcionalidades.
Todas
essas questões foram aparecendo de forma transversal em muitas das reportagens
e pesquisas que venho fazendo no Joio. E transbordaram também para minha vida
pessoal desde que incluí atividade física de forma mais consistente em minha
rotina.
Os
algoritmos fizeram o seu papel: entre variados modismos no cardápio das redes,
venho sendo bombardeada com receitas de bolos, tortas, pão, pudins, mousses
protéicos; top cinco alimentos ricos em proteína; recomendações sobre consumo
diário e a recente trend “o que eu como em um dia” em que, quase sempre, lá
está ele, o whey.
Fora
das redes, no mundo offline, as mais variadas versões de whey protein e outros
suplementos alimentares ocupam um espaço cada vez maior, paredes inteiras
muitas vezes, nos empórios que vendem temperos e alimentos à granel, um modelo
de comércio comum no Rio de Janeiro, de onde escrevo.
Não
é por acaso que lojas de produtos naturais tenham incluído em seu portfólio
whey e uma variedade de suplementos alimentares até pouco tempo atrás voltados
ao universo fitness, ainda que de natural eles não tenham nada.
A
palavra proteína passou a ganhar ares de uma virtude sine qua non nas
discussões sobre saúde, atividade física, emagrecimento e hábitos alimentares.
E a estampar rótulos de novos ultraprocessados, ultrapassando os limites do
universo maromba em barrinhas e bebidas prontas em mercados e até farmácias.
É
curioso pensar que a proteína parece ser tanto o problema, quanto a solução
dependendo do prisma de análise. Nessa discussão, alguns consensos podem ganhar
contornos distintos, podendo servir, digamos, a diferentes senhorios.
• Um
protagonismo que se renova
Longe
de ser um modismo, a obsessão com a proteína é um elemento que se renova e se
adapta com o passar do tempo, desde que este macronutriente ultrapassou os
limites da Química para adentrar na então jovem ciência da Nutrição, há mais ou
menos 150 anos.
Papel
importante neste processo teve um cientista e empresário alemão, Justus Von
Liebig, considerado o pai da ciência nutricional moderna. Ele foi responsável,
entre várias invenções, por dois produtos que revolucionaram a indústria de
alimentos: o primeiro substituto para o leite materno e o extrato líquido de
carne.
Este
produto evoluiu para a carne enlatada, até hoje presente nos supermercados e na
“culinária” inglesa. Falamos mais detalhadamente sobre Liebig no episódio em O
Império da Proteína, no Prato Cheio.
“As
crenças sobre a carne se enquadravam perfeitamente em ideologias de
superioridade cultural, racial e nacional – e o conceito de proteína
estabeleceu uma aparente base científica para estas crenças”, contam Blaxter e
Garnett, autores de Primed for power: a short cultural history of protein. Em
um contexto de expansão da força de trabalho, escassez de alimentos e
urbanização, cientistas da época buscavam respostas para questões como: o
quanto um operário ou soldado deveria comer para obter rendimento máximo com
custo mínimo?
É
neste contexto que a carne, a bovina especificamente, passa a ser vista entre
as proteínas como a de melhor qualidade, atrelada à ideia de força física e
superioridade. Uma alegação renovada mais de cem anos depois de forma
espantosamente eficaz com o marketing do whey protein, com a diferença de que
no século 21 os ideais de força muscular parecem ter se estendido ao corpo das
mulheres.
A
preocupação com um suposto déficit no consumo de proteína atingiria seu auge na
década de 1950, em mais um exemplo do papel ambíguo que as guerras exerceram
sobre os sistemas alimentares. Estabelecer padrões nutricionais foi a primeira
missão da FAO, fundada em 1945 como braço da ONU para a Agricultura e
Alimentação. Esses padrões também serviriam de base para a produção
agropecuária e a indústria de alimentos.
“Houve
primeiro a ideia de que em alguns países existia uma deficiência de proteína,
países da África Central, que consumiam apenas banana, mandioca, coisas que
eram calóricas e tinham baixo teor de proteína. E aí vem o nome de uma doença
que é popular em alguns países da África, o kwashiorkor”, conta Jaime Amaya
Farfan, professor aposentado e hoje colaborador da Faculdade de Engenharia de
Alimentos, da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp.
“E
se criou o conceito de que a proteína era o centro da desnutrição e isso não é
verdade. As proteínas ganharam um halo de dignidade celestial. Depois isso
ficou conhecido como protein fiasco, a grande desilusão da proteína. Porque se
viu que os compostos dos produtos vegetais, ou seja, frutas, legumes,
hortaliças e etc., eram tão importantes para uma boa saúde quanto as
proteínas”, explica Farfan, que participou de duas das reuniões promovidas por
FAO e OMS, já nos anos 2000, e dedicou toda a vida a pesquisar as proteínas.
Os
hábitos de populações do Sul Global só passaram a ser levados em consideração
pelo grupo de cientistas que periodicamente se reuniam para discutir esses
padrões a partir dos anos de 1970. Ao longo de praticamente cem anos, as
pesquisas sobre consumo mínimo recomendável para a manutenção da saúde tomaram
por base hábitos de populações que tinham alto consumo de carne.
Com
o avanço do conhecimento sobre nutrição e a complexidade da interação dos
alimentos com o nosso organismo, há alguns anos o padrão mínimo de consumo de
proteínas vem se mantendo estável, entre 0,6 e 0,8 grama por quilo de peso
corporal.
Muito
abaixo do que recomendam influenciadores fitness e nutricionistas patrocinados
por fabricantes de whey e outros suplementos. “Você não é obrigado a consumir
whey. O que é importante você fazer? Calcular a quantidade certa de proteína
pra você. Os estudos dizem que 1,2 grama vezes o quilo corporal é pra saúde e
qualidade de vida. Se você tem fins de performance, massa muscular, a partir de
1,6 grama por quilo de peso corporal. Se é atleta, 2 gramas para fins de
hipertrofia”, aconselha Renato Cariani, o rosto mais conhecido da Growth, a
mais famosa marca de suplementos do Brasil.
• Proteína
pra quem?
No
aplicativo da Growth, a recomendação de proteína que recebi após escolher o
vago objetivo de “emagrecer” foi de 192 gramas diárias, em uma dieta de 1744
calorias totais. Isso representa 3,8 vezes o teto da recomendação da OMS (cerca
de 50g) para uma pessoa com o meu peso.
“Vemos
pessoas consumindo excesso de proteína, tanto de carnes, quanto de whey. É
comum no fisiculturismo consumir três gramas, três gramas e meio. São casos que
não deviam ser usados como bom exemplo. Por várias razões. Uma delas é a
alteração da microbiota intestinal e a inflação sistêmica, condição que pode
levar a um problema crônico. Diria que 1,5 grama por dia, por quilograma, já
chegou ao máximo. E não deveria ser uma condição de consumo permanente nesses
níveis”, avalia o professor Farfan.
É
evidente que apenas com alimentos é muito difícil bater um patamar que
contraria o próprio apetite. Em condições normais de saúde, ainda é o nosso
melhor guia.
A
combinação do imperativo da praticidade com a falta de informação renova a
crença do déficit protéico em quem provavelmente já consome proteína
suficiente. E fez crescer um mercado gigantesco em torno desses produtos.
Falamos sobre isso no episódio O Milagre do Whey, no Prato Cheio.
A
ironia é que a inovação que o whey representa esteja talvez longe daqueles que
efetivamente poderiam se beneficiar de um aporte adicional de proteína, o que
nos leva a refletir para quem ou quais interesses o avanço científico na
indústria de alimentos tem servido.
Como
explicar, por exemplo, a lógica da linha Nutrem, da Nestlé, vendida como
suplemento para adultos acima de 50 anos e idosos composto basicamente por
leite ou composto lácteo e açúcar?
“Tomo
whey de segunda a sexta porque o tempo que eu tenho pra comer no lanche da
tarde é tão pequeno que não consigo mastigar um sanduíche pronto, quem dirá
comer algo mais elaborado”, relatou um de nossos seguidores da página do Joio
no Instagram, em um eloquente exemplo da lógica por trás desses produtos e da
própria indústria de ultraprocessados.
Em
cinco anos, o interesse por proteína nas buscas na internet dobrou no Brasil. O
mesmo aconteceu com a palavra whey e com buscas sobre o quanto tem de proteína
em alimentos como ovo ou bife. Um indicador de que os hábitos alimentares dos
brasileiros ainda se baseiam em comida de verdade? Talvez.
E é
aqui que o primeiro consenso – o do déficit de proteínas – passa por um turning
point narrativo importante na direção de outro consenso: a preocupação com o
consumo se transfere para a produção. Teremos proteína suficiente para
alimentar uma população que cresce e se urbaniza a passos largos?
Projeções
que indicam a necessidade de produzir mais proteína se fundamentam no aumento
da renda e em processos de urbanização. E são o principal argumento por trás de
investimentos vultosos, inclusive de grandes frigoríficos, como a JBS, nas
proteínas alternativas, sejam de base vegetal ou cultivada em laboratório –
esta ainda marcada por mais dúvidas do que certeza.
O
problema é que essas estimativas se baseiam em um consumo alto e bastante
desigual entre regiões do mundo, entre países e suas populações, e apostam em
mudanças nos padrões alimentares, variando conforme o nível de desigualdade e o
lugar que se ocupa no tabuleiro geopolítico global.
O
Brasil é um exemplo notável dessas contradições, ocupando lugar de destaque no
consumo e também protagonismo na produção, em carne ou grãos exportados que vão
ser convertidos em proteína animal.
Estamos
em terceiro lugar, atrás apenas de Estados Unidos e Argentina, entre os maiores
consumidores de carne (bovina, suína e de frango) entre 35 países estudados por
OCDE e FAO. No entanto, o cálculo dos dados per capita talvez não seja capaz de
capturar as profundas desigualdades em um país de proporções continentais e
realidades muito diferentes quando o assunto é alimentação.
Nesse
sentido, para a esmagadora maioria da população brasileira o significado do
consumo de carne passa longe da discussão sobre saúde, sobre o futuro dos
sistemas alimentares ou mesmo sobre as questões éticas relacionadas ao
bem-estar animal.
Não
por acaso, a picanha voltou ao debate político e foi um dos motes da campanha
que levou Lula de volta ao poder, em 2022.
E
foi um certo incômodo com a cobrança direcionada ao Brasil e à China que levou
a pesquisadora Mariana Hase Ueta a desenvolver sua pesquisa sobre o tema.
Doutora em sociologia pela Unicamp, investigou as percepções a respeito do
consumo e impacto ambiental do consumo de carne no Brasil e na China.
“Foram
dois países em que cresceu muito o consumo de carne. Quando a gente fala de
alimentação e carne, esses dados nunca vêm sozinhos, eles nunca vêm avulsos. Ao
longo de três gerações, houve uma melhora no consumo e nos padrões de vida
dessas populações”, explica. Aspectos culturais, afetivos e o significado da
mobilidade social que o consumo de carne pode representar apareceram tanto lá,
quanto cá nos relatos colhidos por Mariana, que deu à tese o título “O Sabor da
Prosperidade”.
Ler
a sua pesquisa me fez lembrar de uma cena que jamais saiu da minha cabeça. Em
2018, participei de uma ação de voluntariado no Refettório Gastromotiva, um
projeto que serve diariamente refeições gratuitas feitas por chefs a partir de
doações de alimentos. Naquela noite, havia 92 pessoas no salão, gente que
morava nas ruas, outras apenas aparentavam não ter o que jantar em casa. As
refeições saíam da cozinha empratadas, em série, e nós, os voluntários,
aguardávamos em fila para servir. Pude observar a frustração no rosto de muitos
quando perceberam que o menu daquela noite não tinha carne, embora estivesse
muito gostoso e completo do ponto de vista nutricional.
Muitos
devoraram ali mesmo uma bolsa grande de frutas doadas pelo projeto, mesmo após
terem feito uma refeição completa.
Discutir
o paradoxo da proteína e o futuro do sistema alimentar necessariamente passa
por mudanças em nossa dieta. Mas isso requer também vislumbrar um novo cenário
em que cozinhar as próprias refeições não seja um fardo pesado demais. E isso
está longe de responsabilizar os indivíduos por falta de tempo. Ou pelo consumo
de carne.
“A
China, nos anos 50, viveu a grande fome. Muitos morreram porque não tinham
acesso à alimentação. Quando a gente olha o consumo de carne da China hoje, é
muito fácil falar que aumentou. Sim, graças a Deus. É pra celebrar”, conclui
Mariana.
Fonte:
O Joio e o Trigo
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