Combate à desinformação está sendo retomado no governo Lula
A desinformação tem
sido uma barreira contra a ação climática. Para se ter uma ideia, uma avalanche
de fake news foi divulgada após as enchentes iniciadas no dia
26 de abril de 2024 no Rio Grande do Sul, o que representa a maior tragédia
ambiental do estado. A difusão de supostas falhas nas ações do governo federal, passando por golpes no pix sobre
doações até a causa dos temporais foram marcas da desinformação que pairou
sobre a situação climática em curso.
O despreparo do poder
público em todos os âmbitos com as questões de clima é fato. Contudo, é urgente
relacionar os fenômenos, tanto da desinformação disseminada por políticos negacionistas, como de
dados científicos sobre mudanças climáticas, que há anos vêm sendo divulgados
por universidades brasileiras e pelas Nações Unidas. Talvez,
se houver uma compreensão do dissenso sobre desinformação entre os diferentes
setores, seja possível elaborar estratégias de enfrentamento mais condizentes
com o cenário atual brasileiro.
Paulo Pimenta,
ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República
(Secom), começou o ano de 2023 dando uma entrevista otimista à
Agência Brasil: “Faremos um trabalho permanente de combate às fake news e
à desinformação” e terminou em dezembro passado em outra perspectiva, afirmando que a
comunicação foi o principal erro do governo Lula 3.
Para a jornalista
Jéssica Botelho, doutoranda e integrante do Centro Popular de Comunicação e
Audiovisual (CPA – Manaus/AM), os avanços são proporcionais ao tempo de
retomada da democracia: “Vamos fazer um recorte pelo menos de 2018 para cá
quando especialmente no Brasil esse universo da desinformação começa a se
intensificar com o ritmo mais acelerado, sobretudo capitaneado pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro, as redes de desinformação começam também a se
estruturar de forma muito mais organizada, e obviamente até 2021 não tinha um
interesse em combater a desinformação”, contextualiza.
Já Nina Santos,
coordenadora geral do Desinformante, detalha que “os avanços vão desde a
Secretaria de Políticas Digitais até setores dedicados ao digital nos
ministérios da Saúde e Justiça. Isso tem impacto em como o tema tem sido
conduzido, não somente na questão da regulação das plataformas, mas também na
regulação dos trabalhadores dessas plataformas”. Inclusive o Intervozes –
Coletivo Brasil de Comunicação chamou a atenção para
a demissão em massa pelas big techs, impactando no aumento de
violações por essas empresas e na provável capacidade destas empresas em
responder às demandas crescentes por transparência e responsabilidade nas
redes.
A criação da
Secretaria de Políticas Digitais, vinculada à Secom, é de fato uma conquista.
No entanto, o primeiro ano de gestão foi mais diplomático contra a
desinformação, do que de fato tocou nessa cratera, assim como apontou Pimenta,
no setor de comunicação de
forma geral. Os debates sobre os usos das tecnologias de informação e
comunicação e seus impactos na democracia são reativos às demandas de violações
sofridas pela sociedade civil, autorregulação das empresas de tecnologia e após
o fatídico 8 de janeiro de 2023.
Logo quando a nova
gestão Lula 3 tomou assento foi lançada ao desafio de lidar com um ato
antidemocrático e a profusão de redes de desinformação que levou, segundo o
secretário nacional de Políticas Digitais, João Brant, “à situação de que –
hoje sabemos, com bastante evidências – o Brasil ter estado à beira de um golpe
contra nosso regime democrático”. Nesse contexto, o governo Lula teve que tomar
algumas medidas, quando a disseminação de informações falsas poderia ter minado
a confiança pública e a integridade do debate democrático.
Ele lançou o
programa “Brasil contra fake”. Uma
espécie de agência de checagem, na qual qualquer brasileiro pode confirmar
determinada pauta relacionada às ações do Estado. Mentiras como “Lula vai confiscar finanças” ou
o “PT pediu a cassação de todos os deputados da PL” foram verificadas pelo programa. O Ministério da Justiça
realizou também a operação “Escola Segura”. Dentre as ações, foram criados canais de denúncia via
telefone e WhatsApp. Isso se deu principalmente no contexto das diversas
ameaças de violência às comunidades escolares brasileiras no ano passado. “O
Ministério das Relações Exteriores, por exemplo, tem envolvido várias pastas
para orientar a atuação do Brasil nos fóruns internacionais, como o G-20 –
fórum de cooperação econômica formado por dezenove países, incluindo o Brasil –
e a discussão do Pacto Digital Global da ONU, que será levada à Cúpula para o
Futuro em setembro”, complementa João Brant.
São medidas que não
enfrentam de forma estrutural a desinformação e que estão ainda dentro de um
entendimento de combater a mentira com a verdade ou em tom punitivista, como
tem sido pensada a segurança pública de forma geral, mas na realidade essa
dicotomia tem sido um campo de batalha. A disputa de narrativa tem sido
endossada muitas vezes por “verdades” compradas, conforme indica reportagem
da Repórter Brasil sobre
estudos pagos pela indústria da carne, por exemplo, para minimizar os efeitos
da pecuária no clima.
·
Desinformação é debate
técnico e não ideológico
A polarização entre
verdade e mentira se torna um desafio ainda maior entre todos os setores
envolvidos no debate sobre desinformação num contexto de monopólios digitais. Não há
consenso sobre o conceito do fenômeno, já que o cenário conta com diversos
sujeitos pautando interesses divergentes. “Eu acho que a gente tem que olhar
para o público que se objetiva ser atendido em cada setor. A sociedade civil,
por exemplo, está geralmente ligada com a proteção dos direitos. O poder
público precisa, na sua esfera de poder, dar uma resposta a essa sociedade do
ponto de vista de regulação, seja de fiscalização ou de contenção de danos. Já
as big techs têm seus interesses comerciais aliados muito ao
mercado”, destaca Jéssica Botelho.
Esses interesses
impactam as estratégias de enfrentamento à desinformação já que elas devem ser
feitas de forma cooperada. Como exemplo, destaca-se a estagnação da votação do
PL 2.630/2020, texto que propunha medidas de transparência nas redes sociais e serviços
de mensagens privadas, além de reforçar a responsabilidade dos provedores pelo
combate à desinformação. Em 2024, temos mais um entrave à viabilidade de
aprovação do PL: a possível criação, na Câmara dos Deputados, de um grupo de
trabalho para tratar do documento. Além disso, o deputado Orlando Silva (PCdoB)
foi retirado da relatoria do projeto. O PL 2630 vinha sendo debatido há anos,
tendo sido objeto de dezenas de audiências e centenas de contribuições de
especialistas na matéria, inclusive do Intervozes.
A Coalizão de Direitos
na Rede publicou um manifesto defendendo a
aprovação do PL e rechaçando as estratégias de Arthur Lira (Progressistas/AL),
presidente da Câmara dos Deputados, para adiar a regulação. “Infelizmente, a
aprovação do PL tem sido bloqueada pelo intenso lobby das
plataformas e pela resistência da extrema-direita, que usa a desculpa da
liberdade de expressão para favorecer corporações e manter a liberdade de
difundir conteúdos desinformativos e de ódio”, detalha o manifesto.
Além do Congresso, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revisou e apresentou alterações à Resolução
n° 23.610/2019 que relaciona atos de campanha eleitoral no ambiente digital, já
para as eleições de 2024. Medidas como a transparência em anúncios eleitorais,
com a criação de um repositório que categorize os anúncios, seus valores e
influência no processo eleitoral. Além da proibição do uso de inteligência
artificial e deep fake durante a campanha eleitoral. “Embora
vejamos com bons olhos as determinações do TSE, elas não são um antídoto para
os problemas. O cumprimento das decisões ainda depende em grande parte da
proatividade dos próprios anunciantes, que não pode ser facilmente observada,
mensurada e fiscalizada”, destaca Rose Marie Santini, professora e diretora do
Laboratório de Pesquisa em Internet e Redes Sociais (NetLab/UFRJ).
·
É preciso frear a
autorregulação pelas big techs
As empresas de
tecnologia têm um discurso amigável e conciliador, porém seguem dificultando a
pesquisa e a auditabilidade dos dados. A maior parte delas é estadunidense, e
voltada essencialmente à garantia de lucros. “Isso é uma consequência do modelo
de autorregulação das plataformas, segundo o qual elas dizem seguir
rigorosamente seus próprios termos de uso para garantir que não estão colocando
em risco a segurança de seus usuários. No entanto, nossos estudos mostram que,
na prática, os termos de uso das plataformas não impedem o impulsionamento de
desinformação, atividades ilícitas e potencialmente criminosas, o que faz com
que elas lucrem com esse tipo de conteúdo”, afirma Santini.
Em 2023, os estudos
que a diretora do NetLab coordena identificaram o investimento da
extrema-direita na veiculação de anúncios ligados a questões socioambientais,
ataques à imprensa e violência de gênero. “Dentre as estratégias utilizadas,
podemos citar a instrumentalização e distorção de determinados debates para o
favorecimento de políticas de seus interesses, como em publicações pagas que
pediam para a população que cobrasse seus representantes a votar a favor do
Marco Temporal.[1] Em outros casos,
a estratégia de microssegmentação, muitas vezes unida ao uso de discursos
motivacionais, também servia para alcançar mais pessoas e divulgar caravanas e
manifestações pró-Bolsonaro”, detalha.
A postagem no perfil do Instagram do governador do Mato Grosso,
Mauro Mendes (União Brasil), do dia 18 de setembro de 2023, defendia o Marco
Temporal como importante instrumento para trazer “mais segurança jurídica aos
povos indígenas”. Com o título “Sem Marco Temporal, Brasil vira uma confusão
sem tamanho”, ele aponta estudos que afirmam que 14% do território nacional é
indígena e, sem o Marco Temporal, poderia chegar a até 27%. Isso traria, nas
palavras de Mendes, muito caos e desemprego para o principal setor da economia
mundial, que é o agronegócio. Ele não cita fontes dessas estatísticas.
[1] O Marco Temporal das terras
indígenas, também conhecido como tese de Copacabana, é uma tese
jurídica, construída jurisprudencialmente no julgamento do caso Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009. Nele, a corte decidiu que o artigo da Constituição que garante o usufruto das terras tradicionalmente
ocupadas pelos indígenas brasileiros deveria ser interpretado contando-se apenas as terras em
posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Essa postagem foi identificada pela pesquisa Amazônia Livre de Fake, iniciativa do Intervozes com mais quinze organizações
amazônidas, e também em parceria com o NetLab, que monitoraram em 2023, 28[ perfis de políticos nos estados do Amazonas, Mato Grosso e
Pará. Os representantes eleitos, dentre eles o governador Mauro Mendes (União
Brasil/MT), pagaram com dinheiro público para impulsionar 195 anúncios com
temática socioambiental, no Facebook e Instagram. Desse total, 68 continham
desinformação e alcançaram mais de 4 milhões de visualizações e/ou interações.
O impulsionamento considera anúncios, publi-posts e manipulação da recomendação
e é uma forma de aumentar o alcance de uma determinada publicação,
potencializando a audiência de um conteúdo.
Dados digitais são
vitais para compreender o modo como as plataformas online impactam dinâmicas
políticas e sociais. A disponibilização de um repositório público de anúncios,
a exemplo do que a Meta e o Google já fizeram no Brasil, ainda que com limitações
latentes é importante. No entanto, o acesso a dados completos é cada vez mais
limitado ou até extinto pelas empresas de tecnologias. “Entre os exemplos mais
emblemáticos, está o recente anúncio do encerramento do Crowd Tangle pela
Meta: em agosto de 2024 a ferramenta que garante acesso a dados do Facebook e
Instagram será descontinuada”, ressalta Rose Marie Santini.
·
Políticas públicas de
comunicação precisam estar conectadas aos territórios
As ações diretas nos e
pelos territórios são as que têm enfrentado de fato a desinformação. Assim, as
políticas públicas deveriam seguir essa base. Acabar com a prática do
zero-rating, possibilitando o acesso ilimitado, e propor medidas para combater
os monopólios digitais são algumas das recomendações da Carta para Políticas Digitais na Amazônia lançada recentemente pelo Centro Popular de Comunicação e
Audiovisual (CPA). Outra medida efetiva seria a aplicação da Lei Geral de
Proteção de Dados (13.709/2018), que protege o uso de dados pessoais. “A gente
tem por exemplo o que foi uma luta também de muitas organizações pela
consolidação da LGPD e que está aí vigente, mas que na prática a gente continua
tendo nossos direitos em relação aos dados pessoais diariamente violados, nas
farmácias, nas ligações, no próprio WhatsApp”, relembra Jéssica Botelho.
Outra iniciativa tem
sido a educação midiática que evidencia a perspectiva da comunicação enquanto
direito humano, propondo um conjunto de ações que possibilitem uma análise
crítica sobre a mídia. A intenção é buscar compreender e lidar com as
intermediações que os meios de comunicação realizam entre nós e o mundo em que
vivemos. A Secretaria de Políticas Digitais tem caminhado nesse sentido com o
acordo de cooperação com várias entidades para a elaboração de uma Política
Nacional de Educação Midiática – entre elas, o Intervozes. Sem, contudo,
tensionar a participação cada vez mais ampla dos setores privados em relação à
elaboração dessa política. Outro ponto chave é que esteja atrelada ao
enfrentamento da concentração da mídia digital e à democratização do acesso por
uma internet pública.
Botelho chama atenção
ainda para a realidade regional amazônida, por exemplo, que envolve baixa
conexão à internet e desertos de notícias. “E agora a gente tem a Starlink (do
grupo SpaceX) chegando com tudo nos territórios, então a conectividade é um fator
que tem que ser levado em consideração, além do deslocamento, que é outra
questão específica amazônida”, complementa. A chegada dos satélites de baixa
órbita, tecnologia unicamente da Starlink, está alterando o cenário de internet
em áreas de floresta densa e de difícil acesso para instalação de
infraestrutura de fibra óptica, por exemplo. O problema é que a internet de
Elon Musk é quase onipresente: está em 90% das cidades da
Amazônia. E seus principais clientes são do ramo de atividades econômicas
nocivas à Floresta Amazônica.
Onde o Estado não
chega com internet pública de qualidade, a terceirização privada dos serviços
de conectividade tem sido a saída para a busca dos direitos das populações. A
Rede Wayuri é formada por mais de trinta comunicadores de 24 povos indígenas do
Amazonas. Por lá, a comunicação funciona por radiofonia, pendrive, bluetooth,
WhatsApp. No entanto, sempre com oscilações de conexão. A recente adoção da
internet via Starlink melhorou a qualidade do acesso, mas isso não quer dizer
que não há falhas. “A galera consegue ouvir a rádio online lá na base. E mandar
de lá as mensagens ao vivo. A gente passa as informações do que tá acontecendo
dentro do território e outros lugares conseguem ouvir”, explica Juliana
Albuquerque, do povo Baré e comunicadora da Rede Wayuri.
A responsabilidade de
uma educação midiática e da universalização do acesso à internet perpassa pela
sua democratização e descentralização, sem mercantilização. A iniciativa
latino-americana Mais poder para o povo, menos poder para as plataformas, resultado de uma articulação que acontece desde 2019, traz
alguns parâmetros importantes para esse caminho, como a corregulação por meio
de um processo de governança multissetorial, uma combinação de formas de
regulação que estejam voltadas ao interesse público e protejam a liberdade de
expressão e demais direitos humanos.
Fonte: Raquel Baster,
no Le Monde
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