Clima: Por
que apostar nos saberes ancestrais
A
catástrofe climática é um fato. É vivida, desta vez, por milhões de gaúchos e
gaúchas, particularmente e com maior impacto por aqueles e aquelas dos locais
mais afetados e que estão em situação de maior precariedade e menor proteção.
Chegou dramática. Mas a situação somente poderá gerar algum tipo de
aprendizagem, para que não seja “só mais uma”, se for capaz de ser transformada
efetivamente numa “experiência”, ou seja, num acontecimento do qual se aprende
e que, o que dele se aprende, seja duradouro e capaz de transformar a vida!
Há
muitos nomes para designar o que está acontecendo. Chamamos “catástrofe”
intencionalmente para recuperar a ideia do teatro dramático antigo que
significava o momento no qual os acontecimentos da representação se voltavam
contra a personagem principal. Etimologicamente significa: Kata “para baixo” e
strophein “virar”, virar para baixo. Tudo isso há de ajudar a “virar”, a “dar
uma virada”, esperamos. É, portanto, mais do que um desastre, uma tragédia, um
acidente, uma calamidade… ainda que todas estas sejam, de alguma forma, e
também, sinônimo daquela.
A
questão é saber, no sentido de Bruno Latour, se o fenômeno é “acontecimento”.
Para que seja, precisa levar a uma escuta profunda que transforme o fenômeno,
de simples objeto externo a ser descrito funcionalmente, a ser justificado
existencialmente, e leve a entender seu sentido, suas razões, motivadoras de
reflexões e ações capazes de modificar a própria maneira de pensar e agir, o
mais amplo e profundamente possível. Trata-se de superar a simples ocorrência,
para problematizar e gerar outras formas de ser, de desejar, de julgar, de
agir… e produzir uma ruptura com o modo normalizado e normalizador, gerar
impossíveis, mundos totalmente diferentes, outros mundos…
Transformar
ocorrências em acontecimento exige que haja reflexão, não somente reação. Sim,
o momento é de socorro, de salvamento, de solidariedade, exercida de forma tão
intensa e forte, mas é também de fazê-lo com o desejo de que não se precise
voltar a fazer, logo, de novo, uns dias depois. Há que trabalhar a
reconstrução, que não pode ser um simples retorno ao mesmo, um refazer no mesmo
lugar, posto que, para um bom número de situações, seria insistir em esperar
novos eventos traumáticos. Há um processo de responsabilização daqueles que
agiram ou que deixaram de agir para prevenir, para proteger, e não são poucas
as ausências e as faltas. Há que construir condições para a reparação das
vítimas da catástrofe climática e são milhares, aqui e em tantas outras
emergências climáticas pelo mundo.
Enfrentar
a complexidade das exigências postas pelo acontecimento requer tomar a
circunstâncias a fundo, mas não ficarmos presos elas, hão de ser transpassadas,
transfluidas, trans… A travessia que se exige neste momento é mais do que
simplesmente encontrar alguma margem, ainda que numa enchente, uma margem
física é “salvação”. Há que se fazer a travessia para buscar novas margens,
margens portadoras potenciais de novas formas de relação que denunciem o
intolerável, que travem e freiem a destruição do progresso infinito e abram à
criação que fecunda transformações profundas, novas relações, novas
existências.
Há
uma compreensão a ser construída… um acontecimento não é uma simples
casualidade, por mais que o componham. Há antecedentes, há consequências, há
causalidades, diretas, indiretas, há agentes, há relações… uma complexidade a
ser, não somente esquadrinhada, explicada, mas particularmente, compreendida,
interpretada, sentida, refletida. E para tal não se pode dispensar qualquer
tipo de saber, de sabedoria, de conhecimento. Todos eles estão convidados à
roda dialógica. Mas não dá para acolher a desinformação massiva, a produção de
informações falsas, a disseminação de ódio. Uma emergência climática é piorada
com o uso das tecnologias da informação para desinformar e para desmobilizar.
É
uma catástrofe que tem uma qualidade substantiva: é “climática”. Mas, dizê-la
assim, pode sugerir carregar a separação entre ser “climática” e ser “humana”,
reproduzindo a cisão entre natureza e cultura, tão cara ao “antropoceno”.
Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2020), alerta que “[…]
passamos a pensar que ele [o planeta] é uma coisa e nós, outra: a terra e a
humanidade”. Davi Kopenawa, em A queda do céu (2015), diz que “[os brancos]
pensam que a floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e
que é muda. Então di¬zem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear
as casas, os ca¬minhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem!”.
A
insistência em submeter, no sentido mais duro que esta palavra pode significar,
a natureza à cultura, fazendo dela um “recurso” a serviço dos humanos, faz com
que as águas sejam tratadas como inimigas da humanidade: deveriam ser
recolhidas e enviadas para longe… sobretudo nas cidades… esta é a lógica das
“drenagens”. Ao mesmo tempo, operações imensas para trazer água, de longe, do
fundo, para abastecer a sede de milhões. E as águas voltam… desta vez voltaram
com força! Voltaram para dizer que precisamos conviver com elas. Nos ensinam
que não há humanidade sem natureza. Uma catástrofe climática é uma catástrofe
humana, inclusive porque mais produto da ação humana na natureza do que o
contrário… longe de que seja uma simples “vingança” da natureza. O desafio de
retomar a interdependência entre o humano e o natural é a mensagem mais dura
que a “enchente” deixa, além de muita lama, destruição e morte.
O
quilombola Antônio Bispo dos Santos, em A terra dá, a terra quer (2023), que há
pouco encantou, chama a atenção para a necessidade de entender o movimento das
águas: vão e voltam. Ele lembra que “a água não reflui, ela transflui e, por
transfluir, chega ao lugar de onde partiu, na circularidade”. Simbólico e
exigente entender o que ele diz quando o desejo imediato é que as águas
simplesmente “refluam”, se afastem, rápido, para longe…
Bispo
dos Santos propõe que, assim como as águas, o movimento humano seja de
“transfluência”, porque, “transfluindo somos começo, meio e começo. Porque a
gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. […] Na
transfluência não há volta, porque ela é circular. Ao mesmo tempo que algo vai,
fica; ao mesmo tempo que fica, vai – sem se desconectar”.
As
lições que podem nos ajudar a aprender do acontecimento são aquelas que
transformam e, sobretudo, que mobilizam a transformações profundas e
duradouras, sustentáveis, produzindo uma virada!
Fonte:
Por Paulo César Carbonari, em Outras Palavras
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