Após a catástrofe, um novo projeto de
Brasil?
A catástrofe climática
no Rio Grande do Sul exige, a todo momento, a disposição para ajudar
concretamente as pessoas que viveram uma destruição sem precedentes em
magnitude e extensão. O estado foi dizimado pelas chuvas, como se tivesse
havido um Grande Dilúvio capaz de reduzir a zero pelo menos metade do seu
território. Cidades inteiras foram inundadas em cem por cento da sua extensão,
parecendo Atlântidas perdidas no fundo d’água. Os moradores, majoritariamente
pobres e racializados, perderam todos os seus bens. Mesmo entre a classe média
e os ricos houve perdas, pois as enchentes não pouparam negócios e os mais
diversos bairros, colocando a geografia acima da economia. A enxurrada também
levou a vida de humanos, animais, plantas e o encantamento arquitetônico de
espaços culturais, religiosos, políticos, de estradas e pontes, ruas, calçadas,
prédios, casas, enfim, uma devastação total.
Inicialmente, os
culpados foram apontados como o governo Eduardo Leite, de perfil
liberal-tecnocrático, um dos poucos tucanos que ainda estão mais ou menos
alinhados com a forma que nos acostumáramos, até 2015, do partido; e também
Sebastião Melo, no caso de Porto Alegre, prefeito também de perfil de direita
tradicional, mas mais fisiológica (emedebista) e com uma recente virada
oportunista, guiada pela pós-pandemia, para uma perspectiva bolsonarista. O
projeto de Melo para a cidade era basicamente entregá-la totalmente à
iniciativa privada, permitindo a construção de condomínios, arranha-céus e
shoppings em troca da “revitalização” de espaços públicos como a Orla e os
parques.
Mas o projeto de Melo
foi, literal e metaforicamente, inundado.
A extrema direita está
sempre atenta para manter sua base coesa, pois o “partido digital”
(Gerbaudo/Nobre) bolsonarista é um partido-movimento (duro dizer isso, Pablo
Iglesias). Sua força é a mobilização constante. E ela funciona como um “esquema
de pirâmide”, como costuma dizer Letícia Cesarino, experimentando hipóteses a
partir de nós centrais que se distribuem em redes (inclusive calculando suas
potencialidades algorítmicas) até que alguma “cole” no seu público mediante
memeficação, vídeos de influencers e “matérias” em pseudojornais digitais da
submídia bolsonarista.
No caso, vimos uma
novidade: em um cenário que seria de se esperar dominado pela ideologia
militar, como costumam acontecer com catástrofes, o ressentimento falou mais
alto. Diante da recusa do apoio da tentativa de golpe de 8/1 pela maioria da
cúpula (sem esquecer da cumplicidade de tantos outros), passaram a ser
hostilizados e tratados como traidores. Em compensação, o discurso ancap,
já tão presente em vários segmentos bolsonaristas (o mercado financeiro, o
agro, os trolls e seus influencers) passa a se tornar dominante diante das
ambiguidades da figura de Jair, ele próprio um burocrata, com seus filhos
burocratas, que saiu do Exército para os parlamentos e mantinha, inclusive, uma
mentalidade interventora até começar a flertar com a Presidência e ser “reeducado”
pelos empresários que o financiaram.
O discurso ancap é
simples e direto: deixem o governo fora disso, a sociedade civil ajuda a si
mesma, quem mais está colaborando são os empresários com seus jet-skis e barcos
de luxo e – pasmem – os bilionários com seus helicópteros. Como em geral ocorre
no universo ancap, sempre faz presença também o ressentimento
misógino: os salvamentos teriam mostrado que os homens, por sua superioridade
física, são diferentes das mulheres. Tudo isso alinhado, claro, com
pautas-bomba demagógicas e muitas orações a Deus.
Mas o que o
discurso ancap não consegue dar conta é o fato de que seus
valores estão sendo rigorosamente contrariados nos abrigos e nos salvamentos do
RS. Sua antropologia é baseada no homo economicus,
auto-interessado, maximizador das utilidades e dos benefícios, trabalhador e
respeitoso à sagrada propriedade privada. A “liberdade”, que seria seu valor
fundamental, é fundamentalmente baseada na propriedade: ser livre é ter um raio
de irradiação, como um terreno cercado, no qual o Estado não pode penetrar.
Acontece que a
catástrofe climática mostrou que as divisões clássicas da Modernidade, como o
público e o privado, o social e o individual, a natureza e a cultura – tudo se
esvaiu em um colapso de limites. O sujeito que acreditava que “o rio está lá
fora, na natureza” de repente viu as comportas da cidade não resistirem, as
proteções do seu bairro não resistirem, as portas da sua casa não resistirem. A
água “pública” encharcava sua cama, seus pertences, suas lembranças, sua
intimidade. Nenhuma “propriedade privada” é viável diante da força da Terra,
que é indiferente aos danos que produz nos nossos minúsculos sistemas
simbólicos.
Ademais, o padrão
antropológico do ancapismo é o “individualismo possessivo”, isto é, a ideia de
que o mundo é cada um fazendo por si, o Estado e os outros respeitando as
propriedades privadas e a “mão invisível” do Mercado produzindo, por meio das
suas “leis”, um equilíbrio ótimo. No caso do RS, o que vimos foi justamente o
contrário: indivíduos movendo-se para ajudar os outros, arriscando a própria
vida, doações generosas, redes de solidariedade, preocupação inclusive com os
não-humanos. Tudo contraria a lógica individualista e afirma, ao contrário, a
solidariedade social, a possibilidade do agir comunitário, a autogestão, o
cuidado e a ajuda mútua. Os abrigos são muito mais “aldeias” que “propriedades
privadas”.
Assim, como aprendemos
em 2015/18, se nós não ocupamos os lugares, alguém ocupa e decide por nós.
Penso que existem aqui
alguns caminhos que a esquerda pode adotar para tomar o RS, como em todo caso
de destruição, também como chance de algo novo aparecer. Do
contrário, veremos a repetição da pandemia: todo mundo em choque, trauma
generalizado, depois “todo mundo andando, caminhando, nada pra ver aqui,
segue a vida…”. Mesmo agora, não temos uma Comissão da Verdade e da Justiça
para as vítimas das decisões governamentais na pandemia, uma investigação das
redes de dispersão de notícias que colocam essas vidas em jogo (ok, talvez o
Inquérito do STF possa ocupar esse lugar), não tivemos a denúncia para o
Tribunal Penal Internacional de Jair Bolsonaro pelo crime de genocídio,
produzido, seguindo a tese de Deisy Ventura, por meio de uma política
deliberada de imunidade de rebanho.
Pode ser que a
devastação não seja suficiente, que tudo siga como sempre foi, mas mais pobre,
sem recursos, crescendo vagarosamente com alguns estímulos pontuais, uma década
perdida em direção ao mesmo lugar, porém com atraso causado pela inundação. Ou,
como disse Diego Viana:
Talvez
tenha chegado a hora de falar em fim das distopias, como antes falamos em fim
das utopias. De que adianta amplificar e dar corpo aos perigos de uma deriva do
mundo real se as cenas do nosso storyboard estão ocorrendo logo ao nosso lado?
E se, como bem entenderam os executivos de seguradoras e os gestores públicos
do CNU, a questão hoje não está em fabular os horrores, mas em administrá-los?
Por esse prisma, parece que a noção de distopia está perdendo o sentido e não é
mais capaz de expressar o que se pretendia com ela. O pós-apocalíptico implica
imaginar a passagem a esse pós, mas não há mais passagem a realizar, já que
estamos em plena transição.
Mas também pode ser
uma oportunidade.
Em um primeiro plano,
poderia ser a chance que Lula esteve esperando por muito tempo, talvez tendo
aparecido somente em 2008 (com a crise), de se livrar das amarras do
neoliberalismo que tem acorrentado os gastos públicos no Brasil e poder
realizar investimentos sem muitas amarras. Afinal, sem a ajuda do poder público
é impossível que a economia gaúcha se recupere a curto ou mesmo médio prazo.
Pode ser a ocasião,
como parece ter sido o anúncio de uns dias atrás, de estímulos à infraestrutura
das cidades, à renda dos pobres e refugiados, ao varejo nacional, até mesmo a
sonhada reindustrialização em algumas áreas. Isso se enquadraria em um plano de
“transição verde”, mais ou menos como um Green New Deal, capaz de
alavancar a economia do RS e, não só isso, servir de exemplo para outras
experiências em outros estados, pensando o RS como espécie de laboratório de um
novo estado de bem-estar sob a circunstância das mudanças climáticas.
Pode também ser uma
vitamina de popularidade: diante dos reflexos materiais do estímulo
governamental, a base popular da extrema direita pode começar a mudar o
pêndulo, dando razão ao economicismo liberal (it’s the economy, stupid!)
ou marxista (a infra determina a superestrutura). Os ricos vão se manter onde
sempre estiveram; a base fanatizada que até “antivaxx” se tornou não vai se
mexer. Mas os pobres podem, sim, fazer uma nova inflexão.
Digamos que não
espero menos do lulismo.
A questão é: será que
o modelo do Bem-estar social ainda é viável?
Quando perguntamos
viável, em geral as pessoas pensam em economia e geopolítica. Mas minha
pergunta é outra: será que o modelo do Estado de Bem-estar social é
viável ecologicamente?
Hoje, investigadores
diversos do Antropoceno – como Bonneuil e Fressoz, Danowski e Viveiros de
Castro, Jason Moore e Chakrabarty, Tatiana Roque e Alyne Costa, Fernando Silva
e Alexandre Costa – mostram claramente que as bases dos “Anos Dourados” no
Norte Global se deram a partir de diversas “externalizações”, entre elas o
saldo do colonialismo e o próprio meio ambiente. Ou seja, uma matriz baseada na
afluência – a soma de indústria, pleno emprego e “pleno consumo” – talvez não
seja simplesmente mais viável. Talvez é um eufemismo.
Sempre fiquei mal
surpreendido na época dos grandes debates sobre o futuro do lulismo por alguns
dos seus principais intérpretes pela completa inexistência da questão
ecológica. Aliás, o inventor do termo e sobretudo do conceito de
lulismo, André Singer, dizia em 2013 que as demandas ecológicas estavam ligadas
a uma classe média afluente que, diante da despreocupação material com a
sobrevivência, passava a se ocupar com temas mais gerais. Era mais ou menos
essa a forma como a questão era colocada: ecologia fica para depois,
agora precisamos do progresso (crescimento).
Então a questão nos
coloca em outro nível: será que conseguiremos inventar algum
modelo novo de reconstrução pós-catástrofe que não seja a repetição das
condições de possibilidade da catástrofe?
Aqui, não sei se tenho
muita esperança no lulismo. Sei que existe um esforço concentrado de Haddad e
Marina Silva de, juntos, traçarem um plano econômico que seja informado
transversalmente pela questão “verde”. Mas não sei o quanto isso é consistente
com o todo do governo. No mesmo dia em que nomeou Paulo Pimenta como ministro
especial para o RS, Lula também trocou o comando da Petrobrás e, segundo
consta, não parece que a preocupação ambiental seja a prioritária. E não falo
só da necessidade de parar, imediatamente, de queimar combustível
fóssil, mas pelo menos não buscar novas fontes e partir para ideias
alternativas, especialmente em relação a territórios decisivos como a Amazônia,
que hoje é o centro do mundo, como diz Eliane Brum. Os acenos para o
agronegócio – que, indiscutivelmente, é o “poder mais poderoso” do Brasil hoje
– também assustam. Não sei qual é a capacidade do lulismo de extrapolar seus
arranjos da década de 00 (fundamentais, é verdade) e produzir uma experiência
não mais baseada na coordenação tecnocrática da geração petista que está no
poder, e tampouco na matriz carbonífera do século XX.
Certamente, um dos
elementos que a esquerda agora deve responder, como já cobrávamos há muito
tempo, é a questão da T/terra, isto é, do espaço concreto em que a vida se
desenvolve, com suas potencialidades e seus limites, as alteridades humanas e
não-humanas, como os rios e as águas em geral, as montanhas e os morros, os
animais, a vegetação, enfim, o espaço público que já não é mais compreendido
sob a forma política tradicional, em que predominava o esquema
do Grande Divisor natureza/cultura (Latour). E, com o legado da pandemia,
aprendemos também a escutar os povos tradicionais, indígenas e quilombolas, com
seus grandes pensadores como Aílton Krenak, Davi Kopenawa, Francisco Baniwa,
Antonio Bispo, entre outros, tomando a sério suas proposições
políticas.
Em suma, o colapso
climático coloca para a esquerda a possibilidade de reintroduzir questões
radicais para as pessoas: como queremos viver? Quanto queremos trabalhar e
consumir? Onde queremos morar? O que queremos comer? Como tratar os
não-humanos? É possível viver com pouco? É possível continuar aumentando a
extensão do nosso modo atual de vida? Que valores eu busco realizar na minha
vida? O que de fato vale a pena viver? De que modo reagir aos problemas que a
Terra coloca para nós?
Essas são as questões
que podem mover os movimentos geossociais – como já são desde sempre, por
exemplo, MST, MTST, movimentos indígena e quilombola, Teia dos Povos – a fim de
provocar uma outra possibilidade de plano de regeneração do RS e do resto do Brasil,
quiçá do mundo: de baixo para cima, com cooperativas populares,
participação democrática, deliberação pública, colaboração e solidariedade,
circularidade, criação de áreas comuns, uso de materiais sustentáveis e, se
possível, orgânicos, com vistas a um reflorestamento da realidade urbana e
rural, utilizando todas as formas possíveis para contar as estórias dos
refugiados, elaborar coletiva e individualmente o estresse pós-traumático,
permitir colocar a questão do sofrimento na vida do capitalismo de plataforma,
reconstruir os ambientes e horizontes sob outra matriz ecológica.
É a força da revolta
organizada sob princípios éticos radicais que irá pressionar as instâncias
governamentais, regidas pela tautologia burocrática, para que seja posto em
ação um plano distinto de tudo que vimos ao longo do século XX e nesse início
do século XXI, tornando o Brasil, eventualmente, um experimento bem-sucedido de
regeneração diante das catástrofes ambientais.
Fonte: Por Moysés
Pinto Neto, em Outras Palavras
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