A
ideologia da não-ideologia
A
ideologia já não é o que era. Por isso convido o leitor a pôr em causa tudo o
que sabe sobre a noção de “ideologia”. Sendo embora um tema batido, deixa de o
ser se lhe disser que não vou falar nem de política partidária de um modo
geral, nem da nossa atual conjuntura doméstica. Sabemos que o mundo está a
virar à direita, enquanto as democracias entraram em erosão.
Diante
dos nossos olhos, avança paulatinamente um novo ciclo de crescimento de forças
autoritárias a nível mundial. Sabemos também que as razões estruturais que
desencadearam este processo foram múltiplas e complexas, mas elas têm a sua
génese na natureza do próprio sistema económico capitalista. A crise
petrolífera da década de setenta do século passado foi apenas sintoma de uma
viragem que já vinha de trás.
Face
à redução do crescimento econômico e das margens de lucro, o modelo fordista de
acumulação entrou em esgotamento, na medida em que, na ótica do capital, a
travagem das suas mais-valias tinha de ser contida, pelo que era necessário
transcender esse modelo, pois ele permitia demasiados direitos e poder negocial
à classe trabalhadora (pelo menos na Europa).
Nesse
contexto, multiplicaram-se os mecanismos e expedientes – formais e informais –
para inverter essa tendência, favorecendo novos modelos de gestão ditos
“flexíveis” e estimulando vínculos de trabalho mais precários, instáveis e
novas formas de subcontratação suscetíveis de gerar o “consentimento” de
trabalhadores e poupar despesas sociais aos empregadores. O sistema produtivo
mudou, o horizonte keynesiano do pleno emprego tornou-se uma miragem, acabou a
era em que uma profissão digna e estável, uma “carreira”, estava ao alcance de
qualquer um.
Assim,
a estratégia de acumulação começou a deslocar-se da esfera da indústria para os
serviços numa economia interconectada na esfera mais ampla do mercado global,
onde produção, flexibilização e consumo passaram a inscrever-se na mesma lógica
predadora de espoliação de recursos e de força de trabalho. Por isso o
enriquecimento dos muito ricos continuou a aumentar, enquanto os salários
estagnaram ou desceram. Capital e trabalho continuaram ligados mas através de
múltiplas mediações, mas continuou a ser o trabalho a fonte principal de
criação de riqueza. Com a globalização, ambos passaram a pautar-se pela
mobilidade e fluidez.
Tal
estratégia assentou em três fatores principais:
(i) a
inovação tecnológica e o desenvolvimento das novas TIC ajudaram à recuperação
dos ganhos de produtividade e ao desmembramento das empresas, acelerando as
novas cadeias de valor;
(ii) a
facilidade do comércio global estimulou as deslocalizações e os investimentos
para os países do hemisfério sul em busca de mão de obra barata; e, por último
(iii) as
mais-valias obtidas com as transações financeiras e a especulação tornaram-se
mais lucrativas do que os investimentos produtivos.
Mas
é claro que o modelo neoliberal não caiu do céu. Teve por detrás importantes
decisões de natureza política. Primeiro, no quadro do thatcherismo-reganismo, a
narrativa da prioridade à competitividade e à concorrência serviu de
justificação ao discurso eufórico da globalização, sendo este apresentado como
sinónimo de sucesso e oportunidades de enriquecimento individual. Vendeu-se a
ideia de que “não existe sociedade, apenas indivíduos”, colocando no centro o
sujeito empreendedor e até surgiram teorias anunciando “o fim do trabalho”.
Segundo,
a implosão da URSS e a queda do muro de Berlin pareceram ser a prova provada de
que não há alternativa ao capitalismo. A euforia com a competitividade e a
ilusão das “oportunidades para todos” abriram o caminho do novo El Dorado, e o
Consenso de Washington ligou os motores.
O
que acabei de referir é, em si mesmo, expressão da ideologia dominante.
Significa isto que a ideologia que importa hoje debater não é a do senso comum
político. É sociológica: um conceito inspirado em pensadores como Louis
Althusser, Terry Eagleton, Pierre Bourdieu ou Göran Therborn, entre outros. Ou
seja, a ideologia é um tipo de poder simbólico, uma narrativa ao serviço dos
grupos privilegiados, capaz de promover a aceitação ou apatia das massas,
moldando a mentalidade de larga parte dos cidadãos e das classes populares. É o
conjunto de mecanismos sociais que – para além das intenções – concorrem
objetivamente para a formatação de comportamentos através de subtis mecanismos
de fabricação do consentimento.
O
povo é seduzido pelos cantos de sereia do consumo, do entretenimento fútil, do
folclore televisivo, de fait-divers, de fake news, de noticiários e programas
alienantes e vazios de conteúdo. E quando falta o essencial das necessidades
materiais e as expectativas são abruptamente quebradas, cresce o ressentimento,
dos setores mais abandonados, que se oferece como combustível onde ardem as
vozes excitadas dos pretensos salvadores da pátria. Eles gritam contra a
“ideologia” enquanto promovem a sua própria ideologia: a culpa é dos políticos,
é a corrupção, é o Estado, é a burocracia, é o sistema que “vive à custa dos
nossos impostos” (sic), etc., etc. Esse é o gérmen do nacionalismo salvífico.
Hoje
o senso comum em expansão é o que recusa o pensamento, a pretexto do perigo das
“ideologias”. Há uma preferência deliberada pela alienação – múltiplos
“fetiches” estão ao dispor de todos, mesmo de quem é desprovido de recursos –
que se confunde com o caminho direto ao encontro da “verdade”. A predisposição
beática para a “salvação” não é exclusivo das igrejas, embora estas também
ajudem.
Entrámos
numa fase em que invocar a “ideologia” ou apontar uma voz, um discurso ou ator
político como “ideológico” se tornou uma acusação grave. Segundo a corrente
neoliberal, a única verdade são os mercados, os negócios, o poder do dinheiro e
o empreendedorismo dos indivíduos e das empresas, tomados essencialmente como
competidores entre si. Segundo a corrente neofascista, são os bons costumes, a
velha moral nacionalista, a pureza da “raça”, a “nação”, a ordem e a
autoridade, os elementos sagrados do seu credo político.
Em
comum têm o ódio à esquerda, o desprezo pela emancipação dos pobres (embora
sempre falando em seu nome), a recusa de políticas públicas e serviços eficazes
e universais (saúde, educação, justiça, segurança social, etc.), a rejeição da
solidariedade, do internacionalismo e no fundo da democracia no seu sentido
mais profundo. Este clima, hoje em dia em expansão, parece abrir caminho a
curto prazo para uma nova “caça às bruxas” onde ciganos, imigrantes, negros,
árabes, etc., e qualquer dia também “comunistas” e “socialistas” podem ser
apontados a dedo na via pública como alvos a abater. Já não se trata de pensar
nos termos de um Daniel Bell (O fim das ideologias, 1960) ou de um Francis
Fukuyama (O fim da história, 1992); trata-se de uma outra dimensão que parece
florescer perante a passividade das elites políticas pensantes e o aplauso dos
grandes media submetidos, eles mesmos, à ideologia da não-ideologia.
Fonte:
Por Elísio Estanque, jornal Público
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