Valério Arcari: Peronismo, lulismo e eleições na Argentina
Javier Milei, o candidato que unificará a direita e a
extrema-direita. O que estará em jogo é de máxima gravidade. A Argentina vive um “impasse”
histórico. O país menos desigual e com o padrão médio de vida mais elevado do
Cone Sul entrou em uma longa estagnação, ou até regressão de
“latino-americanização”. A decadência histórica, nos seus vais e vens, não foi
interrompida. Este impasse remete a uma relação estrutural de forças entre as classes.
O grande ajuste que a burguesia argentina persegue há décadas, para poder
disputar investimentos estrangeiros, favorecer as exportações, aumentar os
níveis das reservas de dólares, e estabilizar a moeda, exige uma redução do
“custo Argentina”: (a) o salário
médio teria que ser nivelado pelos salários médios brasileiros ou, pelo menos,
paulistas; (b) as políticas
públicas de transferência de renda, seja por distribuição direta de dinheiro,
seja pelos subsídios que barateiam as tarifas públicas teriam que ser suspensos
ou diminuídas, drasticamente; (c)
as privatizações teriam que ser retomadas para sustentar os planos de expansão
de mineração e grandes obras públicas; (d)
a força social de choque dos sindicatos e movimentos populares teria que ser
neutralizada. É possível um ajuste desta natureza sem uma derrota histórica da
classe trabalhadora? É possível sem uma mudança de regime político e uma ameaça
às liberdades democráticas? O pesadelo do que foi a ditadura militar de Videla e Galtieri ainda atormenta a
memória da geração mais adulta. Desconsiderando outras diferenças, como o papel
da educação e da saúde pública, Sergio Massa representa um projeto gradualista de
ajuste. Milei representa
um projeto de choque. O desafio da esquerda argentina, que subestimou o perigo
da extrema-direita, é compreender que, até novembro, não é possível lutar contra
os dois ao mesmo tempo. A denúncia de Massa pela esquerda, nas próximas quatro semanas, mesmo
quando muito justa, favorece Milei.
A longevidade da influência do peronismo é um dos temas centrais, mais instigantes,
mas, também, perturbadores da história contemporânea da Argentina. Por que o peronismo
sobreviveu? Não é possível compreender a longevidade do peronismo sem sublinhar
que se apoia em uma das classes trabalhadoras mais ativas do
mundo, sindicalmente, muito
combativa, mas, politicamente, órfã de uma representação independente. O peronismo assume o espaço de centro-esquerda, mas não é
o PT da Argentina.
O peronismo é um
nacionalismo burguês progressista, contemporâneo do falecido getulismo no Brasil, que foi
deslocado pelo PT e
pelo lulismo, unindo
diversas e, aparentemente, “incompatíveis” correntes, desde reacionários,
neoliberais, e social-democratas até socialistas, como o movimento político que
mantém maior influência nas camadas populares e recolhe, eleitoralmente, a
maioria dos votos da classe trabalhadora. Talvez, porque a classe trabalhadora
argentina foi aquela que, historicamente, obteve mais conquistas entre os
países dependentes. Portanto, aquelas na qual as ilusões reformistas de
regulação do capitalismo são mais poderosas. O peronismo é forte porque a esquerda é fraca, mas isso é um
argumento circular, não explica nada. Nem o partido comunista, nem o socialista
conseguiram ir além da marginalidade, muito em função de graves erros
políticos, em distintas oportunidades. Paradoxalmente, ao lado da Bolívia e da
França, a Argentina é o país onde o trotskismo teve no passado, e mantém até
hoje, maior audiência.
No Brasil, comparativamente, o varguismo não sobreviveu. O suicídio de Getúlio, em 1954, provocou uma explosão de fúria popular, inverteu
a relação social de forças, e conseguiu adiar por dez anos o golpe de Estado para 1964. Peron foi derrubado do governo
pelo golpe gorila de 1955, mas sua autoridade sobre o movimento sindical e as
camadas populares se manteve intacta, até 1973, quando voltou do exílio, e foi
eleito presidente. Faleceu no ano seguinte, mas o peronismo sobreviveu à sua morte, e voltou ao poder em 1989
com Carlos Menem. A experiência histórica não
tinha sido superada e, ainda em 2003, se reinventou como kirchnerismo e governou até 2015. Voltou
a vencer as eleições em 2019 com Alberto
Fernandez e Cristina,
confirmando imensa resiliência. No Brasil, em 1979, quando as lutas operárias,
estudantis e populares mudaram a relação social de forças, a liderança que
expressava a continuidade da corrente varguista, Leonel Brizola, teve que competir com o PT pela representação dos
trabalhadores e, depois de dez anos, foi derrotada, quando foi Lula que chegou ao segundo turno
contra Collor, por uma
diferença inferior a 1%, um “acidente eleitoral”.
A longa vida do peronismo passou por seis etapas: (a) o momento nacional-desenvolvimentista,
durante o primeiro mandato do general Péron e Evita,
quando se apoiou nos sindicatos para contrabalançar o peso do setor agro
exportador, fortalecer a industrialização e expansão do mercado interno; (b) o momento da resistência, quando
manteve sua influência depois do golpe de 1955 até 1973, porque as conquistas
sociais da primeira década do pós-guerra permaneceram vivas na memória social
da classe trabalhadora durante as ditaduras militares, e porque a oposição
reconheceu Péron no
exílio como o líder do movimento; (c)
o momento contrarrevolucionário, entre 1975/76, quando da posse de Isabelita e o “bruxo” de
extrema-direita Lopez Rega, que acabaram abrindo o caminho
para o golpe de 1976; (d) o
momento heroico, quando a ditadura militar de 1976/82 realizou um genocídio,
provocou um trauma histórico, e conduziu o país para uma derrota militar
na guerra das Malvinas, deixando o peronismo como
a direção das classes populares; (e)
o momento neoliberal, quando reposicionou-se como partido de centro-direita com
Menem, depois da restauração capitalista e o fim da URSS, e a dolarização nos
anos noventa; (f) o momento
“reformista” quando reinventou-se como kirchnerismo entre 2003/15 e conseguiu conter a onda de
mobilização popular com concessões, após a situação pré-revolucionária de 2002,
e estabilizou o regime.
Qual será o futuro da esquerda na etapa pós-Lula? O lulismo terá uma sobrevida depois
de Lula, como o peronismo
sem Perón? A longa vida
do PT passou, também,
por seis etapas: (a) o momento classista heroico da fundação do PT ao calor da onda
de greves entre 1978/81 até às eleições de 1989; (b) o momento institucionalização, ou plena integração como um partido
do regime, entre o apoio à posse de Itamar Franco em
1992, depois do impeachment de Collor,
e a vitória eleitoral de 2002, quando se consolidou como o maior partido de
oposição nacional; (c) o momento lulista dos dois
mandatos, entre 2003 e 2010, quando a influência pessoal de Lula decolou, e passou a ser,
qualitativamente, maior do que o petismo; (d) o momento dilmista, entre 2010 e 2016,
quando Lula acaba
aceitando, contrariado, a disputa da reeleição, uma fase neodesenvolvimentistas
que termina com o deslocamento da burguesia para a oposição e, finalmente, para
o golpe; (e) o momento heroico, a prisão de Lula durante
um ano e meio, a resistência durante sete anos de acumulação de derrotas que
culminaram com a eleição de Bolsonaro;
(f) o momento atual, aberto pela
estreita vitória da eleição de Lula contra Bolsonaro em 2022.
O PT já
demonstrou ter imensa resiliência, mas pode manter a influência de massas
do lulismo dos últimos quarenta anos, sem Lula? Dependerá, pelo menos, de quatro
fatores: (a) a economia não pode
parar de crescer, mesmo que lentamente, porque a estagnação, ou pior, uma
contração ameaçará a ampla coligação com os partidos burgueses, e a
governabilidade; (b) não bastará
o crescimento, o governo Lula precisa
responder, até 2026, às
demandas populares mais agudas, alimentando a esperança de que é possível,
através de uma estratégia reformista, melhorar a vida; (c) a corrente neofascista deverá ser derrotada, e sua audiência em
parcelas da classe trabalhadoras do sudeste e sul do país terá que refluir; (d) uma liderança do PT precisará emergir, superando
as disputas pessoais pelo poder, e se afirmar com capacidade de construir
coesão interna. Uma transição mais lenta, segura e controlada poderia ser
feita, se Lula puder
concorrer em 2026 e
vencer. Mas será abrupta, convulsiva e, provavelmente, com danos irreparáveis,
se for feita sem Lula. A
única certeza é que a esquerda vai se dividir, porque haverá luta devastadora
dentro do PT, disputas
internas no PSol e
no PCdoB e,
provavelmente, mais momentos “vulcânicos”, como a divisão da Consulta Popular e do PCB, na esquerda radical.
Ainda é cedo para prever o desenho dos campos, mas
há algumas hipóteses mais prováveis, em função dos posicionamentos atuais.
O PT interrompeu a
dinâmica de crise que vinha acumulando desde 2013, e recuperou autoridade, em
função do golpe institucional contra Dilma Rousseff,
e do impacto de sete anos de derrotas acumuladas. Atingiu o seu ápice em 2022
com o agigantamento de Lula ao
sair da prisão liderando a campanha contra Bolsonaro. Mas não conseguiu fechar, totalmente, o flanco à sua
esquerda. A relocalização do PSol,
que assumiu liderança nos movimentos feminista e negro, indígena e LGBT, estudantil e popular, e o protagonismo do MTST projetaram Boulos, que chegou ao segundo turno em São Paulo em 2020
e, conquistando mais de um milhão de votos em 2022, se afirmou como a segunda
liderança popular mais influente do país, emparelhando ou até superando Haddad, que tinha substituído Lula na eleição contra Bolsonaro em 2018. Ninguém pode
prever qual será o desfecho do governo Lula. Manterá os índices de aprovação atuais, acima de 50%, irá se
fortalecer ou enfraquecer? A resposta depende de muitos fatores, por hoje
imprevisíveis, o que recomenda um saudável “empirismo leninista”. Mas a disputa
da prefeitura de São Paulo em 2024 será a mãe de todas as batalhas futuras.
Se Boulos sair
reforçado, qualitativamente, por uma vitória, muda a relação de forças dentro
da esquerda, e o PT sairá,
inescapavelmente, diminuído, mesmo tendo apoiado o Psol desde o primeiro turno. Mas ainda terá, talvez, a
“carta” Lula o que
pode atrasar a reorganização pela esquerda do PT, e um papel maior de Boulos.
Não é possível antecipar o cenário das
presidenciais de 2026, diante de incógnitas chaves. Lula terá condições de disputar a
reeleição? Bolsonaro poderá
ser candidato? A extrema-direita sem Bolsonaro conseguirá preservar o grau de influência que
conquistou? O Brasil conseguirá manter o crescimento, caminhará para estagnação
ou até recessão, em função da retração do mercado mundial? Qual o desenlace das
duas guerras atuais, na Ucrânia em Gaza, e seus impactos? Qual o desfecho
das eleições nos EUA?
Entretanto, se o contexto de 2022 se repetir, e considerando as dificuldades
imensas que o governo Lula irá
enfrentar nos próximos anos, a hipótese mais provável é que a eleição será
muito difícil, e a maioria da base social da esquerda se posicionará em
estratégia defensiva, como na Argentina agora.
Se viesse a ser assim, o PT ganharia
tempo histórico, mesmo que desmoronando por dentro. Mas, são muitos
contrafactuais, e há outras hipóteses. Ainda é cedo para saber se o PT terá sete vidas.
Ø Polarização e incerteza marcam a eleição na Argentina. Por Lara Torres
Em outubro a Argentina passou pelo primeiro turno de uma eleição
presidencial extremamente polarizada que
resultou num 2º turno vindouro entre o atual ministro da Economia e integrante da coalizão
Unión por la Patria, Sergio Massa , e
o deputado de extrema direita, Javier Milei , da coalizão Libertad Avanza.
A decisão definitiva virá no dia 19 de novembro,
quando os eleitores irão às urnas escolher entre o responsável pela economia em
frangalhos devido à dívida externa e inflação altas; e um candidato “outsider”
que se inspira em figuras como Jair Bolsonaro e Donald
Trump.
Mesmo com as primeiras pesquisas apontando certa
vantagem de Massa sobre Milei o resultado ainda é imprevisível, e a única
certeza é que o vencedor do pleito terá pela frente um governo difícil, com
desafios econômicos e políticos na relação com o Congresso.
Na análise de Paola Zuban, cientista política,
mestre em Comunicação Política, co-fundadora, sócia e diretora de pesquisa na
consultoria Zuban Córdoba y Asociados, o crescimento de Sergio Massa - que
estava atrás nas pesquisas - entre as eleições primárias e o primeiro turno é um resultado tanto de uma
estratégia bem traçada da campanha de Massa, quanto de erros de Milei e seus
aliados na semana que antecedeu o primeiro turno.
Ela cita, por exemplo, falas de aliados de Milei
que levantaram propostas que causaram medo na população, como a ideia de permitir
que homens renunciem à paternidade de seus filhos; de ruptura com o Vaticano e
ataques feitos ao Papa Francisco - que é argentino - num país
majoritariamente católico.
“Milei
tentou moderar um pouco o discurso, mas na última semana voltou à sua radicalização,
com um tom muito agressivo contra o resto dos dirigentes políticos e
particularmente contra o ‘Radicalismo’, um dos partidos mais antigos da
política da Argentina, que integra a coalizão ‘Juntos Por El Cambio’ da
candidata Patricia Bullrich", explicou a cientista política.
"Por outro lado, a campanha de Sergio Massa
foi cirúrgico em sua campanha nos lugares do país onde houve abstenção de
eleitores. Ele foi buscar, com a estrutura partidária do Peronismo, aqueles
eleitores para que fossem votar nas eleições gerais. Isso fez uma grande
diferença no primeiro turno”, argumentou Paola.
Após o primeiro turno, Milei recebeu o apoio tanto da candidata que ficou em 3º
lugar, Patricia Bullrich, quanto do ex-presidente Mauricio Macri , provocando uma ruptura na coalizão “Juntos por el Cambio”, pois
muitos parlamentares de centro-direita recém-eleitos não desejam se associar às
ideias de Milei.
“Muitos deputados e senadores estão anunciando que
não concordam com o acordo entre Patricia Bullrich e Javier Milei,
reconfigurando um novo cenário político. O ‘Juntos por el Cambio’, que era a
principal força de oposição até o surgimento de Milei, está dividido entre os
que apoiam Javier Milei e os que dizem que ele é, literalmente, um desastre
para a democracia e uma ameaça ao povo argentino."
Diante disso, Paola avalia que Sergio Massa tem,
hoje, "um cenário um pouco mais favorável para disputar a presidência se
considerarmos os apoios e os setores que se afastaram de Javier Milei”.
Apesar do descontentamento do povo argentino -
especialmente da classe média - frente à perda de qualidade de vida causada
pela corrosão da economia ter favorecido o crescimento das ideias extremistas
que Milei representa, o desfecho da campanha causou medo de um possível governo
de extrema direita.
Esse fato levou parlamentares de oposição que não
querem apoiar um candidato como Milei a se manifestarem contra o apoio da candidata
derrotada Patricia Bullrich ao ultradireitista.
“As propostas de Javier Milei estão tão próximas
das ideias levadas a cabo por Bolsonaro, num movimento que não é exclusivo da
América Latina. Vimos avanços da direita radicalizada, aproveitando-se do
descontentamento dos cidadãos, da frustração das pessoas com a política
tradicional, que não tem sido capaz de responder à demanda por melhoria da
qualidade de vida”, disse Paola.
“A Argentina
precisou emitir muita moeda para fazer frente à pandemia, e isso gerou uma
espiral inflacionária que criou uma crise econômica muito profunda, somada à
dívida externa que a Argentina contraiu durante o mandato de Macri. Esses dois
fatores que desvalorizam o peso deterioraram muito a qualidade de vida da
classe média tradicional Argentina”, contou a cientista política.
Paola pontua que, ao mesmo tempo, classes sociais
mais vulneráveis que historicamente se identificam com o Peronismo , “tinham proteção social e pertencimento ao Peronismo, se
sentiram abandonadas durante a pandemia. Isso debilitou as forças políticas
tradicionais, e por isso cresce muito a direita radicalizada que vem com uma
receita de plano econômico que promete magicamente, através da dolarização da
economia, resolver todos os problemas”.
Assim, o cenário político fica ainda mais incerto,
visto que a população está muito dividida e não é possível determinar qual dos candidatos
tem a maior vantagem. “No segundo turno, a eleição se polariza muito e as
diferenças sempre são muito apertadas. O contexto hoje é muito atípico, está
muito alvoroçado e é bastante complexo”, disse Paola.
Seja quem for o próximo presidente, Paola destaca
que o governo será difícil, não só pela ausência de apoio popular massivo, mas
pela dificuldade de conseguir maioria no Congresso para levar reformas
adiante.
“Vamos ter um presidente que vai ter metade do país
contra si e um congresso muito complexo, porque o peronismo perdeu a maioria no
Congresso eleito no primeiro turno, enquanto ‘Juntos Por El Cambio’ está
fragmentado. Não se sabe como vão se estruturar os grupos na Câmara dos
Deputados. O ‘Libertad Avanza’ obteve pelo menos 40 assentos na Câmara dos
Deputados", explicou Paola.
A cientista política explicou que após o resultado
do primeiro turno, há mais deputados e senadores alinhados ao Peronismo, mas
com muito pouca diferença em relação ao número de parlamentares de oposição da
coalizão "Juntos Por El Cambio."
"Para ter maioria na Câmara, é necessário 107
deputados. Preciso verificar com mais precisão, mas creio que o peronismo tem
104 deputados; que Juntos Por El Cambio tem 91; enquanto Libertad Avanza de
Milei tem aproximadamente 41 deputados. Então temos 2 candidatos que não terão
maioria parlamentar e vão precisar de Juntos Por El Cambio para negociar
qualquer mudança que queiram propor no Congresso.”
Fonte: IHU OnLine/iG
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