quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Valério Arcari: Peronismo, lulismo e eleições na Argentina

Javier Milei, o candidato que unificará a direita e a extrema-direita. O que estará em jogo é de máxima gravidade. A Argentina vive um “impasse” histórico. O país menos desigual e com o padrão médio de vida mais elevado do Cone Sul entrou em uma longa estagnação, ou até regressão de “latino-americanização”. A decadência histórica, nos seus vais e vens, não foi interrompida. Este impasse remete a uma relação estrutural de forças entre as classes. O grande ajuste que a burguesia argentina persegue há décadas, para poder disputar investimentos estrangeiros, favorecer as exportações, aumentar os níveis das reservas de dólares, e estabilizar a moeda, exige uma redução do “custo Argentina”: (a) o salário médio teria que ser nivelado pelos salários médios brasileiros ou, pelo menos, paulistas; (b) as políticas públicas de transferência de renda, seja por distribuição direta de dinheiro, seja pelos subsídios que barateiam as tarifas públicas teriam que ser suspensos ou diminuídas, drasticamente; (c) as privatizações teriam que ser retomadas para sustentar os planos de expansão de mineração e grandes obras públicas; (d) a força social de choque dos sindicatos e movimentos populares teria que ser neutralizada. É possível um ajuste desta natureza sem uma derrota histórica da classe trabalhadora? É possível sem uma mudança de regime político e uma ameaça às liberdades democráticas? O pesadelo do que foi a ditadura militar de Videla e Galtieri ainda atormenta a memória da geração mais adulta. Desconsiderando outras diferenças, como o papel da educação e da saúde pública, Sergio Massa representa um projeto gradualista de ajuste. Milei representa um projeto de choque. O desafio da esquerda argentina, que subestimou o perigo da extrema-direita, é compreender que, até novembro, não é possível lutar contra os dois ao mesmo tempo. A denúncia de Massa pela esquerda, nas próximas quatro semanas, mesmo quando muito justa, favorece Milei.

A longevidade da influência do peronismo é um dos temas centrais, mais instigantes, mas, também, perturbadores da história contemporânea da Argentina. Por que o peronismo sobreviveu? Não é possível compreender a longevidade do peronismo sem sublinhar que se apoia em uma das classes trabalhadoras mais ativas do mundo, sindicalmente, muito combativa, mas, politicamente, órfã de uma representação independente. O peronismo assume o espaço de centro-esquerda, mas não é o PT da Argentina. O peronismo é um nacionalismo burguês progressista, contemporâneo do falecido getulismo no Brasil, que foi deslocado pelo PT e pelo lulismo, unindo diversas e, aparentemente, “incompatíveis” correntes, desde reacionários, neoliberais, e social-democratas até socialistas, como o movimento político que mantém maior influência nas camadas populares e recolhe, eleitoralmente, a maioria dos votos da classe trabalhadora. Talvez, porque a classe trabalhadora argentina foi aquela que, historicamente, obteve mais conquistas entre os países dependentes. Portanto, aquelas na qual as ilusões reformistas de regulação do capitalismo são mais poderosas. O peronismo é forte porque a esquerda é fraca, mas isso é um argumento circular, não explica nada. Nem o partido comunista, nem o socialista conseguiram ir além da marginalidade, muito em função de graves erros políticos, em distintas oportunidades. Paradoxalmente, ao lado da Bolívia e da França, a Argentina é o país onde o trotskismo teve no passado, e mantém até hoje, maior audiência.

No Brasil, comparativamente, o varguismo não sobreviveu. O suicídio de Getúlio, em 1954, provocou uma explosão de fúria popular, inverteu a relação social de forças, e conseguiu adiar por dez anos o golpe de Estado para 1964. Peron foi derrubado do governo pelo golpe gorila de 1955, mas sua autoridade sobre o movimento sindical e as camadas populares se manteve intacta, até 1973, quando voltou do exílio, e foi eleito presidente. Faleceu no ano seguinte, mas o peronismo sobreviveu à sua morte, e voltou ao poder em 1989 com Carlos Menem. A experiência histórica não tinha sido superada e, ainda em 2003, se reinventou como kirchnerismo e governou até 2015. Voltou a vencer as eleições em 2019 com Alberto Fernandez e Cristina, confirmando imensa resiliência. No Brasil, em 1979, quando as lutas operárias, estudantis e populares mudaram a relação social de forças, a liderança que expressava a continuidade da corrente varguista, Leonel Brizola, teve que competir com o PT pela representação dos trabalhadores e, depois de dez anos, foi derrotada, quando foi Lula que chegou ao segundo turno contra Collor, por uma diferença inferior a 1%, um “acidente eleitoral”.

A longa vida do peronismo passou por seis etapas: (a) o momento nacional-desenvolvimentista, durante o primeiro mandato do general Péron e Evita, quando se apoiou nos sindicatos para contrabalançar o peso do setor agro exportador, fortalecer a industrialização e expansão do mercado interno; (b) o momento da resistência, quando manteve sua influência depois do golpe de 1955 até 1973, porque as conquistas sociais da primeira década do pós-guerra permaneceram vivas na memória social da classe trabalhadora durante as ditaduras militares, e porque a oposição reconheceu Péron no exílio como o líder do movimento; (c) o momento contrarrevolucionário, entre 1975/76, quando da posse de Isabelita e o “bruxo” de extrema-direita Lopez Rega, que acabaram abrindo o caminho para o golpe de 1976; (d) o momento heroico, quando a ditadura militar de 1976/82 realizou um genocídio, provocou um trauma histórico, e conduziu o país para uma derrota militar na guerra das Malvinas, deixando o peronismo como a direção das classes populares; (e) o momento neoliberal, quando reposicionou-se como partido de centro-direita com Menem, depois da restauração capitalista e o fim da URSS, e a dolarização nos anos noventa; (f) o momento “reformista” quando reinventou-se como kirchnerismo entre 2003/15 e conseguiu conter a onda de mobilização popular com concessões, após a situação pré-revolucionária de 2002, e estabilizou o regime.

Qual será o futuro da esquerda na etapa pós-Lula? O lulismo terá uma sobrevida depois de Lula, como o peronismo sem Perón? A longa vida do PT passou, também, por seis etapas: (a) o momento classista heroico da fundação do PT ao calor da onda de greves entre 1978/81 até às eleições de 1989; (b) o momento institucionalização, ou plena integração como um partido do regime, entre o apoio à posse de Itamar Franco em 1992, depois do impeachment de Collor, e a vitória eleitoral de 2002, quando se consolidou como o maior partido de oposição nacional; (c) o momento lulista dos dois mandatos, entre 2003 e 2010, quando a influência pessoal de Lula decolou, e passou a ser, qualitativamente, maior do que o petismo; (d) o momento dilmista, entre 2010 e 2016, quando Lula acaba aceitando, contrariado, a disputa da reeleição, uma fase neodesenvolvimentistas que termina com o deslocamento da burguesia para a oposição e, finalmente, para o golpe; (e) o momento heroico, a prisão de Lula durante um ano e meio, a resistência durante sete anos de acumulação de derrotas que culminaram com a eleição de Bolsonaro; (f) o momento atual, aberto pela estreita vitória da eleição de Lula contra Bolsonaro em 2022.

O PT já demonstrou ter imensa resiliência, mas pode manter a influência de massas do lulismo dos últimos quarenta anos, sem Lula? Dependerá, pelo menos, de quatro fatores: (a) a economia não pode parar de crescer, mesmo que lentamente, porque a estagnação, ou pior, uma contração ameaçará a ampla coligação com os partidos burgueses, e a governabilidade; (b) não bastará o crescimento, o governo Lula precisa responder, até 2026, às demandas populares mais agudas, alimentando a esperança de que é possível, através de uma estratégia reformista, melhorar a vida; (c) a corrente neofascista deverá ser derrotada, e sua audiência em parcelas da classe trabalhadoras do sudeste e sul do país terá que refluir; (d) uma liderança do PT precisará emergir, superando as disputas pessoais pelo poder, e se afirmar com capacidade de construir coesão interna. Uma transição mais lenta, segura e controlada poderia ser feita, se Lula puder concorrer em 2026 e vencer. Mas será abrupta, convulsiva e, provavelmente, com danos irreparáveis, se for feita sem Lula. A única certeza é que a esquerda vai se dividir, porque haverá luta devastadora dentro do PT, disputas internas no PSol e no PCdoB e, provavelmente, mais momentos “vulcânicos”, como a divisão da Consulta Popular e do PCB, na esquerda radical.

Ainda é cedo para prever o desenho dos campos, mas há algumas hipóteses mais prováveis, em função dos posicionamentos atuais. O PT interrompeu a dinâmica de crise que vinha acumulando desde 2013, e recuperou autoridade, em função do golpe institucional contra Dilma Rousseff, e do impacto de sete anos de derrotas acumuladas. Atingiu o seu ápice em 2022 com o agigantamento de Lula ao sair da prisão liderando a campanha contra Bolsonaro. Mas não conseguiu fechar, totalmente, o flanco à sua esquerda. A relocalização do PSol, que assumiu liderança nos movimentos feminista e negro, indígena e LGBT, estudantil e popular, e o protagonismo do MTST projetaram Boulos, que chegou ao segundo turno em São Paulo em 2020 e, conquistando mais de um milhão de votos em 2022, se afirmou como a segunda liderança popular mais influente do país, emparelhando ou até superando Haddad, que tinha substituído Lula na eleição contra Bolsonaro em 2018. Ninguém pode prever qual será o desfecho do governo Lula. Manterá os índices de aprovação atuais, acima de 50%, irá se fortalecer ou enfraquecer? A resposta depende de muitos fatores, por hoje imprevisíveis, o que recomenda um saudável “empirismo leninista”. Mas a disputa da prefeitura de São Paulo em 2024 será a mãe de todas as batalhas futuras. Se Boulos sair reforçado, qualitativamente, por uma vitória, muda a relação de forças dentro da esquerda, e o PT sairá, inescapavelmente, diminuído, mesmo tendo apoiado o Psol desde o primeiro turno. Mas ainda terá, talvez, a “carta” Lula o que pode atrasar a reorganização pela esquerda do PT, e um papel maior de Boulos.

Não é possível antecipar o cenário das presidenciais de 2026, diante de incógnitas chaves. Lula terá condições de disputar a reeleição? Bolsonaro poderá ser candidato? A extrema-direita sem Bolsonaro conseguirá preservar o grau de influência que conquistou? O Brasil conseguirá manter o crescimento, caminhará para estagnação ou até recessão, em função da retração do mercado mundial? Qual o desenlace das duas guerras atuais, na Ucrânia em Gaza, e seus impactos? Qual o desfecho das eleições nos EUA? Entretanto, se o contexto de 2022 se repetir, e considerando as dificuldades imensas que o governo Lula irá enfrentar nos próximos anos, a hipótese mais provável é que a eleição será muito difícil, e a maioria da base social da esquerda se posicionará em estratégia defensiva, como na Argentina agora. Se viesse a ser assim, o PT ganharia tempo histórico, mesmo que desmoronando por dentro. Mas, são muitos contrafactuais, e há outras hipóteses. Ainda é cedo para saber se o PT terá sete vidas.

 

Ø  Polarização e incerteza marcam a eleição na Argentina. Por Lara Torres

 

Em outubro a Argentina passou pelo primeiro turno de uma eleição presidencial extremamente polarizada que resultou num 2º turno vindouro entre o atual ministro da Economia e integrante da coalizão Unión por la Patria, Sergio Massa , e o deputado de extrema direita, Javier Milei , da coalizão Libertad Avanza. 

A decisão definitiva virá no dia 19 de novembro, quando os eleitores irão às urnas escolher entre o responsável pela economia em frangalhos devido à dívida externa e inflação altas; e um candidato “outsider” que se inspira em figuras como Jair Bolsonaro e Donald Trump.

Mesmo com as primeiras pesquisas apontando certa vantagem de Massa sobre Milei o resultado ainda é imprevisível, e a única certeza é que o vencedor do pleito terá pela frente um governo difícil, com desafios econômicos e políticos na relação com o Congresso. 

Na análise de Paola Zuban, cientista política, mestre em Comunicação Política, co-fundadora, sócia e diretora de pesquisa na consultoria Zuban Córdoba y Asociados, o crescimento de Sergio Massa - que estava atrás nas pesquisas - entre as eleições primárias e o primeiro turno é um resultado tanto de uma estratégia bem traçada da campanha de Massa, quanto de erros de Milei e seus aliados na semana que antecedeu o primeiro turno.

Ela cita, por exemplo, falas de aliados de Milei que levantaram propostas que causaram medo na população, como a ideia de permitir que homens renunciem à paternidade de seus filhos; de ruptura com o Vaticano e ataques feitos ao Papa Francisco - que é argentino -  num país majoritariamente católico.

 “Milei tentou moderar um pouco o discurso, mas na última semana voltou à sua radicalização, com um tom muito agressivo contra o resto dos dirigentes políticos e particularmente contra o ‘Radicalismo’, um dos partidos mais antigos da política da Argentina, que integra a coalizão ‘Juntos Por El Cambio’ da candidata Patricia Bullrich", explicou a cientista política.

"Por outro lado, a campanha de Sergio Massa foi cirúrgico em sua campanha nos lugares do país onde houve abstenção de eleitores. Ele foi buscar, com a estrutura partidária do Peronismo, aqueles eleitores para que fossem votar nas eleições gerais. Isso fez uma grande diferença no primeiro turno”, argumentou Paola.

Após o primeiro turno, Milei recebeu o apoio tanto da candidata que ficou em 3º lugar, Patricia Bullrich, quanto do ex-presidente Mauricio Macri , provocando uma ruptura na coalizão “Juntos por el Cambio”, pois muitos parlamentares de centro-direita recém-eleitos não desejam se associar às ideias de Milei. 

“Muitos deputados e senadores estão anunciando que não concordam com o acordo entre Patricia Bullrich e Javier Milei, reconfigurando um novo cenário político. O ‘Juntos por el Cambio’, que era a principal força de oposição até o surgimento de Milei, está dividido entre os que apoiam Javier Milei e os que dizem que ele é, literalmente, um desastre para a democracia e uma ameaça ao povo argentino."

Diante disso, Paola avalia que Sergio Massa tem, hoje, "um cenário um pouco mais favorável para disputar a presidência se considerarmos os apoios e os setores que se afastaram de Javier Milei”. 

Apesar do descontentamento do povo argentino - especialmente da classe média - frente à perda de qualidade de vida causada pela corrosão da economia ter favorecido o crescimento das ideias extremistas que Milei representa, o desfecho da campanha causou medo de um possível governo de extrema direita.

Esse fato levou parlamentares de oposição que não querem apoiar um candidato como Milei a se manifestarem contra o apoio da candidata derrotada Patricia Bullrich ao ultradireitista.

“As propostas de Javier Milei estão tão próximas das ideias levadas a cabo por Bolsonaro, num movimento que não é exclusivo da América Latina. Vimos avanços da direita radicalizada, aproveitando-se do descontentamento dos cidadãos, da frustração das pessoas com a política tradicional, que não tem sido capaz de responder à demanda por melhoria da qualidade de vida”, disse Paola.

 “A Argentina precisou emitir muita moeda para fazer frente à pandemia, e isso gerou uma espiral inflacionária que criou uma crise econômica muito profunda, somada à dívida externa que a Argentina contraiu durante o mandato de Macri. Esses dois fatores que desvalorizam o peso deterioraram muito a qualidade de vida da classe média tradicional Argentina”, contou a cientista política. 

Paola pontua que, ao mesmo tempo, classes sociais mais vulneráveis que historicamente se identificam com o Peronismo , “tinham proteção social e pertencimento ao Peronismo, se sentiram abandonadas durante a pandemia. Isso debilitou as forças políticas tradicionais, e por isso cresce muito a direita radicalizada que vem com uma receita de plano econômico que promete magicamente, através da dolarização da economia, resolver todos os problemas”.

Assim, o cenário político fica ainda mais incerto, visto que a população está muito dividida e não é possível determinar qual dos candidatos tem a maior vantagem. “No segundo turno, a eleição se polariza muito e as diferenças sempre são muito apertadas. O contexto hoje é muito atípico, está muito alvoroçado e é bastante complexo”, disse Paola. 

Seja quem for o próximo presidente, Paola destaca que o governo será difícil, não só pela ausência de apoio popular massivo, mas pela dificuldade de conseguir maioria no Congresso para levar reformas adiante. 

“Vamos ter um presidente que vai ter metade do país contra si e um congresso muito complexo, porque o peronismo perdeu a maioria no Congresso eleito no primeiro turno, enquanto ‘Juntos Por El Cambio’ está fragmentado. Não se sabe como vão se estruturar os grupos na Câmara dos Deputados. O ‘Libertad Avanza’ obteve pelo menos 40 assentos na Câmara dos Deputados", explicou Paola.

A cientista política explicou que após o resultado do primeiro turno, há mais deputados e senadores alinhados ao Peronismo, mas com muito pouca diferença em relação ao número de parlamentares de oposição da coalizão "Juntos Por El Cambio."

"Para ter maioria na Câmara, é necessário 107 deputados. Preciso verificar com mais precisão, mas creio que o peronismo tem 104 deputados; que Juntos Por El Cambio tem 91; enquanto Libertad Avanza de Milei tem aproximadamente 41 deputados. Então temos 2 candidatos que não terão maioria parlamentar e vão precisar de Juntos Por El Cambio para negociar qualquer mudança que queiram propor no Congresso.”

 

Fonte: IHU OnLine/iG

 

Nenhum comentário: