quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Estiagem histórica no Norte: 'A gente fica dodói', diz criança indígena sobre beber água suja após seca

O Profissão Repórter de terça-feira (31) foi até o Amazonas conhecer as histórias por trás da grave seca que atinge várias cidades do estado. No município de Tefé, os repórteres Nathalia Tavolieri e André Neves conversaram com indígenas da tribo Arauiri que, com a seca do Rio Solimões, ficaram isolados.

Sem água potável o suficiente para beber, muitas famílias tiveram que matar a sede com água impropria. Muitos casos de diarreia foram registrados na população. A reportagem conversou com algumas crianças que beberam essa água.

“Antigamente, quando era cheia essa água aí, era bem limpinha. A gente podia pular na água, ficava um monte de peixe vivo. Agora, quando secou, fica morrendo os peixes. As águas tão ficando com bichinho. A gente fica dodói da barriga. A gente fica bebendo essa água e fica doente”, afirmou uma menina, moradora da comunidade.

Segundo outra criança, a água, praticamente um resto do Rio Solimões, tem gosto de lama.

Outra moradora fala que, com a seca, moradores da região agora encaram uma caminhada longa para chegar às margens do Rio Solimões e conseguir água.

“A dificuldade é sobre as diarreias que as crianças estão tendo. A gente não está tendo água para dar para as crianças. Tem que caminhar uma hora e 30 minutos para poder chegar à beira do rio”, reclama uma moradora.

•        Falta de estrutura e abandono

“A gente não tem assistência, não tem como levar um paciente para fora. Furtaram até a lancha da saúde”, acrescenta a moradora.

Ela levou os repórteres para conhecer o posto de saúde da Aldeia Nova Esperança. Segundo ela, equipes de saúde visitam o local uma vez por mês e deixam uma quantidade pequena de medicamentos.

“Eles vêm aqui uma vez por mês. Só isso [aponta para alguns frascos e comprimidos] para a nossa comunidade, que são 18 famílias. Casos de diarreia, vômito, não temos remédios”, explica.

Ainda de acordo com ela, os adultos da comunidade trataram as crianças com receitas caseiras, devido à falta de medicamentos.

Os moradores dizem que a Defesa Civil entregou galões de água e cestas básicas para a aldeia, mas que não foi o suficiente para suprir a demanda da comunidade.

 

       Falta de chuvas causa desemprego, sede e muda vida de ribeirinhos

 

A seca que atinge o Amazonas, revela os impactos na vida da população. A estiagem já afeta mais de 600 mil pessoas no estado. “É a guerra da seca no Amazonas”, destaca um morador.

Em Manaus, a equipe do Profissão Repórter avistou o Rio Negro, que apresentou a pior seca dos últimos 121 anos, bastante distante da orla. Os trabalhadores precisam andar embaixo do sol entre os comércios que ficam na avenida e as embarcações.

“O ribeirinho, nós estamos vivendo uma calamidade muito grande, que fica tudo ruim. Fica ruim o transporte, a pesca, fica ruim em geral”, diz uma ribeirinha.

•        Falta de água potável

A equipe navegou de barco por duas comunidades, que ficam às margens do Rio Negro. O líder comunitário Júlio César Santos descreveu as dificuldades enfrentadas pelos moradores devido à seca.

“Essas duas comunidades no período da cheia, não existe terra, são comunidades flutuantes e estão com uma dificuldade enorme de peixes porque secou muito e quando seca a gente percebe também o canto dos pássaros, até a cor da água, o cheiro e esse ano está totalmente diferente”, relata.

É possível ver casas flutuantes que agora vivem na terra. Uma mangueira precisou ser emendada várias vezes para alcançar a água do rio que está cada vez mais distante das casas.

Para comprar água potável, os moradores precisam atravessar o Rio Negro até Manaus.

“Aqui a gente é esquecido. A gente tem quase 450 pessoas aqui, e a gente não é visto por ninguém. Eu tenho uma filha pequena, que graças a Deus, ela está bem de saúde. A gente está passando por uma situação muito difícil e quer que alguma coisa seja feita, para pelo menos amenizar o sofrimento de cada família”, destaca o produtor de carvão, Anderson Souza Aguiar.

•        Problemas de transporte

Em Tefé, a mais de 500 km da capital Manaus, a equipe testemunha as águas do Rio Tefé, um dos afluentes do Rio Solimões, drasticamente reduzidas, onde é possível ver até peixes mortos. Foi nas margens desse rio que 150 botos e tucuxis foram encontrados mortos, após o lago atingir os 40°C no ápice da seca. O calor é uma das possíveis causas da morte dos botos.

“Nós amazônicos somos todos dependentes da água, e esse ambiente agora não está propício para o boto, não está propício para nós, para a população e a tendência vai ser piorar”, relata a pesquisadora do Instituto Mamirauá, Miriam Marmontel.

Águas do Rio Tefé, um dos afluentes do Rio Solimões, foram drasticamente reduzidas, onde é possível ver até peixes mortos — Foto: Reprodução/TV Globo

A seca também tem afetado as embarcações que levam mercadorias de Manaus, até cidade de Tefé. Como resultado, pensando no bolso dos consumidores. “Aumentou tudo, alimento, refrigerante. Aumentou frete, aumentou custo do supermercado”, diz um homem na embarcação.

No porto da cidade, o Profissão flagrou ainda uma fila gigante de pessoas que foram sacar o bolsa-familia. Com os caminhos das comunidades ribeirinhas até Tefé, prejudicados pela seca, muitos moradores saíram de casa de madrugada e se concentram em frente à agência da Caixa.

“Tem impactado muito. Para a gente vir de lá, foram 4 horas de viagem, com criança pequena e estava muito quente. A gente veio de canoa e fica muito difícil pra gente“, conta a pescadora, Leomara Pereira.

•        O desemprego

Em Igarapé do Mauzinho, flutuantes vivem fora da água. Esse é caso do Francisco Freira da Cunha.

“Tenho 75 anos. E estamos nessa situação aqui. Ninguém é aposentado, nem eu, nem a mulher e está faltando o necessário”, diz o mecânico de lancha.

Ele e a esposa ficaram sem a fonte de renda, que vinha do trabalho da manutenção das lanchas.

“Aqui a gente sobrevivia, quando tinha água, reparando as lanchas das pessoas e as pessoas pagavam a gente para reparar e com essa rendazinha a gente ia vivendo. Mas com essa seca, eles retiraram as lanchas tudinho e aí ficamos sem ganho, sem renda. Estamos aqui totalmente desprezados”.

•        Casas flutuantes em meio ao lixo

Com a serra, o bairro Educandos virou um lixão a céu aberto. Quando as águas do Rio Negro baixaram, o lixo que estava no leito apareceu. O Anderson vive com a família em uma das flutuantes que estão no meio do lixo e precisa se deslocar para buscar água para beber em uma torneira do outro lado da avenida.

“Depois que secou, eu fiquei desempregado. É ruim demais, tem vezes que tem o que comer, às vezes não tem”, diz.

Em nota, o governo do Amazônia afirmou que, até o momento, a defesa civil entregou 970 toneladas de cestas básicas para 39 municípios, 1660 caixas de copos d’água e 1.366 pacotes de água de 18 litros.

•        Isolamento de comunidade indígena

Devido à seca do Rio Solimões, a comunidade indígena Arauiri, está isolada e enfrenta problemas de saúde, incluindo diarreia nas crianças, em razão da falta de acesso à água potável. A distância até o rio complica ainda mais a situação.

“Está muito seco e a dificuldade que a gente está tendo é com a diarreia nas crianças, a gente não está tendo também água para dar para as crianças. Se for caminhar é daqui 1h30 para poder chegar à beira do rio. E a gente não tem assistência, a gente não tem como levar um paciente para fora”, diz a mulher indígena que vive na comunidade.

 

       Ribeirinho chora ao falar da seca: 'A gente não é visto por ninguém’

 

O Profissão Repórter visitou Xiborena e Catalão, duas comunidades flutuantes de Manaus, para entender o impacto da seca extrema que atinge vários municípios do Amazonas.

Os moradores do local que, no período de cheia, fica completamente tomado pela água, reclamam de falta de auxílio e oferta de água potável. Para conseguir água, os ribeirinhos fazem uma viagem até Manaus, pelo menos duas vezes por semana.

“Aqui a gente é esquecido. São quase 450 pessoas, aqui a gente não é visto por ninguém. Eu tenho uma filha pequena que, graças a Deus, ela está bem de saúde. Mas tenho meu avô, que é um homem muito guerreiro, minha avó, meu tio”, diz Anderson Souza Aguiar, produtor de carvão.

“A gente está passando uma situação muito difícil e que alguma coisa seja feita para pelo menos amenizar um pouco o sofrimento de cada família”, acrescentou.

Anderson produz carvão com troncos de árvores caídas para ter alguma renda. Segundo ele, todo o dinheiro que recebe, por volta de R$ 70 mensais, é investido em fraldas para sua filha.

“Tem poucos recursos aqui onde a gente mora. É uma dificuldade enorme essa seca, questão de se manter e a questão também de levar a criança para Manaus para cuidar, porque às vezes adoecem”, contou Anderson Souza Aguiar, produtor de carvão.

 

Fonte: g1

 

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