Empresa ligada à Shell é acusada de violar direitos indígenas em
contratos de créditos de carbono
A Carbonext, que tem como uma de suas donas a
petroleira Shell, é acusada de ter convencido indígenas da Amazônia brasileira
a assinarem documentos com folhas em branco e de oferecer dinheiro adiantado
para obter exclusividade na venda de créditos de carbono das áreas de floresta
onde esses povos vivem, segundo relatos de indígenas que foram procurados pela
empresa e de informações que estão em documentos públicos e processos
extrajudiciais. A empresa nega as acusações.
Entre 2021 e janeiro de 2023, a Carbonext anunciou
contratos em seis Terras Indígenas e Reservas Extrativistas na região, e com
isso pretendia mais do que dobrar a área que atualmente possui para compensar
emissões de carbono no país. Por trás desses acordos, estaria o maior
plano empresarial de descarbonização do planeta, da britânica Shell, que pretendia captar 120 milhões de créditos de
carbono por ano até o final desta década – e compensar cerca de 10% de suas
emissões de gases do efeito estufa. Como parte do programa, a petroleira
investiu R$ 200 milhões na compra de
uma parte da Carbonext: “Associar nossa companhia à Carbonext é um passo importante para
nossa meta de compensar 120 milhões de toneladas de CO₂ ao ano até 2030”, divulgou a
empresa em julho de 2022.
A reportagem da InfoAmazonia foi até os territórios
que são alvo destes projetos e, ao longo de dez meses, reuniu documentos
públicos, registros de encontros e entrevistas que indicam como a empresa teria
violado os termos da Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) e omitido informações dos indígenas para garantir estes acordos. Além
disso, a Carbonext ignorou as recomendações da Procuradoria Federal da Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que aponta a necessidade do aval da União
para projetos de carbono em Terras Indígenas e orienta os povos a não assinarem
esse tipo de contrato “por falta de regulamentação”.
A apuração desses contratos faz parte da série de
reportagens “Dinheiro
que dá em árvore: financeirização da floresta pressiona Terras Indígenas”, que aborda projetos em territórios tradicionais da Amazônia
brasileira com suspeitas de ilegalidades.
Após diversas denúncias apresentadas ao Ministério
Público Federal (MPF) de que esses contratos foram firmados sob pressão e
descumprindo os ritos legais, a Carbonext desistiu dos projetos nos
territórios, mas as suspeitas de violações nesses acordos são apuradas na
Procuradoria da Funai e no MPF, que acompanham os casos em procedimentos
extrajudiciais.
Se confirmadas as violações, as empresas envolvidas
poderão ser processadas judicialmente para reparar eventuais danos causados aos
indígenas.
Nathália Mariel, procuradora da República no Pará,
afirmou que as mesmas violações têm se repetido em diferentes territórios,
gerando expectativas e envolvendo acordos internacionais, e que “isso gera,
sim, a possibilidade de ações judiciais, [em âmbito] cível e criminal”.
“Quanto mais massiva for a apresentação desses
argumentos que mostram a violação da consulta prévia, mais forte fica inclusive
uma ação do ponto de vista internacional para mostrar que esse tipo de
negociação não é válida”, afirmou a procuradora.
A consulta livre, prévia e informada (CLPI) nos
moldes da OIT-169 tem o objetivo de garantir a autonomia territorial das
populações indígenas e o direito de serem consultadas de boa-fé sobre qualquer
projeto em suas terras, incluindo o direito de recusarem propostas.
Mariel acompanha um processo administrativo aberto
contra a Carbonext na Terra Indígena (TI) Alto Rio Guamá, no sudeste do Pará,
onde indígenas do povo Tembé foram pressionados para assinatura de um contrato
que foi considerado ilegal pela procuradoria. Segundo Mariel, o caso é um dos
que estão sob apuração.
Na primeira reportagem desta série, mostramos
as suspeitas
de violações de empresas da Colômbia que tentam avançar com projetos de carbono
em Terras Indígenas no Amazonas. Assinaturas de
pré-contratos nesses projetos estão relacionadas à promessa de que o dinheiro
da venda dos créditos de carbono financiaria uma universidade indígena.
·
Projeto assinado em uma
folha de “papel limpo”
Na Terra Indígena Alto Rio Guamá, o acordo para o
projeto de geração de crédito de carbono com a Carbonext ocorreu em reuniões em
que os indígenas alegam não saber exatamente o que estava sendo assinado.
Alguns sequer falavam português, e tiveram dificuldades para entender o que era
falado ou o que constava nos documentos.
Em declarações para a reportagem, e segundo consta
em documentos oficiais enviados ao MPF, a Carbonext afirma que o contrato com
os indígenas da TI Alto Rio Guamá foi firmado em 16 de novembro de 2022.
No entanto, a empresa continuou colhendo
assinaturas dos indígenas em diferentes momentos depois do dia 16, segundo
consta na ata de uma das reuniões.
De acordo com uma testemunha, que pediu para não
ser identificada, durante uma segunda reunião entre Carbonext e indígenas da
TI, em 30 de novembro de 2022, no momento da impressão do contrato na aldeia
Teko-Haw acabou a tinta da impressora e os indígenas teriam assinado documentos
com algumas folhas em branco.
Nessa reunião, segundo a
ata do encontro, os indígenas foram chamados para assinar
documentos “por quem não assinou outro dia”, conforme sugeriu uma das
lideranças indígenas presentes, que defendeu a adesão ao projeto. A reunião,
que inicialmente seria para apresentar o projeto, acabou com a leitura e
“assinatura do contrato”, segundo o registro oficial.
O cacique da aldeia Teko-Haw, Carlos Sérgio Tembé,
o Karapaí, foi quem abriu essa segunda reunião e disse que não participou da
anterior, que teria ocorrido em 16 de novembro para assinatura do pré-contrato.
Kaparaí contou que assinou papéis , mas que não tinha entendido que isso
significaria o consentimento em relação ao projeto.
“Era uma ata da reunião, uma assinatura de presença
de reunião”, afirmou. “Depois que nós descobrimos que já tava assinado esse
pré-contrato”, contou Karapaí à reportagem sob a sombra da mesma mangueira onde
seu pai fundou a primeira aldeia do território, quando a família atravessou o
Rio Gurupi, na divisa com o Maranhão, em busca de recursos da floresta.
O líder indígena Sérgio Muxi disse que os caciques
assinaram “papéis limpos” para dar consentimento ao projeto de carbono na Terra
Indígena, e que depois foi oficializado formalmente em um pré-contrato. “Foi só
os caciques que assinaram, aqui mesmo no papel velho, no papel limpo, só
colocaram o nome lá e pronto. Não era um documento. Era quase que uma lista de
presença e tá valendo disse que o pré-contrato”, disse Muxi, o primeiro da
comunidade procurado pela Carbonext, na época, por indicação do ex-prefeito
Adnan Demacki, dono da empresa Campo Verde, que se apresentou como sócia do
projeto da Carbonext na Terra Indígena.
O cacique Naldo Tembé, da aldeia Ituaçu, localizada
em em outra parte do território, disse que só soube que havia um projeto de
carbono na Terra Indígena com a Carbonext depois que o contrato já estava
assinado. “Na Terra Indígena Alto Rio Guamá não é apenas um grupo, tem dois
grupos. Isso foi chamado a atenção, pelo Ministério Público, aí eles vieram
conversar com a gente, mas não fechamos contrato com ela”, afirmou Naldo.
A procuradora Mariel disse que o acordo com a
Carbonext não seguiu os protocolos adequados. “Não houve consulta (CPLI) e as
pessoas que assinaram não têm legitimidade para representar toda a Terra
Indígena. Não deveria nem ser considerado como um contrato”, afirmou,
explicando que o caso segue sob investigação para apurar possíveis violações de
direitos dos indígenas.
Em nota, a Carbonext nega que tenha utilizado
papéis em branco para obter as assinaturas e que todos assinaram os contratos
com todas as informações impressas “com a participação de representantes de
todas as comunidades”.
“A informação de que foram assinadas páginas em
branco é inteiramente falsa, havendo inclusive registro audiovisual e fotográfico
das assinaturas dos contratos impressos sendo realizadas pela comunidade. Isso
tudo, após horas de leitura e explicação integral do contrato, cláusula por
cláusula”, manifestou a empresa em nota.
Em chamada de vídeo, a assessoria de imprensa da
Carbonext mostrou para a reportagem fotos de indígenas assinando um documento
com a página inicial impressa, indicando que seriam do dia 16 de novembro, mas
não era possível identificar se havia páginas em branco nele e se correspondia
ao mesmo momento que os indígenas relataram à reportagem. Até hoje a empresa
não apresentou o contrato com os indígenas da TI Alto Rio Guamá às autoridades.
Procurado pela reportagem, o ex-prefeito de
Paragominas, Adnan Demacki, não quis se manifestar.
O ancião da aldeia, Lourival Tembé, pai do cacique
Karapaí, assim como a maioria dos moradores da pequena comunidade formada por
78 famílias, disse que não sabia absolutamente nada sobre o projeto de carbono,
mas que ouviu que seria algo para proteger a floresta e trazer dinheiro para a
comunidade.
Em junho deste ano, após abertura de um
procedimento administrativo para apurar as denúncias, a Carbonext
comunicou ao MPF
a desistência
do projeto na TI Alto Rio Guamá, justificando
que “a comunidade ainda não decidiu, de maneira uniforme, se pretende
desenvolver o projeto de crédito de carbono em seu território”.
A desistência da Carbonext nunca chegou aos
indígenas da aldeia Teko-Haw, que disseram que foram informados sobre o fim do
contrato pela nossa reportagem, em agosto de 2023.
O MPF informou que vai juntar as informações
levantadas pela reportagem da InfoAmazonia no processo e que, mesmo com pedido
de anulação do contrato anunciado pela empresa, a investigação continua.
·
Funai diz que projetos
precisam de autorização da União
O Brasil ainda não tem uma legislação própria para
o mercado de carbono e o assunto ainda está em discussão no Congresso. Desde
2010, uma nota técnica da Procuradoria da Funai aponta a necessidade de
definição específica para os projetos de carbono em Terras Indígenas e
recomenda, expressamente, a não assinatura destes acordos. No entendimento dos
procuradores, apesar de assegurada autonomia dos povos indígenas, esses
territórios continuam sendo propriedade da União, o que obrigaria a anuência do
Estado brasileiro. Apesar do lapso temporal, de 13 anos, a Funai tem mantido
que as conclusões apontadas naquele documento permanecem válidas.
Os projetos da Carbonext para geração de créditos
de carbono na Amazônia fazem parte do chamado mercado voluntário e não são
contabilizados para fins das metas de acordos climáticos entre os países, que é
chamado de mercado de carbono regulado.
Segundo a Funai, há pelo menos 33 projetos de carbono em Terras Indígenas de
conhecimento do órgão indigenista com pelo menos nove contratos ou instrumentos
similares assinados. Os acordos estão sob análise da Procuradoria Federal “para
verificar a legalidade e se existem cláusulas que podem ser consideradas
abusivas ou lesivas do ponto de vista dos direitos indígenas”.
Em julho deste ano, após essa avalanche de projetos, o MPF emitiu uma
nova Nota
Técnica, reforçando a necessidade de autorização e de
acompanhamento técnico do Estado. O órgão alerta que “a consulta prévia deve
ocorrer na fase do planejamento e antes de qualquer ato decisório”. E pede
adoção de providências sobre projetos que ignorem essas orientações.
“Devem ser adotadas providências para anulação de
atos privados ou administrativos derivados de processos de consulta realizados
em ofensa a este direito humano”, diz trecho da nota.
Depois de diversas tentativas legislativas para
regular um mercado de carbono brasileiro, o governo resolveu apresentar sua
proposta, consensuada entre os Ministérios, e que foi incorporada como
substitutivo do Projeto de
Lei 412/2022 do Senado Federal, pela relatora da Comissão
do Meio Ambiente, senadora Leila Barros (PDT).
O texto em discussão estabelece que projetos de
carbono em Terras Indígenas devem respeitar a Convenção 169 da OIT e incluir
cláusulas nos contratos que prevejam “indenização aos povos indígenas e povos e
comunidades tradicionais por danos coletivos, materiais e imateriais decorrentes
de projetos e programas [de crédito de carbono]”.
Suely Araújo, especialista em políticas públicas do
Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (2016-2018), diz que, além de
estabelecer regras claras para projetos em territórios protegidos como Terras
Indígenas e unidades de conservação, mesmo no mercado voluntário, deve haver um
acompanhamento permanente do Estado.
“É importante que haja garantias e transparência
sobre os projetos do mercado regulado, e que se tenha um acompanhamento para garantia
dos direitos humanos e de paridade nesses contratos. As comunidades não têm o
mesmo nível de poder de negociação que as grandes empresas”, comenta.
Em seu parecer, a relatora Leila Barros diz que é
“fundamental que as regras propostas garantam o direito dos povos e comunidades
tradicionais, já que considerável porção de nossas florestas estão inseridas em
unidades de conservação de uso sustentável e Terras Indígenas”.
·
Ex-procurador em cena
Segundo constam nos documentos oficiais e nos
próprios relatos dos indígenas, as negociações da Carbonext para os projetos de
carbono nos territórios sempre eram conduzidas pelo diretor de compliance
da empresa, Almir Sanches. Além da leitura dos termos dos contratos, também
ficou a cargo dele convencer os indígenas a aceitarem um acordo. Foi Sanches
que conduziu o encontro em novembro de 2022, na aldeia Teko-Haw, onde teria
acabado a tinta da impressora no momento da assinatura do contrato.
À frente da Carbonext, segundo mostram registros de
reuniões que obtivemos da Funai via Lei de Acesso à Informação (LAI), Sanches
disse aos indígenas que a consulta aos moldes da OIT-169 “é um processo
continuado que se inicia e será continuamente desenvolvido, nesse caso, por 30
anos”, contrariando o entendimento do MPF de que a consulta prévia, livre e
informada deve ocorrer antes de
qualquer ato decisório que possa afetar o território.
Além disso, o ex-procurador também afirmou que a
Carbonext assinou contrato na TI Coatá-Laranjal, no Amazonas, com a comunidade
dividida. Segundo consta no relato de Sanches durante uma das reuniões, “uma
parte da comunidade deu a anuência, e o processo de consulta e construção do
PCC [projeto de crédito de carbono] se iniciou”, o que também contraria a plena
autonomia territorial, segundo orienta o MPF.
No encontro com os Kayapó, em janeiro deste ano, o
ex-procurador citou a parceria com a Shell e apontou que a multinacional fez
“diligências” para atestar a “competência” da Carbonext para essas negociações:
“Uma empresa multinacional que faz investimentos, como a Shell, faz diligência
para verificar a competência da empresa Carbonext antes de comprar uma parte
dela. Pensamos que isso é bom: a Shell, visando buscar energia limpa, investir
num projeto como o Kayapó. E a Shell é uma das maiores compradoras de crédito
de carbono do mundo”, declarou o diretor de compliance da Carbonext, Almir
Sanches, durante a única reunião na Terra Indígena Kayapó, em janeiro deste
ano, em que a empresa assinou um pré-contrato, também considerado nulo pelo
MPF.
Sanches também
utilizou a carência das comunidades indígenas por necessidades básicas e como
um dos seus exemplos falou da calamidade
na TI Yanomami, que passa por uma profunda crise humanitária
causada pelo garimpo ilegal.
“Eu particularmente acho um absurdo comunidades
indígenas não poderem gerar créditos de carbono porque historicamente
preservaram mais”, declarou o
procurador em vídeo gravado
durante a reunião.
·
Dividir para conquistar
Segundo os indígenas, havia dúvidas para assinatura
do pré-contrato na TI Kayapó, e parte deles queria mais tempo para decidir.
Sanches fez a oferta de R$ 50 milhões como
pagamento antecipado por créditos que o projeto ainda iria gerar. Segundo testemunhas,
a oferta pressionou os indígenas.
A negociação seria confirmada em até 90 dias, após
assinatura do pré-contrato, conforme consta na ata da reunião. Que também
registra Sanches afirmando que a empresa já havia conversado com clientes que
“demonstraram interesse em comprar créditos antecipados dos Kayapó”.
Mesmo divididos, em janeiro deste ano,
representantes das sete organizações Kayapó assinaram um contrato e deram à
Carbonext “em caráter irretratável e irrevogável, a exclusividade para o
desenvolvimento do Projeto e negociação dos Créditos de Carbono e/ou de outros
ativos socioambientais”.
“Sobre essa questão do adiantamento, eu entendi que
eles queriam induzir o povo a aceitar tudo aquilo ali. Foi o meu entendimento,
a minha leitura”, afirmou Sandro Takwyry, liderança da Associação Angrokrere
que atuou como tradutor nas negociações com a Carbonext.
Na mesma linha, o líder Patykore Kayapó, da
Associação Floresta Protegida, disse que os indígenas não estavam preparados:
“Naquele momento nós precisávamos entender melhor do que se tratava esse
negócio de carbono. Achamos que teriam que consultar as comunidades, explicar
melhor, fazer protocolo de consulta, mas a empresa queria assinar logo, nós não
aceitávamos isso”, declarou o líder indígena.
A venda antecipada dos créditos sequer foi citada
no acordo assinado com os indígenas, apesar de a promessa constar nos registros
da reunião.
O pagamento nunca aconteceu. Logo após o acordo, o
MPF instaurou notícia de fato para apurar supostas irregularidades no projeto
da Carbonext e o não cumprimento da consulta livre, prévia e informada. Em
abril, quatro meses após o acordo com os Kayapó, a empresa assinou um
distrato dos termos do contrato com os indígenas, justificando que poderia haver questionamentos “infundados” sobre a
consulta.
“Os termos desses contratos não estavam claros, são
territórios com problemas de invasões, com garimpo ilegal. A geração de renda
para manter a floresta de pé não é um problema, mas nossa preocupação é quanto
à autonomia territorial”, afirmou o procurador federal Rafael Martins da Silva,
que instaurou procedimento administrativo contra a Carbonext pelos contratos
assinados na TI Kayapó. O procurador ainda informou que as mesmas
irregularidades foram observadas em contratos da Carbonext firmados com 12
associações de extrativistas para explorar créditos de carbono em unidades de
conservação, no norte do Pará. Os acordos não chegaram a ser colocados em
prática porque o ICMBio considerou as negociações ilegais.
Em junho deste ano, a Carbonext disse que
desistiu dos projetos em Terras Indígenas, justificando risco de exposição
reputacional.
Procurada pela InfoAmazonia para se manifestar
sobre os pontos desta reportagem, a Carbonext afirmou que desistiu dos
contratos nas Terras Indígenas por entender que “há necessidade de uma
regulação bem definida que garanta segurança jurídica para a condução dos
projetos a longo prazo”.
A empresa nega irregularidades nos processos de
consulta e diz que “são falsas” as informações de que indígenas assinaram
documentos sem saber do que se tratava. A empresa diz que possui “registro audiovisual
e fotográfico das assinaturas dos contratos impressos sendo realizadas pela
comunidade”.
“As negociações com todas as comunidades foram
conduzidas com a mais absoluta transparência, com a participação de
representantes de todas as comunidades que foram assessorados juridicamente por
profissionais escolhidos por eles”.
A empresa ainda afirma que a Defensoria Pública, o
Ministério Público Federal e a Funai foram convidadas e participaram de
reuniões da Carbonext com indígenas, segundo a empresa, “certificando a
seriedade, a transparência e a robustez do processo de CLPI [consulta livre,
prévia e informada] realizado”.
Segundo documentos
anexados às investigações do MPF, a Funai
participou de reuniões “como ouvinte” e “em nenhum momento ingressou no mérito”
sobre os contratos. À reportagem, o órgão disse que “a orientação técnica da
Funai é no sentido de que a comercialização de créditos de carbono no mercado
voluntário carece de regulamentação no arcabouço normativo brasileiro,
especialmente no que se refere às terras indígenas”. Também foi emitida uma
Nota Técnica recomendando “que a Coordenação Regional não avalize projetos que visem a
comercialização de créditos de carbono em Terras Indígenas”.
A Carbonext afirmou que “todos os documentos e
evidências aqui mencionados poderão e serão usados em eventuais ações de
reparação de danos de eventuais calúnias e difamações”. Leia a íntegra da
nota aqui.
Já a Shell, informou que tem “participação
minoritária acionária na Carbonext” e que a empresa mantém “gestão
independente, e não há obrigatoriedade de comercialização de créditos de
carbono entre as partes”. A empresa não respondeu às perguntas específicas
sobre os projetos de carbono apurados pela InfoAmazonia.
A petroleira ainda afirmou que os créditos de
carbono “são uma forma importante de suporte à descarbonização de diversos
setores da economia e à meta da empresa de se tornar um negócio de energia de
emissões líquidas zero até 2050”.
No final de agosto, a
Bloomberg noticiou que a Shell
desistiu do plano de captar 120
milhões de créditos de carbono,
silenciosamente e justificando que as metas eram “intangíveis”.
Ao todo, a Carbonext chegou a anunciar ter projetos
para geração de créditos de carbono com seis povos indígenas: os Suruí Paiter
em Rondônia; os Cinta Larga e Arara do rio Branco no Mato Grosso; os Munduruku
do Amazonas, e os Kayapó e Tembé, no Pará. Todos esses contratos teriam sido
cancelados.
·
Procuradoria da Funai apura
irregularidades
A Funai também apontou uma série de irregularidades
no acordo firmado na TI Kayapó, entre elas a falta de um projeto prévio e a
invasão de competências exclusivas do poder público, como a fiscalização de
crimes ambientais, que segundo o contrato ficaria sob responsabilidade
compartilhada entre empresa e indígenas.
Em março deste ano, o órgão
listou uma série de pontos do contrato e pediu
que a Procuradoria Federal Especializada, órgão de assessoria jurídica ligado à
Advocacia-Geral da União, apure “possível violação ou ameaça aos direitos
indígenas”.
Entres os destaques, a área técnica frisou que o
adiantamento de R$ 50 milhões oferecido pela Carbonext aos Kayapó seja
“analisado com muito cuidado, na medida em que não existe ainda um projeto que
demonstre a robustez da iniciativa para alcançar o seu fim”, e aponta que a
negociação seria desfavorável aos indígenas, que receberiam apenas 30% do valor
de mercado para os créditos.
A Funai informou que ainda aguarda manifestação da
Procuradoria para adoção de providências cabíveis.
·
Povo Kayapó estuda REDD+
A preservação de florestas para geração de créditos
de carbono está prevista no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas
sobre Mudança do Clima (UNFCCC) para recompensar financeiramente países em
desenvolvimento por seus resultados de Redução de Emissões de gases de efeito
estufa provenientes do Desmatamento e da Degradação florestal, os chamados
projetos de REDD+.
Esses projetos se apresentam como uma alternativa
de renda para comunidades indígenas e ribeirinhas, que já preservam suas áreas
através de atividades sustentáveis. No entanto, ainda não há nenhum projeto de
carbono em Terras Indígenas em funcionamento no Brasil. A única experiência
implantada com acompanhamento da Funai ocorreu na TI Sete de Setembro, em
Rondônia, no ano de 2010, por entidades sem fins lucrativos. O projeto acabou
descontinuado depois que a região sofreu um pico de desmatamento, em 2015.
Desde 2022, uma nova onda de projetos de Carbono em
Terras Indígenas vem surgindo na Amazônia, principalmente diante do anúncio de
grandes corporações interessadas em compensar suas emissões com créditos destes
projetos.
Com isso, novamente há expectativa de que as
populações que verdadeiramente preservaram a floresta possam vir a ser
compensadas por seus serviços ambientais.
Em agosto deste ano, nossa reportagem acompanhou
Patykore em uma série de oficinas organizadas no território do povo Kayapó para
tratar do tema projetos de carbono. O objetivo é introduzir o assunto nas
comunidades.
Aos poucos, nos encontros, os Kayapó vão
compreendendo o significado de conceitos até então desconhecidos, como
“emissão” e “aquecimento global”, e descobrem como a floresta sequestra carbono
quando está viva e como libera o elemento em gás tóxico quando queimada.
“A floresta é a nossa vida. Sem ela nós não somos
nada”, disse à reportagem Mundico Kayapó, da aldeia Crocraimoro e um dos mais
interessados na oficina.
A conversa é lenta e calma, no próprio idioma em
que conheceram o mundo, no mesmo tempo e sabedoria com que se relacionam com a
floresta.
“As
comunidades estão ouvindo falar sobre esse crédito de carbono, mas não sabem o
que é isso. Estamos entendendo juntos para que possamos saber lidar melhor com
isso no futuro”, afirmou Patykore.
Fonte: Mongabay
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