terça-feira, 7 de novembro de 2023

Das favelas aos quilombos, crimes contra negros continuam impunes

Quando Márcia Palhano, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), me ligou, alarmada com mais um surto de violência contra comunidades tradicionais no Maranhão, não imaginava que uma nova má notícia chegaria tão rápido: dias depois da nossa conversa, o líder quilombola José Alberto Moreno Mendes, 47 anos, foi assassinado com três tiros no rosto e dois nas costas.

Doka, como era conhecido na comunidade, era presidente da Associação de Moradores do Quilombo Jaibara dos Rodrigues, no território Monge Belo, em Itapecuru-Mirim, Maranhão. Na sexta-feira passada (27), ele estava em frente à casa em que morava com a mulher e quatro filhas, no fim da tarde, quando dois homens passaram em uma moto e atiraram. Doka morreu na hora.

É o décimo quilombola assassinado no estado nos últimos três anos.

O território Monge Belo, onde vivem oito comunidades, aguarda titulação desde 2004, quando foi reconhecido como terra pertencente a comunidades remanescentes de quilombo. Em 2016, a presidente Dilma assinou o decreto de desapropriação da área, mas, sete anos depois, o processo ainda não foi concluído. Apenas 211 terras quilombolas estão regularizadas no país, enquanto 1.787 processos para titulação de territórios quilombolas aguardam parecer do Incra, o que é um dos motores para as invasões.

Há pelo menos dez anos, o Maranhão oscila entre os três primeiros lugares no ranking da violência no campo. Nos últimos dois anos, está em primeiro lugar – em 2022, empatado com Rondônia, outro foco de grilagem e violência praticadas por fazendeiros, madeireiros e garimpeiros apoiados na pistolagem.

Conheci Márcia, aguerrida defensora de direitos, quando estive no Maranhão, em março deste ano, para documentar a violência crescente contra indígenas Guajajara e quilombolas, constatada em nosso Mapa dos Conflitos. Foi com a ajuda dela que eu e meu colega José Cícero chegamos a Arari, na Baixada Maranhense, onde cinco quilombolas foram assassinados entre janeiro de 2020 e janeiro de 2022.

Na linda comunidade do Cedro, onde estivemos, pai e filho foram assassinados na frente da família e um avô foi alvejado dentro de casa, depois que os moradores cortaram as cercas elétricas de criadores de búfalo, que invadiram suas terras. Ninguém foi preso pelos assassinatos e a comunidade ainda foi processada pelo “dano” ao “patrimônio” dos grileiros.

Uma história que machuca pela injustiça e enraivece pela impunidade, e que passou quase despercebida pela imprensa. Vocês poderão ouvi-la a partir da próxima terça-feira (7/11) na nova temporada do podcast Amazônia sem Lei. Todos os episódios foram feitos em campo, com reportagens baseadas no Mapa dos Conflitos. Volto ao tema com mais detalhes na semana que vem.

Quando conversei com Márcia, ela estava organizando a visita da Coordenação da Campanha contra a Violência no Campo em Codó, no leste maranhense. Assim como Itapecuru-Mirim, onde Doka foi assassinado, a região faz parte do Matopiba, fronteira agrícola que se expande no interior do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia à base da grilagem e da violência.

Recordista em conflitos no campo, o Maranhão tem hoje 114 pessoas ameaçadas de morte, segundo a CPT. “São muitas comunidades atingidas por graves violações de direitos e abandonadas pelo poder público”, diz Márcia.

O Maranhão é um dos estados mais ricos do país em culturas tradicionais, unidas pela resistência marcada pela firmeza das quebradeiras de coco babaçu, presentes em aldeias, roças, quilombos.

É a segunda unidade da Federação em número de comunidades remanescentes de quilombos, atrás apenas da Bahia, palco recente de outro crime hediondo: o assassinato de mãe Bernadete, líder quilombola e religiosa alvejada por 22 tiros no dia 17 de agosto em sua casa e terreiro, no Quilombo da Pitanga.

A comunidade que protegia fica na área rural de Simões Filho, município na região metropolitana de Salvador, conhecido pelo domínio dos grupos de extermínio. A polícia baiana anunciou a prisão dos suspeitos, mas até hoje não revelou suas identidades nem o motivo para o ataque à ialorixá, ocorrido cinco anos depois do assassinato de seu filho, Binho, até hoje não esclarecido.

Das favelas aos quilombos, da cidade ao campo, só o racismo explica a impunidade dos crimes contra negros – sejam praticados por pistoleiros, milicianos ou policiais. Os jornalistas precisam estar lá, ao lado dos defensores de direitos, para que esses crimes não sejam negligenciados pelas autoridades nem esquecidos pela sociedade. Obrigada, Márcia.

 

       Contra milícia, polícia e inteligência social. Por Fernando Filardi

 

Os recentes acontecimentos ocorridos nas comunidades de base da pirâmide no Rio de Janeiro têm origem na histórica ausência do Estado que, nesses territórios, não entrega os serviços básicos de água, luz, gás, telefone, internet, educação, saúde, transporte e segurança. Em alguns casos, esses serviços foram privatizados, não são fiscalizados de maneira efetiva e simplesmente não existem.

O fato explica o crescimento assustador das facções do crime e da milícia nas últimas décadas, que ocupam espaços deixados pelo Estado, oferecendo serviços de maneira ilegal e extorsiva a uma população que se vê obrigada a aceitar as regras impostas pelo poder paralelo. Mas não foi sempre assim.

Em 2008, o Estado implantou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), programa elogiado internacionalmente, que tinha a finalidade de retomar esses territórios, ocupando 40 favelas cariocas, beneficiando 1,5 milhão de pessoas, sendo bem-sucedido no período de realização dos megaeventos de 2014 (Copa do Mundo) a 2016 (Olimpíadas), o que mostra que a capacidade para resolver o problema existe.

No entanto, passados esses eventos, a maioria das comunidades continuou carente de serviços básicos e o programa perdeu força porque se apoiou apenas nas ações de polícia e segurança e deixou de implantar ações sociais em parceria com empresas para qualificar as pessoas e investir no empreendedorismo local para aumentar a renda global do território.

Nesse cenário, algumas estratégias devem ser consideradas na questão das milícias no Rio de Janeiro, que se tornou um desafio complexo e multifacetado e requer abordagens integradas como o fortalecimento das instituições de segurança, investindo na capacitação de juízes, promotores e policiais, para garantir punições adequadas para membros de milícias, além de combater a corrupção e a impunidade dentro das forças de segurança.

Desenvolver unidades de inteligência especializadas em rastrear as milícias também é uma ação importante para reduzir seu poderio financeiro, utilizando tecnologia e análise de dados para identificar seus líderes e estruturas, evitando que esses grupos cresçam e se expandam.

Implementar programas de desarmamento para reduzir o acesso das milícias a armas de fogo e reforçar o controle de armas para evitar a entrada ilegal de armamentos no estado.

Mas a solução não se dá apenas por este vetor, que foca nas consequências, mas também pela implantação de políticas sociais nas comunidades, que devem ser realizadas visando atacar as causas do problema, com o objetivo de melhorar as condições de vida, reduzindo o recrutamento dos jovens e promovendo programas de emprego e educação.

Além disso, realizar campanhas de conscientização pública para apoiar as ações do Estado, estabelecendo canais de comunicação seguros para os moradores denunciarem atividades ilegais, prestando apoio às testemunhas e incentivando sua participação no combate às milícias.

A cooperação interinstitucional entre diferentes níveis de governo também deve ser articulada para combater as milícias, trabalhando em conjunto com organizações da sociedade civil e ONGs.

É importante dizer, por fim, que, no curto prazo, as ações mais ostensivas da polícia devem sim ser realizadas, mas as estratégias acima apontam caminhos complementares que devem ser seguidos para resolver o problema de forma efetiva no médio e longo prazo. Só assim teremos uma solução sustentável para o desequilíbrio social que se arrasta há décadas no estado.

 

       Isis Mustafá: Sobrevivendo no inferno - privatização de presídios e encarceramento em massa no Brasil

 

233 reais por dia por pessoa presa. Essa é a bagatela que a empresa Soluções Serviços Terceirizados pode receber após ser agraciada com a concessão para construir e gerir um presídio em Erechim, no Rio Grande do Sul. Além das isenções fiscais, o projeto contará com financiamento de R$ 150 milhões por parte do BNDES. O valor estimado do contrato é de R$ 2,52 bilhões pelo período de 30 anos, e a empresa vencedora foi a única participante do leilão realizado no início de outubro na Bolsa de Valores de São Paulo. O edital, no entanto, está suspenso para retificação de um documento da empresa.

A primeira tentativa de realizar essa parceria público-privada foi em 2022, mas na ocasião nenhuma empresa se interessou pela proposta. Então o atual governo federal ampliou os benefícios e fez custosas movimentações para ingressar na política ianque de sistema carcerário, com a assinatura do Decreto 1.1498/2023, que amplia os benefícios para as privatizações do sistema prisional.

Na contramão das expectativas do movimento social com o novo governo, o leilão da concessão para o presídio gaúcho abre alas para uma nova fase de agravamento da política neoliberal de privatizações no Brasil. Além da nefasta lógica de transferência dos recursos públicos para o setor privado, essa medida fortalece o processo de encarceramento em massa e a violação dos direitos humanos no sistema de segurança pública.

Cadeia guarda o que o sistema não quis

O Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e China. Com mais de 830 mil pessoas presas, 67% são negras e 41% estão em prisão provisória, ou seja, sequer foram julgadas e condenadas, revela o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. A maioria dos presos está em cárcere por crimes contra a propriedade, como roubo (27,5%), ou por tráfico de drogas (25%).

Atestando a veracidade dos versos dos Racionais MCs, o Superior Tribunal Federal e a ONU denunciam as graves e sistemáticas violações de direitos humanos que acontecem nos presídios brasileiros. Com celas superlotadas, os presos vivem sob extrema violência e a prática de tortura é institucionalizada; não são raras as denúncias de que os presos comem comida azeda sem sequer ter acesso a atendimento médico. Ou seja, ser preso no Brasil é deixar de ser gente.

De fato, a privatização dos presídios incentiva o aumento do encarceramento porque segue a simples e perversa lógica do capital: quanto mais presos, maior o lucro do empresário e dos acionistas (o Estado aporta recursos a cada pessoa presa).

E a tragédia está anunciada. Submeter o sistema prisional à lógica do lucro, somada à ideologia predominante do “bandido bom é bandido morto”, vai produzir máquinas de moer gente. Para o empresário, não existe justificativa para investir em melhorias e mais direitos para os presos; muito menos pressão pública, pois a sociedade já desprezou essas pessoas.

Governa pra quem?

O fato de que o Estado vai gastar até três vezes mais por preso no presídio privado, somado ao conhecido caso dos Estados Unidos, onde a privatização do sistema prisional virou um negócio lucrativo e o país chega à marca dos 2,3 milhões de seres humanos presos, denunciam que a política de privatizações do governo atende exclusivamente aos interesses do empresariado e do capital financeiro.

Pior: expõe um afastamento entre as decisões do governo e os interesses da base social que o elegeu e sustenta. Não à toa, a Nota Técnica assinada por 86 entidades ligadas à defesa dos direitos humanos e ao antirracismo revela a gravidade dessa política e pede a imediata revogação do Decreto 1.1498 e a suspensão do leilão de Erechim.

As manifestações são justas, pois os movimentos sociais que comemoraram a criação do Ministério da Igualdade Racial também têm a autoridade de exigir compromisso do Estado com a defesa dos direitos humanos e o combate ao encarceramento em massa.

A nossa história comprova que não é possível sustentar um governo do povo abrindo mão dos nossos princípios. E hoje, mais do que nunca, é preciso afirmar a construção de um país com justiça e dignidade. Sem dúvidas, isso não agrada à Bolsa de Valores. Mas a maioria está do lado de cá.

 

       Lavagem do PCC: mensagem mostra Dezinho tratando de salão de beleza

 

Investigação do Ministério Público de São Paulo (MPSP) reuniu uma série de troca de mensagens para mostrar que Odair Lopes Mazzi Junior, o Dezinho, envolveu familiares no esquema de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC).

No material, obtido pelo Metrópoles, os familiares discutem a compra de imóveis em São Paulo, tratam da transferência de carros e prestam satisfação para Dezinho, acusado de ser o verdadeiro responsável pelo dinheiro. Segundo a Promotoria, essas transações serviam para esquentar recursos do PCC.

As mensagens foram obtidas no desdobramento da Operação Sharks, do MPSP, que mira o setor financeiro da facção. Uma delas é atribuída a Carolina Mazzi de Aquino Lopes, a mulher de Dezinho, ao abrir um salão de beleza em Moema, bairro nobre da capital paulista, em maio de 2020. No áudio, a mulher deixa claro que o capital para investir no negócio vem do seu marido.

 “Mor, daí assim, você que tem que decidir qual é o tipo de salão que você quer abrir. Esse que tô aqui, por exemplo, deve ter gastado uns 500 mil, entendeu? Eu tentei chegar num intermediário, não ficar um negócio tão badarosca e não ficar um negócio tão caro. Então é… Agora, o dinheiro é teu. Você que tem que saber o que vai fazer, né?”, diz a transcrição.

•        Acusação

Carolina é acusada de manter empresas de fachada para lavar dinheiro do chefão do PCC. Ela e Dezinho são casados desde outubro de 2015. Também foram denunciados por participar do suposto esquema Diego e Natasha Mazzi de Aquino, ambos cunhados de Dezinho.

 “[Dezinho] é o líder e principal beneficiário, mas todos os demais investigados atuam de forma ativa e previamente coordenada, em núcleo associativo envolvido diretamente na condução de empresas, participação de negócios imobiliários e de bens móveis, bem como na movimentação de valores”, afirmam os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MPSP, que assinam o relatório.

A denúncia contra os familiares da liderança da facção criminosa foi aceita pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) no dia 27 de setembro. Todos respondem ao processo em liberdade. O Metrópoles não conseguiu contato com os advogados de defesa e o espaço segue aberto para manifestação.

•        Mulher de Dezinho

Antes de virar ré, Carolina foi alvo da segunda fase da Operação Sharks, deflagrada pelo MPSP há quase dois meses. Na ocasião, os policiais cumpriram mandados de busca e apreensão e encontraram joias e relógios de luxo, avaliados em R$ 2 milhões, em imóveis do casal. Ela negou vínculos com a facção.

À Justiça, a Promotoria chegou a pedir que oito empresas que têm participação de Carolina, incluindo salões de beleza e clínicas de bronzeamento, tivessem as atividades econômicas suspensas. Apenas um dos pedidos foi acolhido.

O MPSP aponta que Carolina comprou um apartamento, na Rua Voluntários da Pátria, em Santana, na zona norte da capital paulista, por R$ 501,4 mil. Uma das mensagens mostra que, inicialmente, ela teria tentado pagar o valor em espécie, mas a construtora recusou a transação.

“O rapaz do apartamento acabou de me ligar e disse que não tem como aceitar o pagamento em dinheiro porque, quando ele foi fazer o depósito, mesmo que ele leve segurança, vão te acionar sobre a origem do dinheiro e tudo mais por causa do valor”, diz a transcrição.

Segundo o MPSP, o casal também é proprietário de um Volvo X60, um Jeep Compass, um Kia Sportage, um Mitsubishi Eclipse e uma Land Rover Freelander.

•        Cunhados

Já Diego, que é bancário, é acusado de oferecer o próprio cartão de crédito para o casal fazer transações e de prestar orientações financeiras sobre “como proceder para se esquivar de problemas”, de acordo com a acusação.

Nas mensagens, ele ainda admite que empresta o nome para que Dezinho e a mulher registrem carros comprados pelo casal. “Se for colocar o Fox sim, né? A Sportage tá no meu nome, aí, se você quiser, eu espero”, diz trecho da transcrição.

“Ele tem ciência das situações em que sua irmã e cunhado estão envolvidos. Mesmo tendo esse conhecimento, Diego realiza registro de bens em seu nome e atua na transferência deste”, afirma o MPSP.

Por sua vez, Natasha é sócia de Carolina em parte das empresas e teria sido a responsável pela compra do apartamento em Santana. “Ela atua diretamente na movimentação financeira”, diz a Promotoria.

•        Operação Sharks

Dezinho está detido desde julho, quando foi pego em um resort de luxo na Praia dos Carneiros, no litoral de Pernambuco. Ele tinha um mandado de prisão no âmbito da Operação Sharks, que investigou a lavagem de dinheiro do PCC, e usava documentos falsos para evitar ser capturado.

Segundo o MPSP, Dezinho era responsável por coordenar o tráfico internacional de drogas do PCC e esteve à frente do envio de R$ 1,2 bilhão para o Paraguai em 2019, através do esquema de “dólar cabo”, técnica de lavagem de dinheiro.

O esquema apontado na Operação Sharks incluía a movimentação por meio de contas bancárias de laranjas e empresas fantasmas, além da distribuição de parte do valor para “casas-cofres”, de onde o dinheiro era levado para doleiros depois.

Segundo o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco, Dezinho conseguiu escalar na hierarquia da facção enquanto esteve em liberdade e já integrava a “sintonia final de rua” – grupo que recebe ordens de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo do PCC.

 

Fonte: Por Marina Amaral, da Agência Pública/Jornal do Brasil/Opera Mundi/Metrópoles

 

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