quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Como mídias sociais alimentaram violência antissemita no Daguestão, na Rússia

Na manhã de domingo, detalhes de um voo que chegou mais tarde naquele dia vindo de Tel Aviv foram publicados em um canal popular do Telegram no Daguestão, uma região bastante diversa no ponto mais ao sul da Rússia.

O canal na plataforma de mídia social se chamava Morning Dagestan (Utro Dagestan). O perfil instigou os seus seguidores a “encontrar os visitantes inesperados” no principal aeroporto do Daguestão, em Makhachkala. O voo chegaria às 19h, horário local.

O Daguestão é uma república russa predominantemente muçulmana no norte do Cáucaso, onde vivem cerca de 3,1 milhões de pessoas na margem ocidental do Mar Cáspio. O governo disse que uma investigação criminal foi aberta por desordem civil no aeroporto.

Na hora marcada, centenas de jovens chegaram ao aeroporto, pressionando os seguranças.

Eles seguiram para a pista; alguns até subiram no telhado. A multidão procurava passageiros judeus.

Vídeos mostram bandeiras da Palestina sendo agitadas e cantos antissemitas são ouvidos. A polícia levou várias horas para dispersar os manifestantes. Segundo agências de notícias russas, cerca de 60 pessoas foram presas.

O protesto surpreendeu as forças de segurança. Como foi que os manifestantes conseguiram se organizar e coordenar o ato de forma tão eficaz?

A BBC rastreou as mensagens compartilhadas no Morning Daguestan. Também encontramos outros chats locais do Telegram compartilhando retórica antissemita semelhante e incitando à violência.

O Morning Daguestan é um canal anti-russo e islâmico que defende o fim do que chama de "regime de ocupação de Moscou" no Cáucaso.

O canal publica breves atualizações sobre eventos locais junto com mensagens sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Também publica mensagens sobre o conflito entre Israel e Palestina, com conteúdo de apoio ao Hamas, classificado como grupo terrorista pelo Reino Unido e outros países, mas não pela Rússia.

É um canal público que há poucos dias tinha 50 mil inscritos, mas desde então cresceu para mais de 65 mil.

No domingo, suas postagens forneceram instruções detalhadas para quem se reunia no aeroporto, inclusive formando uma multidão para bloquear a saída quando os passageiros que chegavam de Israel deixassem o avião.

“Permita que eles saiam um por um, amaldiçoem o Estado de Israel e depois sigam em frente!”, dizia um post. “Se eles se recusarem a amaldiçoar Israel, bloquearemos o aeroporto e não os deixaremos sair!”

A postagem também instou seus seguidores a fotografarem os rostos dos passageiros e localizarem os seus carros, a fim de compilar uma lista dos seus endereços no Daguestão.

Nos últimos dias, o mesmo canal apelou às pessoas para se juntarem a manifestações em Makhachkala e em outras cidades da região para “apoiar dois milhões de muçulmanos”.

Também compartilhou mensagens anti-semitas e apelou à população local para que se recusasse a alugar apartamentos a judeus.

A BBC encontrou incitação à violência em outros canais do Telegram com dezenas de milhares de seguidores, incluindo alguns sem aparente conteúdo político.

O Avito é um site usado principalmente para compra e venda de produtos. No seu canal encontramos mensagens dirigidas a uma família judia do Daguestão, cujos membros apoiavam Israel.

No canal Gorets, que tem quase 17 mil assinantes, houve postagens incentivando a perseguição ao povo judeu local e aos recém-chegados israelenses ao Daguestão.

Na noite de segunda-feira, o proprietário do Telegram, Pavel Durov, anunciou que “canais que incitam à violência serão bloqueados”, anexando uma captura de tela de uma postagem matinal no Daguestão. Pouco depois disso, o canal ficou indisponível.

·         Quem está por trás de 'Morning Dagestan'?

O canal Morning Dagestan tem sido associado a Ilya Ponomarev, um antigo deputado russo que desertou para a Ucrânia em 2016 e obteve a cidadania ucraniana.

Ponomarev dirige canais de mídia social pedindo protestos na Rússia e a derrubada do regime de Vladimir Putin.

Na segunda-feira, Ponomarev disse que "há algum tempo" foi "contactado por um grupo de islâmicos do Daguestão" a quem ajudou a organizar e financiar manifestações contra a invasão russa da Ucrânia.

Embora Ponomarev tenha dito que parou de apoiar o canal em setembro de 2022, as suas próprias declarações contradizem esta afirmação.

Ele chamou o Morning Daguestan de "nosso canal" em agosto de 2023 e também se referiu ao canal como parte de suas operações, em setembro.

O governador do Daguestão, Sergey Melikov, e a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, usaram a conexão de Ponomarev com o canal para acusar a Ucrânia de orquestrar os tumultos no aeroporto de Makhachkala.

“Hoje recebemos informações absolutamente confiáveis ​​de que o canal Morning Daguestan é administrado e regulamentado no território da Ucrânia por traidores, disse Melikov.

O próprio canal postou então um comunicado, afirmando que não tem ligação com Ponomarev ou com a Ucrânia. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, condenou o ataque.

·         Explosão de violência anti-semita

O Daguestão é a região mais diversificada da Rússia, com dezenas de grupos étnicos indígenas - predominantemente muçulmanos, mas incluindo uma antiga comunidade judaica - vivendo lado a lado durante séculos.

Rasul Abdulkhalikov, um sociólogo do Daguestão, acredita que esta explosão de violência anti-semita pode ser atribuída às ações das autoridades regionais, que não permitiram manifestações pró-Palestina no país, apesar do apoio generalizado à causa palestina e do sentimento anti-israelense entre os jovens.

“O governador Sergey Melikov é o culpado por este sentimento ter chegado tão longe e não ter sido canalizado para outro lugar”, diz ele.

 

Ø  Tudo o que queremos em Gaza é viver, escreve Mohammed R. Mhawish

 

Nas últimas 24 horas, as bombas israelenses mataram mais de 700 pessoas em Gaza. No entanto, as pessoas que seguem vivas não são tão sortudas. Permanecem para inalar o trauma e exalar o sofrimento que as rodeia por todas as partes.

Como jornalista palestino que nasceu, cresceu e ainda vive em Gaza, tenho testemunhado uma realidade dilacerante e interminável, composta por dois pilares: bloqueio e ocupação. Respirei pela primeira vez durante a segunda intifada. O aroma de fumaça dos disparos e do sobrevoo dos aviões de guerra envolveram minha existência, dando forma a minha vida como refugiado em eterno exílio.

Agora, 24 anos depois, vivo a continuação da mesma trágica história. É a quinta guerra no tempo que tenho de vida. Presumo que não será a última.

Hoje, comecei a escrever cedo. Pouco antes, fiquei três horas na fila do lado de fora de uma padaria. Cheguei em casa antes que a padaria fosse bombardeada, algo comum nesses dias. Senti o peso de um mundo sobre mim, pensando em todas as pessoas que perderam suas vidas só por estarem ali, esperando pela porção diária de pão para suas famílias, quando um ataque israelense caiu sobre elas e transformou suas vidas em mais números nas notícias. Se minha sobrevivência foi sorte ou destino, na realidade, não importa.

·         Subsistir entre o miasma da morte

A questão hoje não é sobre o porquê ou como, mas, sim, como poderemos voltar a viver normalmente em algum momento. Em Gaza, sobreviver significa viver eternamente com as sequelas traumáticas da guerra e com o miasma da morte. Em nossa terminologia, o termo “vivo” não significa necessariamente estar saudável e seguro. Na realidade, significa tudo menos isso.

Quando um edifício alto que abriga dezenas de famílias – pais, avós, crianças, bebês, uma centena de pessoas que só querem alimentar seus filhos famintos – explode por causa de um ataque, uma parte das pessoas que lhe dão vida morre para sempre. As pessoas que são retiradas dos escombros de suas casas não esquecerão. Não vão se curar. Ficarão vivas pela metade.

Durante quase três semanas, Israel foi protegido pelos países mais poderosos, aplaudido pelos políticos e recebeu apoio militar, tudo isto ao mesmo tempo em que busca acabar com a vida de 2,3 milhões de pessoas que aprisionaram nos últimos 16 anos. Mais de 7.000 pessoas foram abatidas em Gaza. Outras milhares estão feridas. Um número incalculável ainda está sob os escombros.

Na quarta-feira passada, Joe Biden proclamou que não acreditava nos números de mortes divulgados pelo Ministério da Saúde em Gaza, embora se saiba bem que são precisos. Para o presidente dos Estados Unidos, nossas mortes pelo que parece são fake news.

·         Sonhar com a vida

A última coisa que queremos, como povo ocupado, é que nos ofereçam condolências e declarações. Só buscamos entender como poderemos, algum dia, processar a dor que nos acompanhará pelo resto de nossas vidas, enquanto o mundo nos aplaude por sermos “sobreviventes”. Queremos que as nossas demandas básicas sejam respondidas com ações e não com discursos nas Nações Unidas. Queremos um reconhecimento de que as nossas vozes emitem um som quando as usamos: que somos seres humanos, pessoas com esperanças e sonhos que apenas querem um futuro.

Isso não quer dizer que não seja importante que o mundo preste atenção na brutalidade que estamos suportando. Contudo, as pessoas precisam saber mais do que isso: saber que o nosso trauma é acompanhado por um desejo de viver em liberdade.

povo de Gaza se habituou a rotinas extraordinárias que desafiam o seu desejo de viver. Pessoas que são bombardeadas depois de esperarem horas em filas do lado de fora de uma agência humanitária para receber um pedaço de pão esfarelado não sonham com a solidariedade internacional. Sonham com a vida, mesmo que seja um pouco dela. Sonham em ser mais do que “vistos”, em se tornarem mais do que uma estatística. Quando o mundo aceita o assassinato de 700 seres humanos, em 24 horas, quanto tempo falta até que sejam 7.000?

Pede-se a nós, palestinos, que honremos a humanidade dos civis mortos pelo Hamas em Israel. Posso fazer isso sem titubear. Nenhum civil merece perder a vida e tenho muita experiência no sofrimento que a guerra causa. Contudo, não posso aceitar que seja correto para a humanidade que se reconheça apenas um lado deste conflito. Nos últimos 20 dias, 3.000 crianças morreram ao meu redor. Suas vidas não merecem ser choradas? Merecem ser lembradas apenas como estatísticas?

Conheci uma menina de seis anos que foi comprar seu doce favorito e ao retornar viu sua casa esmagada. Toda a sua família direta e estendida havia perecido. Tudo o que resta de sua linhagem é ela. O terror e a comoção serão seus companheiros por toda a sua vida. Nesse exato momento, eu não tinha certeza se ela queria ou precisava falar ao mundo. Só queria que lhe devolvessem a sua família.

Quando uma mulher promete a seu futuro esposo que colocará o vestido mais deslumbrante que ele já viu, só para levar uma mortalha na manhã seguinte, tudo o que ela quer saber é o porquê. Por acaso, seu casamento era uma ameaça?

Quando uma menina refugiada de 10 anos falta à escola em Gaza para protestar porque não recebeu a sua garrafa de água potável da agência humanitária, ela não quer a retórica de denúncia e condenação no mundo.

Quando os parentes de um estudante universitário planejam meticulosamente sua festa de formatura, tentando não esquecer qualquer detalhe e, em vez disso, preparam um caixão horas antes de verem seu amado filho no grupo dos graduados, jamais precisarão falar ao mundo. De qualquer modo, para que serviria? Só precisam de tempo para digerir e depois superar o fato de que seu filho se foi para sempre.

Ensinaram-me a não tomar partido ao cobrir uma guerra. Contudo, agora, eu mesmo sou um dos lados. O sentimento de abandono não é desconhecido, mas a extensão da conivência do mundo ainda dói. Tenho buscado conter o meu temperamento e não deixar que os meus sentimentos controlem o meu trabalho jornalístico.

Afinal, ser jornalista na Palestina, e particularmente em Gaza, significa que não tenho direito à proteção que supostamente o colete de imprensa me concede. Desde o dia 7 de outubro, quase duas dúzias de meus colegas jornalistas em Gaza foram abatidos. Ainda ontem à noite, Wael Al-Dahdouh, um dos jornalistas veteranos da Al Jazeera em Gaza, perdeu o seu filho, sua filha, sua esposa e um neto de um mês e meio. Isto é o que significa ser repórter em Gaza.

A vida se tornou imprevisível e todos em todas as partes estão escrevendo suas últimas palavras a qualquer momento. Agora, o que todos nós precisamos coletivamente é de menos trauma. Tudo o que pedimos é tempo para o luto. O luto é importante para que depois possamos nos curar... se é que algum dia conseguiremos.

Este ensaio sobreviveu ao bombardeio indiscriminado que dura 20 dias. Mas o que significa sobreviver, na realidade, quando tudo que faço ao escrever não é tomar meu café da manhã, mas, sim, limpar a poeira dos ataques aéreos na tela de meu laptop?

 

Ø  Guerra no Oriente Médio acirra focos de tensão entre potências militares, segundo especialistas

 

A escalada da guerra no Oriente Médio colocou em evidência também a atuação de Estados Unidos, China e Rússia. Potências militares que têm se colocado de lados opostos no conflito.

Os americanos, desde o início, apoiaram a ofensiva israelense na Faixa de Gaza e defendem no Conselho de Segurança da ONU uma resolução que garanta o direito de autodefesa de Israel, sem exigências de cessar-fogo.

Até agora quatro resoluções fracassaram. Neste cenário, a China assume a Presidência rotativa do Conselho, no lugar do Brasil, e tenta se posicionar como pacificadora, apesar de especialistas acreditarem ser pouco provável uma solução diplomática. O que está em jogo também são as movimentações militares destes países em outras frentes.

A China voltou a alertar, nesta semana, que “não mostrará misericórdia” contra qualquer movimento a favor de Taiwan, a ilha autônoma que o Partido Comunista da China, no poder, reivindica como sua. A declaração aconteceu durante um fórum de segurança promovido pelo país.

Em seu discurso, o principal oficial militar do Partido Comunista, general Zhang Youxia, fez críticas veladas aos Estados Unidos, que estavam presentes. Pequim cortou o diálogo militar de alto nível com Washington em agosto passado, em retaliação a uma visita da então presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, a Taiwan.

Os chineses mantêm, constantemente, navios de guerra próximos à ilha como uma demonstração de força e atacam tentativas de interferência, como a venda de armas pelo governo de Joe Biden a Taiwan.

Para Carlos Gustavo Poggio, professor do departamento de ciência política da Universidade de Berea, nos Estados Unidos, a tensão geopolítica entre China e Estados Unidos é a principal questão das relações internacionais do século XXI. “Estamos de volta a um momento de atritos entre grandes potências e uma guerra na região pode ser ainda mais ampla”.

Poggio afirma que “é possível que um conflito na região de Taiwan esteja no começo”.

“Caso a China tome alguma atitude no mar do sul do país e os norte-americanos não reajam, pode causar uma perda de credibilidade internacional, além de uma crise política interna, visto que o congresso norte-americano é muito forte na defesa por Taiwan”, afirma Poggio.

Um potencial encontro entre o presidente chinês, Xi Jinping, e o presidente americano, Joe Biden, nos Estados Unidos, no próximo mês, é visto pelos dois lados como uma oportunidade importante para estabilizar os laços.

O porta-voz do Ministério da Defesa chinês, Wu Qian, disse em uma entrevista de imprensa na semana passada que as autoridades chinesas “teriam intercâmbios” com a delegação dos EUA.

“A China atribui grande importância ao desenvolvimento das relações militares entre a China e os Estados Unidos”, disse Wu, acrescentando que esperava uma “atmosfera favorável para o desenvolvimento saudável e estável” das suas relações militares, segundo a mídia estatal.

Fausto Godoy, embaixador aposentado, que serviu em onze países asiáticos, incluindo a China, e trabalhou no escritório comercial do Brasil em Taiwan, alerta para a gravidade que um possível conflito teria na ordem mundial.

“Os ocidentais estão brincando com fogo, Taiwan faz parte da alma chinesa e o resgate de Taiwan é muito importante para a China”, menciona.

“É preciso que o continente e Taiwan negociem. É preciso usar esse caminho para continuar conversando o que deveria ter sido resolvido em 1949. É um legado que vem sendo carregado desde então e precisa ser administrado, até ser resolvido”, completa.

Apesar de uma possível escalada nas tensões, o professor visitante da Universidade de Relações Exteriores da China, Marcus Vinícius de Freitas, pondera que uma ação militar na região não interessa aos chineses neste momento.

“Em primeiro lugar, a China quer evitar uma colisão internacional, considerando as alianças diplomáticas dos EUA, o que causaria uma deterioração na economia chinesa. Além disso, os chineses possuem uma visão de longo prazo sobre o Taiwan. A perspectiva é de que, naturalmente, Taiwan voltará a fazer parte de uma China continental, assim como aconteceu com Hong Kong e Macau”.

Marcus Vinicius, no entanto, destaca que os chineses querem o domínio do território. “Por isso, os chineses não abrem mão do controle na região e da soberania sobre Taiwan. Em caso de uma escalada do conflito, o governo chinês buscaria, em primeiro lugar, o multilateralismo. Mas o instrumento militar poderia ser utilizado”, afirma o professor.

 

Fonte: Por Olga Robinson, Maria Korenyuk and Grigor Atanesianm da BBC Verify & BBC Global Disinformation Team/The Nation/CNN Brasil

 

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