É evidente que o
‘capitalismo de finitude’ não precisa da democracia, afirma historiador
Arnaud
Orain publicou Le Monde confisqué. Neste livro, o historiador decifra
a racionalidade das estratégias violentas e rentistas empregadas pelas elites
econômicas e políticas, que voluntariamente confabulam para se apossar de “um
bolo que não pode crescer”. É um livro que dá sentido à brutalidade
de Trump, às ofensivas dos gigantes digitais, à apropriação de terras
agricultáveis em todo o planeta e ao investimento sem precedentes
da China na sua marinha. Com a publicação de Le Monde confisqué.
Essai sur le capitalisme de la finitude (XVIᵉ-XXIᵉ siècle) [O mundo confiscado. Ensaio sobre
o capitalismo da finitude (séculos XVI-XXI)], editado pela Flammarion), o
historiador Arnaud Orain ousa propor uma leitura global dos
acontecimentos que chocam e marcam uma mudança de época.
<><> Eis
a entrevista.
·
Para
explicar as turbulências do nosso tempo (ameaças de guerra, recuo democrático,
protecionismo, etc.), você propõe a noção de um “capitalismo de finitude”.
Quais são suas principais características?
A ideia era sair da
habitual dicotomia entre períodos de triunfo do liberalismo e períodos de forte
intervenção do Estado. Nunca esqueci o que nos diziam aqueles professores que
estudavam o sistema soviético no departamento de economia: liberalismo e
capitalismo são duas coisas muito diferentes.
Prefiro identificar
dois tipos de capitalismo. Existe um capitalismo que é compatível com o
liberalismo. Baseia-se na concorrência, na redução ou mesmo ausência de
direitos alfandegários, na liberdade dos mares e numa utopia de aumento da
riqueza individual e coletiva, numa dinâmica que beneficiaria a todos. É a
época que muitos de nós vivemos, dos anos trinta aos setenta do século passado.
E depois existe o
capitalismo, por vezes chamado de capitalismo “mercantilista”, que chamo
de capitalismo “finito”. Refere-se a um mundo em que as elites acreditam
que o bolo não pode crescer mais. A partir daí, a única forma de preservar ou
melhorar a sua posição, na ausência de um sistema alternativo, passa a ser a
expropriação. Esta é a era em que acredito que estamos entrando.
·
Você
escreve que o capitalismo já passou por fases desse tipo nos séculos
anteriores. Que períodos são esses?
A trajetória do
capitalismo pode ser descrita da seguinte forma. Do século XVI ao XVIII:
trata-se de uma fase em que foram criadas potências imperiais que criaram
grandes empresas com monopólios, comércio exclusivo com as suas colônias e
guerras de natureza estritamente econômica. Foi o primeiro período do
capitalismo de finitude. Seguiu-se uma fase de liberalização, após
as Guerras Napoleônicas, vencidas pelos britânicos.
Alguns acreditam
que esta Pax Britannica continuou até 1914, mas ignoram a segunda
grande onda de colonização que começou na década de 1880. Nesta época, voltaram
as tarifas, os armazéns imperiais, os cartéis e as conquistas territoriais em
busca de “recursos”, tendências que se acentuaram na década de 1930, como
consequência da Grande Depressão, e culminaram na Segunda Guerra
Mundial.
Em 1945 começou uma
nova fase liberal. Baseou-se numa promessa de abundância sem precedentes, inicialmente
para o mundo ocidental e depois estendida a todo o mundo a partir da década de
1990. Assim como é “centrado no Ocidente” pensar na ruptura com o passado
em 1914, também o é acreditar que a era neoliberal mudou tudo. O verdadeiro
momento em que a promessa foi quebrada, especialmente em relação aos limites
ecológicos do planeta, foi na década de 2010.
A referência
obsessiva de Trump à Era
Dourada estadunidense deve
ser levada a sério. Foi a era dos monopólios, da difamação da concorrência, das
grandes desigualdades
sociais,
mas também do grande retorno da colonização, que os próprios Estados
Unidos praticaram em Porto Rico e no Havaí.
·
Na
sua opinião, a “broligarquia” tecnológica que ganhou destaque na posse de Trump
é uma ilustração perfeita deste capitalismo de finitude. Tem-se a impressão de
que são a versão do século XXI de algumas das companhias marítimas que
organizaram a contraeconomia séculos atrás...
Na verdade, existe
um paralelo entre estas diferentes encarnações de “empresas-Estado”. Durante
muito tempo, contou-se uma história romântica sobre as empresas das Índias
Orientais. A VOC [Companhia
Holandesa das Índias Orientais], por exemplo, tinha dezenas de milhares de
escravos e praticava uma violência que beirava o genocídio, como nas Ilhas
Banda. Na Índia, os britânicos não compravam muita coisa no final do
século XVIII: saqueavam e tributavam a população.
Estas empresas
tinham seus próprios direitos, fortalezas e exércitos, o que podia inclusive
causar atritos com os Estados de onde provinham. O importante é lembrar que
monopolizavam áreas para gerar renda a partir de uma lógica rentista, em vez de
gerar lucros a partir da livre concorrência. No final do século XIX, empresas
deste tipo ressurgiram durante o renascimento da colonização, especialmente
na África.
Hoje, os gigantes
digitais combinam o poder do mercado com o poder soberano. São capazes de
mobilizar o espaço público através das redes sociais, fornecer conexões à
internet para áreas inteiras, interferir na esfera militar com satélites e
tentar extrair dinheiro aproveitando uma posição monopolista sobre os dados.
No entanto, há uma
diferença de uma época para outra. As empresas dos séculos XVII e XVIII
desempenhavam um papel importante na política dos seus respectivos Estados, mas
não se tratava de se impor dentro da metrópole. Agora os gigantes
tecnológicos apropriam-se
de prerrogativas soberanas dentro dos seus próprios Estados. No entanto, como
no passado, pode haver divergências entre estas empresas: Elon
Musk e Peter
Thiel,
por exemplo, não compartilham a mesma opinião sobre a desvinculação econômica
da China.
·
A
sua tese também nos permite compreender melhor o significado histórico de outro
fenômeno que tem ganhado as manchetes: a interrupção da liberdade de navegação
no Mar Vermelho pelos hutis do Iêmen, no contexto da guerra no Oriente Médio.
Você insiste no fato de que o capitalismo de finitude é acima de tudo o
fechamento dos mares.
Há cerca de dez
anos que os oceanos voltaram a ser um tema importante nas relações
internacionais. No capitalismo de finitude, fazemos comércio com os nossos
amigos, os nossos vassalos, as nossas colônias, num regime em que somos
protegidos pelo nosso poder imperial, porque não existe mais uma potência
hegemônica capaz de garantir a liberdade dos mares para todos.
Embora ainda não
tenhamos chegado a esse ponto, há fortes indícios de que isso está acontecendo.
É significativo o fato de que os hutis não estejam
atacando navios chineses e russos, enquanto as empresas ocidentais têm agora de
contornar a África. Neste contexto, assistimos a um enfraquecimento da
marinha estadunidense e, pelo contrário, a um enorme aumento do poder da
marinha chinesa, tanto mercante como militar. Para garantir a liberdade dos
mares, não pode haver duas potências hegemônicas. Só funciona com uma.
É claro que o
movimento MAGA em torno
de Trump já não quer pagar pela segurança mundial. É preciso dizer
que os Estados Unidos não estão longe de ter energia suficiente entre
gás, petróleo e painéis solares domésticos, e que estão bem abastecidos de
matérias-primas na América do Sul. A vontade de anexar a Groenlândia responde ao
objetivo de ter acesso a determinados recursos minerais para completar a
panóplia.
Anuncia-se
um novo mundo, com rotas marítimas seguras para alguns, mas não para
outros. Para as potências europeias, acostumadas há oitenta anos à liberdade
dos mares garantida pelo seu principal aliado, a ruptura é considerável.
·
É
compreensível que o capitalismo baseado na finitude não combine bem com os
princípios democráticos. Mas, o vínculo não é mais complexo? Afinal, vimos a
qualidade dos regimes democráticos deteriorar-se durante a era neoliberal, do
mesmo modo que vimos avanços democráticos no final do século XIX.
Não existe uma
conexão necessária entre capitalismo e autoritarismo, assim como não existe
entre liberalismo econômico e democracia. O fato é que o capitalismo de
finitude claramente não precisa da democracia e que esta representa inclusive
um obstáculo.
Na verdade, as
exigências democráticas são geralmente mais igualitárias, com vias para que os
pequenos produtores e trabalhadores possam expressar seus interesses. Já o
capitalismo de finitude valoriza o empresário que alcança o monopólio e,
portanto, a desigualdade. A tomada de poderes soberanos por empresas estatais,
que não prestam contas a ninguém, também é contraditória aos princípios do
governo representativo.
No capitalismo
da finitude, contudo, as aspirações populares podem ser capturadas argumentando
a favor da natureza protetora das medidas de fechamento. É o
que Trump está fazendo. Destacar o progresso tecnológico e as novas
fronteiras que imaginamos que se estenderão ao espaço é também uma forma de
ampliar a sua base eleitoral.
É o que a
extrema-direita europeia não compreendeu. Quando não se tem empresas estatais
em setores estratégicos, nem grandes frotas militares, poucos recursos energéticos
próprios... o risco, num mundo “trumpizado”, é, sobretudo, o empobrecimento que
leva ao servilismo.
·
Voltemos
à sua periodização das fases liberais e das fases marcadas pela consciência da
“finitude”. Como você explica a sua alternância?
Não abordo diretamente
a questão da causalidade destas alternâncias. Mas vejamos o que disse Karl
Polanyi sobre
o colapso da fase liberal no século XIX. À medida que a promessa de abundância
coletiva e individual se tornava cada vez mais difícil de cumprir, o mais-valor
teve de ser extraído de outra forma, por meios imperialistas, destruindo as
estruturas tradicionais do mundo recentemente colonizado. As elites teorizaram
sobre isso e os críticos do imperialismo denunciaram-no na época.
Desde o final do
século XX e início do XXI, um fenômeno relativamente semelhante vem ocorrendo.
A partir do momento em que os países emergentes e as novas classes médias
começam a consumir proteínas animais e combustíveis fósseis de acordo com os
padrões ocidentais, a promessa de abundância se choca com as limitações dos recursos.
Torna-se difícil crescer sem novos mecanismos de expropriação, que não podem
ser alcançados num quadro liberal.
No neoliberalismo, o Estado e as
instituições internacionais impõem um quadro rigoroso para garantir um ambiente
competitivo. Estamos em vias de sair deste quadro, porque não basta manter o
nível de vida ou garantir os lucros das grandes empresas tecnológicas. A saída
é um capitalismo menos padronizado, mais brutal, com formas de dominação mais
diretas que prescindem do mercado.
·
Você
aponta a finitude dos recursos naturais, mas o problema não é também interno ao
próprio sistema de acumulação? O capital luta para encontrar seu valor, no
Ocidente, mas também na China. É por isso que o neoliberalismo representou uma
ruptura com o passado: mudou a base da acumulação, que se tornou mais
financeirizada e menos favorável ao mundo do trabalho.
Nós não discordamos.
Os promotores do neoliberalismo tentaram claramente dar continuidade, através
de uma lógica competitiva exacerbada, a um modo de produção que já estava
esgotado na década de 1970. Mas depois da grande recessão de 2008, o
crescimento econômico alcançado através das exportações revelou-se um bolo cada
vez mais limitado. Nos países do Norte, assistimos a um relativo
empobrecimento das classes média e trabalhadora.
A França e
os Estados Unidos foram os primeiros a sentir o impacto da entrada
da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), e agora
chegou à Alemanha. Na prática, os ocidentais estão descobrindo que a
teoria que justificou o livre comércio – a especialização baseada na vantagem
comparativa – não funciona. O emplastro do neoliberalismo já não é suficiente
para conter os problemas de uma indústria em colapso. Isto contribui para o
aumento das rivalidades geopolíticas dentro do capitalismo global.
·
A
fase liberal do capitalismo iniciada em 1945, mais ou menos temperada pelo
Estado social, foi também a fase da “grande aceleração” da degradação ecológica
do sistema Terra. Você não subestima o caráter permanente da dimensão
expropriadora da lógica capitalista?
Durante
os Trinta Gloriosos e o período neoliberal, houve trocas claramente
desiguais em todo o planeta. Mas foram as relações de mercado que predominaram.
Tomemos o caso da terra. No mundo liberal, este ativo é como líquido. Os preços
são fixados e cada Estado compra, no mercado mundial, o que não tem para
consumo da sua população. Este é o modelo centrado na OMC.
Desde os distúrbios
alimentares de 2007-2008, e novamente após a pandemia da Covid, algo
diferente está acontecendo: uma apropriação direta de terras, sobretudo por
parte de empresas estatais dos Emirados Árabes Unidos e
da China, mas também por empresas estadunidenses e holandesas. Elas
compram a terra, fornecem insumos e sementes e se apropriam das colheitas sem
intermediários ou preços de mercado. Algo semelhante acontece com os recursos
minerais e pesqueiros.
Em termos mais
gerais, chama a atenção o crescimento, tanto na esfera intelectual como
empresarial, da ideia de que o capitalismo é um jogo de soma zero. Escritores
críticos como Dylan
Riley e Robert
Brenner desenvolveram
recentemente esta ideia na New Left Review, mas como historiador, podemos
encontrar ecos disso no século XVII, quando os primeiros pensadores do
capitalismo explicaram que nem todos no mundo podiam participar dos grandes
mercados têxteis.
·
O
capitalismo finito do século XXI tem uma qualidade especial em comparação com
fases anteriores deste tipo? Poderíamos imaginar um retorno quase
tranquilizador, mas o sistema capitalista está envelhecendo.
Temos um novo
problema. A finitude do mundo é, sem dúvida, a finitude dos recursos naturais e
a saturação do mercado mundial: a finitude da velha escola, por assim
dizer. Mas é também o fato de que, para alcançar uma transição
energética que
evite mudanças climáticas desastrosas, precisamos de enormes quantidades
de minerais e metais. O
planeta é duplamente finito: precisamos de recursos para manter o capitalismo
fóssil, mas também para fazer a transição. Não vejo como isso não causará
grandes conflitos.
·
Para
você, o “mundo confiscado” segue sendo um mundo capitalista, onde o problema é
o imperativo da acumulação, seja feita ou não com energia de carbono. Então,
opõe-se a teses como as de Yánis
Varoufákis ou Cédric
Durand,
que falam da emergência de um “tecnofeudalismo” em vez do
capitalismo?
Eu não concordo com
esse termo. O feudalismo implica uma relação mais política do que econômica, um
poder baseado em hierarquias extraeconômicas, justificadas de forma teológica
ou tradicional. Mas continuamos num sistema em que a relação de dominação se
baseia no dinheiro, em benefício dos capitalistas.
Só que alguns
destes capitalistas também querem ser soberanos, com um guarda-chuva de
comerciante e outro de (para-)Estado. Essa é a mudança que está ocorrendo: uma
lógica capitalista segue operando, mas é acompanhada pela tomada da terra, do
mar, do ar e inclusive do ciberespaço e do espaço público, o que pode ser
descrito como a tomada da soberania.
·
Você
defende uma economia ecológica, que é uma versão radical da “ecologia de
guerra” defendida por Pierre
Charbonnier:
basicamente, preservar a autonomia através da sobriedade, em vez de entrar no
jogo dos impérios. Mas isto é possível diante da sua capacidade de chantagem e
coerção?
Como manter um
regime democrático diante de impérios que querem o mesmo que nós? A minha
esperança é ver surgir uma política de transição energética muito ambiciosa,
com uma redução drástica do consumo de energia, porque isso envolverá
necessariamente recursos minerais e metálicos.
É uma linha muito
tênue: uma transição forte que nos permita não seguir muito uma política de
imperialismo e de vassalagem, e ao mesmo tempo garanta autonomia face aos
impérios predatórios, que serão, no longo prazo, vencedores. Mas isto implica
uma reorganização tão radical da nossa organização social que não sei se é
possível.
Esta questão
levanta a problemática de um governo baseado nas necessidades, em vez de uma
corrida precipitada em direção à acumulação. Precisamos realmente de milhões
de veículos
elétricos individuais?
Não precisamos mudar o nosso estilo de vida para escapar da corrida imperial?
Fonte: Por Fabien
Escalona e Romaric Godin, Mediapart -
tradução do Cepat.
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