Como os movimentos
feministas estão sobrevivendo à Argentina de Milei?
A Argentina
feminista, a Argentina trans, a Argentina travesti e não binária estão em pé,
mais ativas e atives do que nunca. Entrevistei em Buenos Aires as advogadas do
ELA – organização que promove os direitos para a igualdade de gênero – e Mochacelis
– associação pelos direitos das pessoas TTNB (travestis, trans e não binárias).
Após um ano de governo Milei, presidente argentino do partido La Libertad
Avanza da extrema direita, é importante registrar e acompanhar as ações que os
movimentos sociais desenvolvem para enfrentar o desmantelamento de políticas
contra a violência de gênero, que tiveram início em dezembro de 2023.
Ainda restam mais
três anos desse governo Milei, com seu modelo de gestão obcecado com a redução
do déficit fiscal. Além do aumento da precarização do acesso à saúde, educação,
bem-estar das pessoas idosas e da situação dos direitos humanos de modo
geral.
FEMINISMO E
DIREITOS HUMANOS SEM INTERMEDIÁRIOS
Ângela Davis dizia:
“Eu não aceito as coisas que não posso mudar, eu mudo as coisas que não posso
aceitar”. Essa frase ecoa em todas as reuniões e manifestações públicas de
grupos feministas e movimentos TTNB da Argentina. Esse processo de luta não é
solitário, embora esteja permeado e estigmatizado por discursos de ódio. A estratégia
dos movimentos feministas argentinos foi de ampliar as parcerias com outras
organizações de direitos humanos e trabalhar com uma agenda mais ampla.
Para monitorar a
implementação efetiva dos direitos sexuais e reprodutivos, a equipe ELA formou
um consórcio em estreita colaboração com a Anistia Internacional. “Estamos
ativas, por exemplo, na busca de acesso a informações públicas sobre a
distribuição de misoprostol por parte da Administração do Governo Central para
as províncias argentinas“, explicou Agustina Rossi, da área de políticas do
ELA.
ACESSO A DADOS E AO
ABORTO TÊM BARREIRAS
Acessar dados
públicos e fontes é uma tarefa que apresenta travas e complicações na
Argentina. Desde outubro de 2024, existem barreiras ao acesso à informação. Um
decreto presidencial de Milei torna muito difícil os levantamentos e
monitoramentos de ações públicas.
Desde o início da
administração de Milei a compra de material essencial para o acesso ao aborto
seguro ficou paralisada. Isso aumenta cada vez mais as barreiras a este direito
nas diferentes jurisdições do país. Com base nas informações fornecidas pelo
Ministério da Saúde para a Anistia Internacional Argentina e o ELA, em 2024,
nenhum suprimento foi entregue às províncias argentinas, devido a um atraso com
a licitação pública.
“Hoje, em janeiro de 2025, o processo de
licitação para a compra de misoprostol e mifepristona continua sofrendo atrasos
excessivos e se desconhecem as causas da demora, assim como as informações
sobre em que mês os insumos estarão disponíveis”, informou a área jurídica do
ELA.
O feminismo é o
inimigo íntimo de Milei. O primeiro sinal do seu mandato – em dezembro de 2023
– foi muito simbólico. Ele eliminou o Ministério da Mulher, Gênero e
Diversidade, que foi recategorizado como Subsecretaria de Proteção contra a
Violência de Gênero.. As associações ativistas e feministas redobraram os
esforços para cobrar as informações oficiais sobre as atribuições dadas para as
novas entidades e como ficaram distribuídos os programas e responsabilidades
anteriormente gerenciados pelo Ministério da Mulher.
Para Agustina
Rossi, do ELA, o que ficou muito claro foi a estratégia de fragmentação dos
programas de apoio existentes. Isso colocou vítimas de violência de gênero numa
situação de absoluta incerteza, falta de proteção e resposta, sem uma
comunicação clara de onde solicitar ajuda.
POLÍTICAS CONTRA
VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENFRAQUECIDAS
O relatório
¿Libradas a su suerte?, elaborado por ELA e ACIJ (Associação Civil pela
Igualdade e Justiça), analisou o estado das políticas públicas contra a
violência de gênero durante os primeiros seis meses do governo de Javier Milei.
“Os resultados mostram uma alteração significativa, um desmantelamento dessas
políticas”, afirmou Agustina.
Milei e o
Ministério da Justiça atribuíram os “cortes” a uma necessidade de eficiência do
Estado. Mas sem dizer que não iam cumprir suas obrigações como vinha
acontecendo nos anos anteriores. No Fórum Econômico de Davos, ele reafirmou a
ideia de que “o giro progressista” dado pelo mundo nos últimos anos prejudica a
economia global.
Alinhado com o
brutalismo comunicativo de Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos,
Milei afirma: “A agenda do feminismo radical tornou-se mais uma intervenção do
Estado para travar o processo econômico”. Sendo assim, as medidas imediatas do
presidente argentino foram para reduzir as políticas para as mulheres e
gênero.
ÓRGÃO NACIONAL
EXTINTO NA ARGENTINA
O antigo
Ministério, reduzido a Subsecretaria de Proteção contra a Violência de Gênero
no governo Milei, foi definitivamente extinta agora. Pela primeira vez desde os
anos 80, não há um órgão nacional para promoção e proteção dos direitos das
mulheres e das pessoas LGBTQIAPN+. Em 2023, segundo o Observatório de
Feminicídios da Defensoria Geral da Nação, houve 322 feminicídios no país. O
número representa cerca de 30% a mais do que no ano anterior, quando foram
registrados 242. Na última década, foram registradas pelo menos 2.446 vítimas
diretas de feminicídio.
Nesse início de
2025, o governo de Milei confirmou o projeto de reforma do conceito de
feminicídio no Código Penal Argentino. Disposto a se tornar um aliado cada vez
mais próximo de Donald Trump contra a diversidade de gênero, o presidente da
ultradireita argentino tem uma proposta de reverter as leis que ampliaram os
direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIAPN+ na Argentina.
MULHERES E PESSOAS
LGBTQIAPN+ EM MAIOR RISCO
A fragilização e a
desagregação dos 22 programas do Estado argentino contra as violências por
motivos de gênero estão impactando a vida de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. A
pesquisa mencionada acima, ¿Libradas a su suerte?, explica como o programa
chamado Acompañar ficou paralisado. A iniciativa prestava apoio econômico às
mulheres e pessoas vítimas de violência de gênero, e permitia cobrir
necessidades urgentes. No primeiro trimestre de 2024, apenas 400 mulheres
receberam o benefício, em comparação com as 34.000 no mesmo período de
2023.
“A falta de acesso real desencoraja as vítimas
e as expõe ainda mais, perpetuando a violência num sistema que promete uma
ajuda que nunca chega”, comenta Agustina Rossi. Atualmente, para acessar o
programa, existe uma nova disposição: as mulheres têm de denunciar a violência
nas delegacias de polícia. “Isso as coloca em maior risco”, afirma Manuela
Kotsias Fuster, advogada na equipe do ELA.
SOCIEDADE CIVIL QUE
SALVA
As pessoas
LGBTQIAPN+ na Argentina também se encontram em desamparo por parte do Estado. E
são as organizações da sociedade civil que de alguma maneira canalizam os
pedidos e solicitações de pessoas em situação de risco por causa de
violências.
Na associação
Mochacelis, são nove programas de apoio a pessoas dessa comunidade. Um deles, o
EmpleoTrans, tem convênios com empresas e grandes comércios para a inserção
profissional de TTNB. Virginia Silveira, presidenta da Mochacelis, contabiliza
que a organização recebe em média 2.000 pessoas por mês por motivos de
violência e situação de rua, tanto de travestis como de pessoas não
binárias.
“Fazemos convênios com o Governo da Cidade de
Buenos Aires, não com o Federal, para receberem essas pessoas em abrigos
noturnos. Mas há uma lacuna muito grave nos cuidados de saúde mental da nossa
população“, destacou Virgínia, acrescentando a ocorrência de cortes orçamentais
e de profissionais nos hospitais públicos argentinos. Foi o caso da Unidade
Nacional Laura Bonaparte, especializada em saúde mental, que despediu 183
profissionais. “É o único centro de saúde pública especializado no acolhimento
de pessoas que não têm cobertura médica. As nossas companheiras costumavam ir
lá e agora ficam sem atendimento.”
AVANÇOS ESCASSOS
NÃO ELIMINAM A VIOLÊNCIA
Nos últimos três
anos, houve avanços legislativos em termos dos direitos das pessoas LGBTQIAPN+.
Exemplos disso são a lei sobre o Acesso ao Emprego Formal para Travestis,
Transexuais e Transgêneros; o decreto sobre os Bilhetes de Identidade Não
Binários e a lei sobre o Acesso ao IVE/ILE com uma perspectiva de
diversidade.
Mas ainda é uma
população que continua a enfrentar violência e discriminação estrutural. De
acordo com informações do Observatório Nacional de Crimes de Ódio contra
Pessoas LGBTQIAPN+ (2023), na Argentina são registrados anualmente 133 crimes
de ódio contra pessoas LGBTQIAPN+, 89% dos quais contra transexuais. A
vulnerabilidade se estende a outros aspectos de marginalização: 73,2% da
população de travestis e transexuais (60.679 habitantes) não completou o ensino
secundário. A esperança de vida não passa dos 40 anos, sendo que apenas 1%
atinge os 60 anos de idade.
MILEI, TRUMP E
BOLSONARO CONTRA NÓS
Ativistas e
defensores de direitos das pessoas travestis/trans preveem que o ano de 2025
vai ser de muitos cuidados e proteção da comunidade. “Integramos o grupo
Orgulho e Luta e trabalhamos com estratégias de cuidados mútuos”, falou
Virginia Silveira. Ela continua: “Conhecemos muito bem a situação grave da
comunidade e como os discursos de ódio são transfronteiriços e alimentaram a
era Bolsonaro (no Brasil), agora Milei e o Trump. Por isso, os esforços de
apoio entre organizações têm que ser redobrados.”
Milei ecoa
Bolsonaro, Bolsonaro ecoa ao Milei, e ambos ao Trump. Vibram em sintonia e
avançam com discursos antidireitos e em detrimento de sociedades inclusivas e
diversas. A Argentina de Milei vive hoje o mesmo clima de luta da época do
mandato de Bolsonaro no Brasil.
As campanhas
políticas desses dois ultraconservadores foram construídas como uma “batalha
cultural” entre o Bem e o Mal. O que deu origem a discursos de ódio que estão
ainda latentes nas sociedades argentina, brasileira e americana. Colocar fim à
“agenda ideológica” é um dos objetivos de Milei, que segundo ele é uma agenda
criada pelos governos anteriores para fins partidários.
CONSCIÊNCIA SOBRE
IGUALDADE DE GÊNERO
Estamos em um
início de ano muito problemático. Pessoas migrantes foram detidas e retidas na
fronteira entre o México e os Estados Unidos, um dia após da posse de Trump. O
presidente norte-americano assinou uma ordem executiva que obriga que os
passaportes e documentos de identificação oficial reflitam só o sexo que foi dado
ao nascer, ou seja, nega a existência de pessoas trans.
O fortalecimento de
grupos antidireitos se amplia e os movimentos de direitos humanos e feministas
continuam trabalhando firmes em criar consciência sobre a igualdade de gênero e
dos direitos. Essa será a missão no horizonte, sem abaixar a guarda,
impulsionando ações de litígio, mas também interpelando novos públicos.
Na Argentina é um
desafio começar a falar com outros públicos, por exemplo, com os homens jovens
que são os maiores votantes e eleitores do Milei. Não podemos achar que os
outros vão entender automaticamente o que queremos dizer, como aponta Agustina
Ciancio, advogada do ELA. “Temos um trabalho de comunicação a ser feito para
explicar, por exemplo, o porquê as mulheres em situação de violência de gênero
devem receber apoio econômico.”
Fonte: Por Soledad
Dominguez, em AZMina
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