sábado, 15 de fevereiro de 2025

A negação do genocídio nos estudos do Holocausto

que está no cerne do apoio incondicional que a Alemanha dá a Israel, inclusive nos últimos dezesseis meses do ataque genocida de Israel a Gaza? Esta questão continua relevante mesmo que o cessar-fogo atual ponha fim ao genocídio: abordá-lo lança luz sobre o processo de décadas de colonialismo de ocupação israelense que levou ao genocídio, uma Nakba em curso que continua a se desenrolar independentemente do cessar-fogo. De fato, o ataque de Israel aos palestinos não terminou, e na Cisjordânia ocupada ele realmente se intensificou desde que o cessar-fogo em Gaza começou, com ataques mortais de colonos e do exército israelense.

Uma parceria entre acadêmicos israelenses e alemães estudiosos do Holocausto oferece algumas respostas preocupantes para essa questão. Em um evento online organizado pelo Holocaust Studies Program no Israeli Western Galilee College (WGC) em 19 de dezembro de 2024, três palestrantes — Alvin Rosenfeld, professor de inglês e estudos judaicos na Indiana University; Verena Buser, historiadora alemã que leciona online no WGC; e Lars Rensmann, professor de ciência política na University of Passau, na Alemanha — atacaram acadêmicos que estudam o Holocausto e o genocídio que escreveram e falaram sobre as ações genocidas de Israel em Gaza, incluindo eu.

Embora o evento tenha sido organizado em homenagem a Yehuda Bauer, uma figura fundadora dos estudos do Holocausto que faleceu em 18 de outubro de 2024, aos noventa e oito anos, os palestrantes mal mencionaram Bauer ou seu trabalho. Nem avaliaram a montanha de evidências do genocídio em curso em Gaza desde 7 de outubro de 2023. Em vez disso, optaram pela negação total do fato.

Buser, por exemplo, afirmou que os acadêmicos que caracterizam as ações de Israel em Gaza como genocídio ignoram “críticas internacionais extensas” sobre a validade dos números de vítimas palestinas que, ela acrescentou, “não distinguem entre combatentes e civis”. A verdade é que há um amplo consenso internacional de que Israel matou mais de 46.000 palestinos. Os números reais, além disso, são provavelmente muito maiores: um artigo recente na Lancet argumenta que Israel matou mais de 64.000 palestinos até o final de junho de 2024, sendo a maioria deles não combatentes, incluindo milhares de crianças. De acordo com a Save the Children, “o território palestino ocupado é classificado hoje como o lugar mais mortal do mundo para crianças: cerca de 30% das 11.300 crianças identificadas mortas em Gaza [entre outubro de 2023 e agosto de 2024] tinham menos de cinco anos”. Israel matou, além disso, quase três mil crianças palestinas em Gaza que permaneceram não identificadas até o final de agosto de 2024.

A negação do genocídio de Buser se estendeu além da minimização típica do número de vítimas, que também caracterizou a negação do Holocausto; ela também se referiu a “relatórios que mostram que não há fome [em Gaza] ou que ela é causada pelos desafios logísticos da guerra”. Ela não apontou nenhum relatório e não deu nenhum exemplo específico de desafios logísticos. Isso não é surpreendente, pois também há amplo consenso internacional sobre as políticas de promoção da fome bem documentadas de Israel, que os líderes militares israelenses discutiram abertamente.

“Acusar-nos de antissemitismo pela maneira como nos identificamos como judeus reproduz a visão antissemita que nega identidades judaicas plurais para retratar todos os judeus como um e iguais, ‘os judeus’.”

A maioria dos acadêmicos na mira dos painelistas do evento WGC são judeus, incluindo eu, atacados pela maneira como entendemos e expressamos nossas críticas às atrocidades em massa israelenses através do prisma de nossas identidades judaicas. Aparentemente, somos do tipo errado de judeus. Mas nos acusar de antissemitismo pela maneira como nos identificamos como judeus reproduz a visão antissemita que nega identidades judaicas plurais para lançar todos os judeus como um e iguais, “os judeus”. Como tal, os ataques contra acadêmicos judeus são parte da visão de mundo racista mais ampla dos palestrantes no evento WGC, visando principalmente denegrir os palestinos.

O mais escandaloso é que o historiador israelense Dan Michman, que atua como chefe do Instituto Internacional de Pesquisa do Holocausto em Yad Vashem, evocou ninguém menos que Adolf Hitler para dar peso aos ataques dos palestrantes:

Ninguém vê problema com o termo “palestino”… Mas se você voltar um século, para Mein Kampf, por exemplo… Hitler diz em um certo ponto que os sionistas querem estabelecer um Estado palestino para ter uma base para suas atividades criminosas. Agora, um Estado palestino de um século atrás era um Estado judeu. E o fato é que durante o período do Mandato [Britânico] na Palestina, os habitantes judeus eram chamados de judeus palestinos, os árabes eram árabes palestinos… Em 1948, Israel foi estabelecido, e os judeus palestinos se tornaram israelenses, então o termo [palestino] foi deixado em aberto, e somente à partir da década de 1950 [é] que começamos a ouvir sobre palestinos.

Parece que Michman pretendia ecoar Rensmann, que afirmou em sua palestra no início do evento que “os nazistas eram abertamente, agressivamente, desde suas próprias raízes, desde Hitler em 1920… abertamente antissionistas e atacaram o potencial Estado sionista”. A lógica em ação aqui é que se Hitler era um antissionista, o antissionismo só pode ser antissemitismo — uma afirmação que os palestrantes fizeram repetidamente. Ao fazer isso, eles ignoram a rica história dos judeus antissionistas e das organizações e partidos políticos judeus antissionistas, bem como dos muitos judeus antissionistas e organizações judaicas ao redor do mundo hoje. Eles apresentam, em vez disso, uma situação bizarra em que um professor alemão afirma determinar para os judeus a legitimidade ou ilegitimidade de suas identidades judaicas, reforçado por um estudioso israelense do Holocausto que acaba reproduzindo a lógica do racismo de Hitler.

Michman e Rensmann, além disso, direcionam suas críticas não aos neonazistas e grupos relacionados que estão novamente em ascensão na Alemanha e em outros lugares, mas aos judeus antissionistas. Michman e Rensmann se lançaram nesse argumento paradoxal por um motivo. Eles não podem tolerar judeus antissionistas, incluindo estudiosos judeus antissionistas do Holocausto e do genocídio que ousam argumentar que os ataques de Israel a Gaza desde outubro de 2023 se enquadram no crime de genocídio segundo o direito internacional.

No entanto, esses estudiosos judeus não estão sozinhos. William Schabas, um dos mais importantes especialistas em direito internacional sobre genocídio, que vem de uma família de sobreviventes do Holocausto, explicou em uma entrevista no final de novembro de 2024 que em Gaza… a infraestrutura foi massivamente destruída, as pessoas não conseguiram escapar — e então houve as declarações terríveis feitas pelo [ex-ministro da defesa israelense] Yoav Gallant… As declarações vieram de ministros, porta-vozes do governo e líderes militares, todos os quais têm influência sobre as tropas. Elas são mais frequentes e mais sérias do que em qualquer outro caso perante [a Corte Internacional de Justiça] que eu tenha conhecimento… Junto com a fome e a falta de acesso à água e saneamento, a destruição sistemática de casas, escolas e hospitais, surge uma imagem que poderia ser interpretada como sendo o resultado de intenção genocida.

Para Rensmann, no entanto, a “alegação de genocídio [contra Israel] é parte integrante da história do antissemitismo do século XX e agora do século XXI”.

Buser se baseou em Rensmann para afastar os acadêmicos dos estudos sobre o Holocausto e o genocídio, principalmente judeus, cujo trabalho se baseia no vasto e crescente corpo de fontes sobre o genocídio de Israel em Gaza. Isso inclui material da acusação de genocídio que a África do Sul apresentou contra Israel na Corte Internacional de Justiça; os muitos mapas, depoimentos de palestinos, fotos aéreas e outras fontes nos relatórios da Anistia Internacional, da Human Rights Watch, da Forensic Architecture e da relatora especial da ONU, Francesca Albanese, sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967; e os milhares de vídeos orgulhosamente upados nas mídias sociais por soldados e oficiais israelenses nos quais eles documentaram sua própria violência e crimes.

Negando essa realidade muito documentada, Buser postula que os acadêmicos dos estudos sobre o Holocausto e o genocídio que ela pretende desacreditar usam a Declaração de Jerusalém sobre o Antissemitismo (JDA), que “absolve o antissionismo e as comparações nazistas de acusações de antissemitismo”. A JDA, ela continuou, portanto, permite que esses acadêmicos façam declarações antissionistas ou sugiram comparações históricas que ela vê como antissemitas, incluindo, em suas palavras, que “o Estado de Israel é um Estado branco, colonizador e de apartheid que está cometendo genocídio em Gaza”.

A JDA de fato determina que “criticar ou se opor ao sionismo como uma forma de nacionalismo não é antissemita”, pois “em geral, as mesmas normas de debate que se aplicam a outros Estados e a outros conflitos sobre autodeterminação nacional se aplicam no caso de Israel e Palestina”. Em outras palavras, se é legítimo criticar qualquer ideologia política ou política de um Estado — um direito constitucional protegido nos Estados Unidos — também é legítimo no caso do sionismo e de Israel.

Portanto, a JDA conclui corretamente que “mesmo que controverso, não é antissemita, em si, comparar Israel com outros casos históricos, incluindo colonialismo de povoamento ou apartheid”. Buser, no entanto, como seus colegas painelistas no evento do WGC, equipara antissionismo com antissemitismo, tornando antissemitas, aos seus olhos, os acadêmicos que ela alveja. Seus slides listam os onze mais proeminentes deles em sua opinião, oito deles judeus, incluindo eu.

·        A ideia da singularidade do Holocausto

Oque fazer com essa parceria entre estudiosos israelenses e alemães do Holocausto que atacam os judeus para negar o genocídio israelense, ao mesmo tempo em que reproduzem o racismo antipalestino eliminatório que impulsiona esse genocídio? Podemos começar a destrinchar essa questão lembrando que o evento do WGC teve como objetivo homenagear Bauer, o estudioso do Holocausto mais associado à ideia de que o Holocausto é singular na história humana. Essa ideia, que também orientou o trabalho de Rosenfeld e Michman, desempenhou um papel fundamental na política e nas sociedades de Israel e da Alemanha.

A ideia da singularidade do Holocausto na história humana foi facilitada pela formulação do conceito de genocídio na Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio em 1948, como um resultado do que o que hoje chamamos de Holocausto (ninguém usava o termo na época) ter sido caracterizado como mais terrível do que genocídio. Essa hierarquia, que mais tarde veio a incorporar a essência do campo acadêmico estudos sobre Holocausto e genocídio em seu título, serviu a um interesse crucial para os vencedores da Segunda Guerra Mundial: ela separou a violência em massa nazista da longa história de genocídios coloniais ocidentais.

“A ideia da singularidade do Holocausto reproduz, ao invés de desafiar, o nacionalismo excludente e o colonialismo de povoamento que levaram ao Holocausto.”

Mais imediatamente, também desviou a atenção dos crimes de guerra em larga escala dos aliados ocidentais durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo o lançamento de bombas atômicas no Japão pelos Estados Unidos, que o estudioso do genocídio Leo Kuper descreveu mais tarde em seu livro de 1981 Genocide: Its Political Use in the Twentieth Century [Genocídio: Seu Uso Político no Século XXI] como atos genocidas. O interesse ocidental sobre o novo crime de genocídio terminou aí. No Ocidente, essa hierarquia tornou os judeus as vítimas mais puras, um movimento possibilitado pelo lugar fundamental dos judeus no mundo judaico-cristão. Como o falecido historiador do Holocausto Alon Confino argumentou em A World Without Jews [Um Mundo Sem Judeus], um livro brilhante de 2014, os nazistas viam a destruição dos judeus precisamente dessa maneira, como essencial para a aniquilação da civilização judaico-cristã a fim de criar uma civilização nazista em seu lugar. A singularidade do Holocausto, portanto, baseou-se e reforçou a ideia de que os judeus são um povo único.

A vitimização descomprometida então se transformou em moralidade superior e se juntou a um elemento central do projeto sionista: confundir um povo, os judeus, com um Estado, Israel. Assim surgiu a visão comum em Israel e no Ocidente sobre o exército israelense como o exército mais moral do mundo. Consequentemente, tornou-se inimaginável que Israel pudesse perpetrar qualquer crime sob o direito internacional, muito menos genocídio. Essa impunidade para Israel no sistema legal internacional obscureceu a reprodução do nacionalismo excludente e do colonialismo de povoamento no Estado israelense desde suas origens na Nakba de 1948, através da Nakba em curso em décadas de violência israelense massiva contra palestinos, culminando agora no genocídio israelense em Gaza.

A ideia da singularidade do Holocausto também moldou o comprometimento da Alemanha com Israel, o que a ex-chanceler alemã Angela Merkel descreveu em um discurso no Knesset israelense (parlamento) em 2008 como a “razão de Estado” da Alemanha. O falecido político social-democrata alemão Rudolf Dressler — que serviu como embaixador da Alemanha em Israel de 2000 a 2005 — foi o primeiro a usar essa formulação em um ensaio em 2005, e o atual chanceler alemão Olaf Scholz a repetiu em seu discurso no parlamento alemão em 12 de outubro de 2023. Cinco dias depois, agora em Israel, Scholz acrescentou que “a história da Alemanha e a responsabilidade que ela teve pelo Holocausto exigem que mantenhamos a segurança e a existência de Israel”.

Mas um Holocausto único também funciona de forma mais profunda na política e na sociedade alemãs. Ele torna o nazismo singular também e, assim, desconecta o período nazista do resto da história alemã, tanto antes quanto depois do Holocausto.

Essa magia obscurece as conexões entre o nazismo e o genocídio colonial de colonos alemães contra os Herero e Nama no sudoeste da África no início do século XX. Da mesma forma, o nacionalismo alemão excludente antes e depois dos nazistas, incluindo a explosão contemporânea de racismo contra migrantes e refugiados, também desaparece. No extremo, essa manobra legitima o racismo contra os palestinos no exato momento em que Israel perpetra o genocídio contra eles. A ideia da singularidade do Holocausto reproduz, em vez de desafiar, o nacionalismo excludente e o colonialismo de povoamento que levaram ao Holocausto e que continua a estruturar tanto o Estado dos perpetradores quanto o Estado dos sobreviventes até hoje.

O evento do WGC, então, refletiu o que Bauer expressou um ano antes de falecer, em novembro de 2023, em um artigo no Haaretz. Usando terminologia colonial, Bauer apresentou o ataque de Israel a Gaza como proteção de “uma sociedade mais ou menos civilizada” contra a “barbárie do Hamas”, clamando por “uma luta implacável” entre “duas visões de mundo… [que] apelam a diferentes tipos do universo humano”. A parceria israelense-alemã de estudos do Holocausto no WGC exerce precisamente essa visão de mundo profundamente racista, uma visão que colocou os judeus em perigo no passado e agora tem como alvo os judeus novamente — em apoio às atrocidades israelenses em Gaza, ao mesmo tempo em que nega que elas constituam genocídio.

 

 

Fonte: Por Raz Segal, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil

 

Nenhum comentário: