A negação do
genocídio nos estudos do Holocausto
que está no cerne
do apoio incondicional que a Alemanha dá a Israel, inclusive nos últimos
dezesseis meses do ataque genocida de Israel a Gaza? Esta questão continua
relevante mesmo que o cessar-fogo atual ponha fim ao genocídio: abordá-lo lança
luz sobre o processo de décadas de colonialismo de ocupação israelense que
levou ao genocídio, uma Nakba em curso que continua
a se desenrolar independentemente do cessar-fogo. De fato, o ataque de Israel
aos palestinos não terminou, e na Cisjordânia ocupada ele realmente se intensificou desde que o
cessar-fogo em Gaza começou, com ataques mortais de colonos e do exército
israelense.
Uma parceria entre
acadêmicos israelenses e alemães estudiosos do Holocausto oferece algumas
respostas preocupantes para essa questão. Em um evento online organizado
pelo Holocaust Studies Program no Israeli Western Galilee
College (WGC) em 19 de dezembro de 2024, três palestrantes — Alvin
Rosenfeld, professor de inglês e estudos judaicos na Indiana University; Verena
Buser, historiadora alemã que leciona online no WGC; e Lars Rensmann, professor
de ciência política na University of Passau, na Alemanha — atacaram acadêmicos
que estudam o Holocausto e o genocídio que escreveram e falaram sobre as ações
genocidas de Israel em Gaza, incluindo eu.
Embora o evento
tenha sido organizado em homenagem a Yehuda Bauer, uma figura fundadora dos
estudos do Holocausto que faleceu em 18 de outubro de 2024, aos noventa e oito
anos, os palestrantes mal mencionaram Bauer ou seu trabalho. Nem avaliaram a
montanha de evidências do genocídio em curso em Gaza desde 7 de outubro de
2023. Em vez disso, optaram pela negação total do fato.
Buser, por exemplo,
afirmou que os acadêmicos que caracterizam as ações de Israel em Gaza como
genocídio ignoram “críticas internacionais extensas” sobre a validade dos
números de vítimas palestinas que, ela acrescentou, “não distinguem entre
combatentes e civis”. A verdade é que há um amplo consenso internacional
de que Israel matou mais de
46.000 palestinos. Os números reais, além disso, são provavelmente muito
maiores: um artigo recente
na Lancet argumenta que Israel matou mais de 64.000 palestinos até o
final de junho de 2024, sendo a maioria deles não combatentes, incluindo
milhares de crianças. De acordo com a Save the Children, “o território
palestino ocupado é classificado hoje como o lugar mais mortal do mundo para
crianças: cerca de 30% das 11.300 crianças identificadas mortas em Gaza [entre
outubro de 2023 e agosto de 2024] tinham menos de cinco anos”. Israel matou,
além disso, quase três mil crianças palestinas em Gaza que permaneceram não
identificadas até o final de agosto de 2024.
A negação do
genocídio de Buser se estendeu além da minimização típica do número de vítimas,
que também caracterizou a negação do Holocausto; ela também se referiu a
“relatórios que mostram que não há fome [em Gaza] ou que ela é causada pelos
desafios logísticos da guerra”. Ela não apontou nenhum relatório e não deu
nenhum exemplo específico de desafios logísticos. Isso não é surpreendente,
pois também há amplo consenso internacional sobre as políticas de promoção da fome bem
documentadas de Israel, que os líderes militares israelenses discutiram abertamente.
“Acusar-nos de
antissemitismo pela maneira como nos identificamos como judeus reproduz a visão
antissemita que nega identidades judaicas plurais para retratar todos os judeus
como um e iguais, ‘os judeus’.”
A maioria dos
acadêmicos na mira dos painelistas do evento WGC são judeus, incluindo eu,
atacados pela maneira como entendemos e expressamos nossas críticas às
atrocidades em massa israelenses através do prisma de nossas identidades
judaicas. Aparentemente, somos do tipo errado de judeus. Mas nos acusar de
antissemitismo pela maneira como nos identificamos como judeus reproduz a visão
antissemita que nega identidades judaicas plurais para lançar todos os judeus como
um e iguais, “os judeus”. Como tal, os ataques contra acadêmicos judeus são
parte da visão de mundo racista mais ampla dos palestrantes no evento WGC,
visando principalmente denegrir os palestinos.
O mais escandaloso
é que o historiador israelense Dan Michman, que atua como chefe do Instituto
Internacional de Pesquisa do Holocausto em Yad Vashem, evocou ninguém menos que
Adolf Hitler para dar peso aos ataques dos palestrantes:
Ninguém vê problema
com o termo “palestino”… Mas se você voltar um século, para Mein Kampf,
por exemplo… Hitler diz em um certo ponto que os sionistas querem estabelecer
um Estado palestino para ter uma base para suas atividades criminosas. Agora,
um Estado palestino de um século atrás era um Estado judeu. E o fato é que durante
o período do Mandato [Britânico] na Palestina, os habitantes judeus eram
chamados de judeus palestinos, os árabes eram árabes palestinos… Em 1948,
Israel foi estabelecido, e os judeus palestinos se tornaram israelenses, então
o termo [palestino] foi deixado em aberto, e somente à partir da década de 1950
[é] que começamos a ouvir sobre palestinos.
Parece que Michman
pretendia ecoar Rensmann, que afirmou em sua palestra no início do evento que
“os nazistas eram abertamente, agressivamente, desde suas próprias raízes,
desde Hitler em 1920… abertamente antissionistas e atacaram o potencial Estado
sionista”. A lógica em ação aqui é que se Hitler era um antissionista, o
antissionismo só pode ser antissemitismo — uma afirmação que os palestrantes
fizeram repetidamente. Ao fazer isso, eles ignoram a rica história dos judeus
antissionistas e das organizações e partidos políticos judeus
antissionistas, bem como dos muitos judeus antissionistas e organizações judaicas ao redor do
mundo hoje. Eles apresentam, em vez disso, uma situação bizarra em que um
professor alemão afirma determinar para os judeus a legitimidade ou
ilegitimidade de suas identidades judaicas, reforçado por um estudioso
israelense do Holocausto que acaba reproduzindo a lógica do racismo de Hitler.
Michman e Rensmann,
além disso, direcionam suas críticas não aos neonazistas e grupos relacionados
que estão novamente em
ascensão na Alemanha e
em outros lugares, mas aos judeus antissionistas. Michman e Rensmann se
lançaram nesse argumento paradoxal por um motivo. Eles não podem tolerar judeus
antissionistas, incluindo estudiosos judeus antissionistas do Holocausto e do
genocídio que ousam argumentar que os ataques de Israel a Gaza desde outubro de
2023 se enquadram no crime de genocídio segundo o direito internacional.
No entanto, esses
estudiosos judeus não estão sozinhos. William Schabas, um dos mais importantes
especialistas em direito internacional sobre genocídio, que vem de uma família
de sobreviventes do Holocausto, explicou em uma entrevista no final de novembro
de 2024 que em Gaza… a infraestrutura foi massivamente destruída, as pessoas
não conseguiram escapar — e então houve as declarações terríveis feitas pelo
[ex-ministro da defesa israelense] Yoav Gallant… As declarações vieram de
ministros, porta-vozes do governo e líderes militares, todos os quais têm
influência sobre as tropas. Elas são mais frequentes e mais sérias do que em
qualquer outro caso perante [a Corte Internacional de Justiça] que eu tenha
conhecimento… Junto com a fome e a falta de acesso à água e saneamento, a
destruição sistemática de casas, escolas e hospitais, surge uma imagem que
poderia ser interpretada como sendo o resultado de intenção genocida.
Para Rensmann, no
entanto, a “alegação de genocídio [contra Israel] é parte integrante da
história do antissemitismo do século XX e agora do século XXI”.
Buser se baseou em
Rensmann para afastar os acadêmicos dos estudos sobre o Holocausto e o
genocídio, principalmente judeus, cujo trabalho se baseia no vasto e crescente
corpo de fontes sobre o genocídio de Israel em Gaza. Isso inclui material da
acusação de genocídio que a África do Sul apresentou contra Israel na Corte Internacional
de Justiça;
os muitos mapas, depoimentos de palestinos, fotos aéreas e outras fontes nos
relatórios da Anistia
Internacional, da Human Rights Watch, da Forensic
Architecture e
da relatora especial da ONU, Francesca Albanese, sobre a
situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967; e
os milhares de vídeos orgulhosamente
upados nas mídias sociais por soldados e oficiais israelenses nos quais eles
documentaram sua própria violência e crimes.
Negando essa
realidade muito documentada, Buser postula que os acadêmicos dos estudos sobre
o Holocausto e o genocídio que ela pretende desacreditar usam a Declaração de Jerusalém sobre o
Antissemitismo (JDA),
que “absolve o antissionismo e as comparações nazistas de acusações de
antissemitismo”. A JDA, ela continuou, portanto, permite que esses acadêmicos
façam declarações antissionistas ou sugiram comparações históricas que ela vê
como antissemitas, incluindo, em suas palavras, que “o Estado de Israel é um
Estado branco, colonizador e de apartheid que está cometendo
genocídio em Gaza”.
A JDA de fato
determina que “criticar ou se opor ao sionismo como uma forma de nacionalismo
não é antissemita”, pois “em geral, as mesmas normas de debate que se aplicam a
outros Estados e a outros conflitos sobre autodeterminação nacional se aplicam
no caso de Israel e Palestina”. Em outras palavras, se é legítimo criticar
qualquer ideologia política ou política de um Estado — um direito
constitucional protegido nos Estados Unidos — também é legítimo no caso do
sionismo e de Israel.
Portanto, a JDA
conclui corretamente que “mesmo que controverso, não é antissemita, em si,
comparar Israel com outros casos históricos, incluindo colonialismo de
povoamento ou apartheid”. Buser, no entanto, como seus colegas painelistas
no evento do WGC, equipara antissionismo com antissemitismo, tornando
antissemitas, aos seus olhos, os acadêmicos que ela alveja. Seus slides listam
os onze mais proeminentes deles em sua opinião, oito deles judeus, incluindo
eu.
·
A
ideia da singularidade do Holocausto
Oque fazer com essa
parceria entre estudiosos israelenses e alemães do Holocausto que atacam os
judeus para negar o genocídio israelense, ao mesmo tempo em que reproduzem o
racismo antipalestino eliminatório que impulsiona esse genocídio? Podemos
começar a destrinchar essa questão lembrando que o evento do WGC teve como
objetivo homenagear Bauer, o estudioso do Holocausto mais associado à ideia de
que o Holocausto é singular na história humana. Essa ideia, que também orientou
o trabalho de Rosenfeld e Michman, desempenhou um papel fundamental na política
e nas sociedades de Israel e da Alemanha.
A ideia da
singularidade do Holocausto na história humana foi facilitada pela formulação
do conceito de genocídio na Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e
Punição do Crime de Genocídio em 1948, como um resultado do que o que hoje
chamamos de Holocausto (ninguém usava o termo na época) ter sido caracterizado
como mais terrível do que genocídio. Essa hierarquia, que mais tarde veio a
incorporar a essência do campo acadêmico estudos sobre Holocausto e genocídio em
seu título, serviu a um interesse crucial para os vencedores da Segunda Guerra
Mundial: ela separou a violência em massa nazista da longa história de
genocídios coloniais ocidentais.
“A ideia da
singularidade do Holocausto reproduz, ao invés de desafiar, o nacionalismo
excludente e o colonialismo de povoamento que levaram ao Holocausto.”
Mais imediatamente,
também desviou a atenção dos crimes de guerra em larga escala dos aliados
ocidentais durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo o lançamento de bombas
atômicas no Japão pelos Estados Unidos, que o estudioso do genocídio Leo Kuper
descreveu mais tarde em seu livro de 1981 Genocide: Its Political Use in
the Twentieth Century [Genocídio: Seu Uso Político no Século XXI] como
atos genocidas. O interesse ocidental sobre o novo crime de genocídio terminou
aí. No Ocidente, essa hierarquia tornou os judeus as vítimas mais puras, um
movimento possibilitado pelo lugar fundamental dos judeus no mundo
judaico-cristão. Como o falecido historiador do Holocausto Alon Confino
argumentou em A World Without
Jews [Um
Mundo Sem Judeus], um livro brilhante de 2014, os nazistas viam a destruição
dos judeus precisamente dessa maneira, como essencial para a aniquilação da
civilização judaico-cristã a fim de criar uma civilização nazista em seu lugar.
A singularidade do Holocausto, portanto, baseou-se e reforçou a ideia de que os
judeus são um povo único.
A vitimização
descomprometida então se transformou em moralidade superior e se juntou a um
elemento central do projeto sionista: confundir um povo, os judeus, com um
Estado, Israel. Assim surgiu a visão comum em Israel e no Ocidente sobre o
exército israelense como o exército mais moral do mundo. Consequentemente,
tornou-se inimaginável que Israel pudesse perpetrar qualquer crime sob o
direito internacional, muito menos genocídio. Essa impunidade para Israel no
sistema legal internacional obscureceu a reprodução do nacionalismo excludente
e do colonialismo de povoamento no Estado israelense desde suas origens na
Nakba de 1948, através da Nakba em curso em décadas de
violência israelense massiva contra palestinos, culminando agora no genocídio
israelense em Gaza.
A ideia da
singularidade do Holocausto também moldou o comprometimento da Alemanha com
Israel, o que a ex-chanceler alemã Angela Merkel descreveu em um
discurso no Knesset israelense (parlamento) em 2008 como a “razão de Estado” da
Alemanha. O falecido político social-democrata alemão Rudolf Dressler — que
serviu como embaixador da Alemanha em Israel de 2000 a 2005 — foi o primeiro a
usar essa formulação em um ensaio em 2005, e o atual chanceler alemão Olaf
Scholz a repetiu em seu discurso no parlamento alemão em 12 de outubro de 2023.
Cinco dias depois, agora em Israel, Scholz acrescentou que “a
história da Alemanha e a responsabilidade que ela teve pelo Holocausto exigem que
mantenhamos a segurança e a existência de Israel”.
Mas um Holocausto
único também funciona de forma mais profunda na política e na sociedade alemãs.
Ele torna o nazismo singular também e, assim, desconecta o período nazista do
resto da história alemã, tanto
antes quanto depois do Holocausto.
Essa magia
obscurece as conexões entre o nazismo e o genocídio colonial de colonos alemães
contra os Herero e Nama no sudoeste da África no início do século XX. Da mesma
forma, o nacionalismo alemão excludente antes e depois dos nazistas, incluindo
a explosão contemporânea de racismo contra
migrantes e refugiados, também desaparece. No extremo, essa manobra legitima o
racismo contra os palestinos no exato momento em que Israel perpetra o
genocídio contra eles. A ideia da singularidade do Holocausto reproduz, em vez
de desafiar, o nacionalismo excludente e o colonialismo de povoamento que
levaram ao Holocausto e que continua a estruturar tanto o Estado dos
perpetradores quanto o Estado dos sobreviventes até hoje.
O evento do WGC,
então, refletiu o que Bauer expressou um ano antes de falecer, em novembro de
2023, em um artigo no Haaretz.
Usando terminologia colonial, Bauer apresentou o ataque de Israel a Gaza como
proteção de “uma sociedade mais ou menos civilizada” contra a “barbárie do
Hamas”, clamando por “uma luta implacável” entre “duas visões de mundo… [que]
apelam a diferentes tipos do universo humano”. A parceria israelense-alemã de
estudos do Holocausto no WGC exerce precisamente essa visão de mundo
profundamente racista, uma visão que colocou os judeus em perigo no passado e
agora tem como alvo os judeus novamente — em apoio às atrocidades israelenses
em Gaza, ao mesmo tempo em que nega que elas constituam genocídio.
Fonte: Por Raz
Segal, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil
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