segunda-feira, 24 de junho de 2024

Luis Nassif: ‘O pacto de Moncloa brasileiro à vista’

Em artigo na Folha, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) dá o mote: “Empresários do Brasil, uni-vos”. Ele se refere ao movimento contra as mudanças no PIS-Cofins, que obrigou o governo a recuar. Defende o combate às falsificações e aos golpes aplicados por algumas empresas no modelo PIS-Cofins. Mas mostra o caminho das pedras:

“A geração e a distribuição de riquezas na escala pretendida para mudar o Brasil não virão de medidas pontuais ou emergenciais, mas de um trabalho duro e consistente de melhora do ambiente de negócios, que permitirá desde a alta de investimentos até a melhor formação da força de trabalho. O maior aliado de qualquer governo para isso é o setor produtivo”.

Não se tenha dúvida, o caminho para o renascimento do país passa por algo similar ao que ocorreu no Pacto de Moncloa:

Foi assinado pelo governo de Adolfo Suárez, partidos políticos com representação parlamentar (incluindo os principais partidos de esquerda e direita), sindicatos e organizações empresariais.

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Na época, procurou-se o controle da inflação, a reforma fiscal para aumentar as receitas do Estado e, principalmente, redistribuir a carga fiscal. Priorizou-se também o mercado de trabalho com políticas para reduzir o desemprego e houve a promoção de investimento público em infraestrutura e serviços sociais.

Houve propostas claras de consolidação da democracia, promovendo diálogo e a cooperação com diferentes forças políticas e sociais, garantia de direitos e liberdades fundamentais e promoção da negociação coletiva como forma de melhorar as condições de trabalho.

Hoje em dia, os super-ricos  ganham dinheiro sem pensar em projeto de Nação, porque a polarização sufocou o sentido de Nação, dividindo o país em dois. Há alguns fóruns de consulta – como o Conselhão -, mas sem que discussões e sugestões sejam encampadas em um projeto de trabalho de governo.

O mundo, hoje, é diferente – mas não tanto – da Espanha dos anos 70 e 80. Aliás, nos anos 80 fui convidado para um seminário do Banco Santander em uma das universidades nacionais. Lá, foi possível conferir como a ideologia vazia da financeirização penetrou em todos os poros da mídia. Me engalfinhei em uma discussão com um jornalista financeiro do El Pais, que “acusava” as empresas espanholas de colocar em risco o dinheiro das velhinhas em países selvagens – no caso, o Brasil.

Fiz-lhe ver que o Brasil era um país com muito mais potencial que a Espanha, tinha grandes empresas muito melhor administradas do que as espanholas – era só conferir os problemas iniciais da Telefonica -, um potencial agrícola imenso. A única vantagem da Espanha era a audácia das suas empresas de ir ao Brasil adquirir grandes empresas públicas nacionais, graças ao viralatismo imperante no meu país. A compra da Telesp salvou a Telefonica de ser engolida pela Deutsche Telekom, da Alemanha. E a compra do Banespa se tornou a maior fonte de receita do Santander.

O Pacto de Moncloa brasileiro tem que ser feito com o setor produtivo, apesar da ausência de grandes lideranças, como havia nos anos 90. 

É necessário quebrar o poder de cartel da Faria Lima. O Tribunal de Contas da União poderá se consagrar se quebrar a cartelização do mercado de taxas, responsável por movimentos destinados a manter os juros em níveis elevados. Os jovens aventureiros financistas têm que se dar conta que essa forma de atuação consiste em crime devidamente previsto pela legislação.

Há que se seguir o conselho de Roberto Troster – ex-economista chefe da Febraban – que, em artigo na Folha, propôs penalizações para o capital de curto prazo, o capital gafanhoto que entra para morder e sair correndo, seja através de tributação ou de tempo de permanência obrigatório.

E tem que se trazer a parte séria do mercado financeiro – os grandes bancos comerciais, o capital internacional produtivo -, que só será atraída pela elaboração de um plano econômico consistente, através de Grupos de Trabalho, para dar consistência e rapidez aos projetos.

Hoje em dia há uma ignorância generalizada na mídia, de apoio aos aventureiros de mercado. Um colunista da Folha chegou ao disparate de comparar as visitas de Roberto Campos Neto ao mercado – passando informações, mudando o rumo das expectativas – com uma visita de Gabriel Galípolo ao MST, em evento de homenagem ao jurista Celso Bandeira de Mello.

Ao atacar Roberto Campos Neto, Lula foi criticado pela banda mercadista da mídia. Mas conseguiu um feito político expressivo: deixou marcado a ferro a divisão que há no país entre o rentismo desenfreado, uma diretoria do Banco Central capturada pelo mercado, e a relevância de se investir na produção.

¨      Lula vai à guerra

Os seguintes eventos têm relação entre si:

  1. A decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira, colocando para votar, em tempo recorde, o PL do estuprador.
  2. Os movimentos especulativos com dólar e juros longos, que se acentuaram na segunda-feira.
  3. O senado colocando para discutir a independência financeira do Banco Central, com apoio de Roberto Campos Neto.

Todos esses fatos, mais o carnaval ocorrido no Senado – sob o olhar complacente do presidente Rodrigo Pacheco – tiveram objetivos claros: provocar um clima de desorganização política, visando influenciar a decisão do Copom (Comitê de Política Monetária) nesta quarta-feira.

Não é pouca coisa que está em jogo. A intenção do mercado – e do grupo bolsonarista de Campos Neto – é interromper a queda da Selic, com base em argumentos vagos: uma expectativa de inflação que não se confirma com os dados reais; a possibilidade dos Estados Unidos não reduzir mais os juros e por aí vai.

A reação de Lula se deu em duas frentes. No exterior, acabou com as especulações sobre a desvinculação do orçamento dos gastos com saúde e educação. Ontem, em entrevista na CBN, bateu pesado em Roberto Campos Neto e no tal de mercado.

Antes disso, andava tão sem iniciativa, tão sem vontade política que, por aqui mesmo, sugeri que começasse a pensar no sucessor. Levou dois dias para desenvolver o argumento sobre o tema de maior impacto do momento: o PL dos estupradores. Qualquer pessoa que minimamente acompanha o tema do aborto sabe que a defesa do aborto – nas situações definidas pela Constituição – não pode ser confudida com o estímulo ao aborto, mas tratar a questão sob o ângulo da saúde pública.

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Em algum momento deu um click em Lula que recuperou parte da combatividade perdida. Na entrevista à CBN, Lula enfatizou que será candidato em 2026, para impedir que os trogloditas voltem a governar o país.

Caiu a ficha de que não impor resistência seria o caminho mais rápido para o cadafalso político. Agora, Lula precisa se armar para o segundo tempo do jogo, que consiste na apresentação de um plano de governo robusto, factível, e que que aponte o futuro de forma clara.

Na entrevista à CBN, Lula deixou claro os caminhos do futuro, na transição energética.

Precisa, agora, avançar em uma área chave – a gestão dos projetos, montando grupos de trabalho intersetoriais para administrar cada um deles, todos se reportando diretamente a ele, Lula.

Se completar esse ciclo, a economia ganhará impulso e Lula terá trunfos maiores para negociar com o Congresso e o tal de mercado

 

¨      Labirinto econômico, por Leda Maria Paulani

fora de combate (Síndrome de Ménière). Nas últimas semanas, vivi em transe e num mundo desequilibrado.

“Acordando” agora, porém, estou achando que o labirinto deficiente prejudicou o meu juízo. Deixo aqui então uma pergunta: aconteceu, neste meio tempo, alguma hecatombe da qual não pude tomar conhecimento? Uma nova guerra, é isto, uma nova guerra que fez disparar ainda mais o preço da energia e dos alimentos; ou talvez um grande desastre climático, maior do que aquele que tragou nossos irmãos gaúchos; não, uma nova pandemia, isto, acho que é uma nova pandemia, e infinitamente mais devastadora, causando arrepios, sobretudo no “mercado”, que vai ter que aturar outra vez um Estado sem amarras pra gastar; ou será que a Nyse, a Nasdaq, a bolsa de Shangai e a Nikkey deram um capote espetacular e foram parar no abismo todas juntas; ou não foi nada disso e o que aconteceu foi um disparo de tal ordem da inflação americana que os Estados Unidos estão se sentindo agora como o Brasil dos anos 1980?

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Seja o que for, deve ter sido algo apocalíptico, sem o que não se consegue explicar a súbita mudança de expectativas, de cenário, de panorama, de ambiente da economia brasileira de meados de abril para esta do final de junho.

Senão vejamos. Há cerca de dois meses, as expectativas de inflação estavam em queda e perfeitamente dentro da meta, as expectativas sobre o comportamento do PIB iam se elevando, em uníssono em relação ao que se esperava para o ano, a arrecadação de impostos ia surpreendendo positivamente de modo constante, e o desemprego continuava a se reduzir. As contas externas iam desenhando um cenário não tão alvissareiro quanto o do ano anterior, mas isso o mercado já tinha precificado e, de qualquer forma, elas também não surpreendiam negativamente. O câmbio rondava em torno de R$ 5,00, ora pouco abaixo, ora pouco acima, e o Ibovespa B3 seguia com tendência altista, quase alcançando os 130 mil pontos. A pesquisa Focus previa a Selic ao final do ano em 9%, sinalizando continuidade no movimento de queda. Como uma espécie de corolário, no dia 1º de maio, a famosa agência Moodys de classificação de risco, apesar de não mexer no rating do Brasil, alterou sua perspectiva de “estável” para “positiva”.

No domingo, 16 de junho, a Folha de S. Paulo trazia em (má escrita) manchete principal: “Brasil tem um dos piores desempenhos na Bolsa e da moeda”.  Na matéria a informação de que, dentre as maiores economias do mundo, a Bolsa brasileira teria perdido em média 10% desde o início do ano (cerca de 7%, diga-se, de meados de abril pra cá), enquanto a moeda brasileira, batendo em R$ 5,40, só não estava no primeiro lugar no pódio da desvalorização porque o iene japonês usurpou o lugar. Na reunião de 19 de junho agora, o Copom decidiu, por unanimidade, manter a Selic em 10,5%.

Qual a razão de tamanha reviravolta? Alguém logo dirá que, externamente, o FederalReserve americano adiou mais uma vez o momento de reduzir suas taxas de juros. Mas ele já havia feito isso pelo menos duas vezes só neste ano, sem provocar todo este tumulto. Internamente, lembrarão alguns, o governo de Lula alterou a meta de resultado primário de 2025 de mais 0,5% para zero. Mas isso também já estava precificado pelo mercado. Não foram dois nem três, mas vários os executivos de instituições financeiras afirmando que as metas de resultado primário seriam de difícil execução e que eles já trabalhavam com números piores. Ademais, essa mudança aconteceu em abril e não alterou, por exemplo, a disposição da Moodys de melhorar, em seu ranking, a perspectiva atribuída à economia brasileira. Então por quê? A resposta não é técnica.

Quando se trata de analisar e diagnosticar o que acontece com as expectativas e os humores do mercado é preciso levar em conta também fatores de outra ordem. Teoricamente, a decisão do Banco Central quanto ao nível a ser fixado pela taxa de juros se dá por meio da chamada “função de referência”, que reza que a principal variável a influenciar as expectativas de inflação é a credibilidade da política monetária, que, por sua vez, depende visceralmente da própria taxa de juros. Traduzindo, o que determina o comportamento da autoridade monetária no que concerne à fixação da taxa básica é aquilo que ela ouve do mercado, mas o que ela ouve do mercado depende totalmente do que ela mesma fala.

Tal casamento perfeito não só torna “de equilíbrio”, mesmo que dê as costas às variáveis objetivas, qualquer nível da taxa, do mais reduzido ao mais elevado, como pode virar um conluio contra o país. Quando a política do Banco Central se reduz estrita e restritivamente a alcançar determinados resultados em relação ao índice geral de preços, abandonando suas outras tarefas (conforme seu diploma legal, ele também precisa zelar pelo crescimento e pelo emprego, apenas pra citar mais uma de suas atribuições) e ouvindo, para montar sua “função de referência”, tão só o mercado  — mais estreitamente ainda, apenas o mercado financeiro (não é assim, por exemplo, nos EUA, o modelo inelutável dos nossos ortodoxos), a fixação da taxa básica vira uma brincadeira de compadres, cheia de profecias que se autorrealizam.

Eis, portanto, a primeira variável (não de ordem técnica) que cumpre considerar: do ponto de vista institucional criaram-se condições objetivas para uma espécie de “autismo” da política monetária, que evidentemente serve a interesses específicos, sobretudo da riqueza velha, transmutada em papéis — capital fictício, diria um velho barbudo, a qual busca insanamente capturar no futuro a valorização que deveria estar ajudando a promover no presente com aplicações produtivas. Mas há mais.

Desde a Lei Complementar n.º 179, que conferiu autonomia ao Banco Central, assinada com a digital criminosa de Bolsonaro em fevereiro de 2021, a situação tornou-se ainda mais complexa. A autonomia, em princípio uma espécie de salvaguarda contra os “interesses políticos”, sempre deletérios, na visão ultraliberal que motivou a proposição e aprovação da lei, à sacrossanta tarefa de preservar o comportamento dos preços, a autonomia pode virar, como agora o presenciamos, uma arma política letal. A lembrar certo juizeco de província que topa de antemão a pasta da Justiça, prendendo o mais forte candidato à eleição, um presidente de Banco Central que não tem pudor em aceitar um cargo de ministro da Fazenda num possível governo de um candidato de oposição pode ser tudo, menos autônomo. Indigno do cargo que ocupa, Campos Neto usa e abusa de seu poder pra direcionar a política monetária contra o governo, democraticamente sagrado nas urnas, que comanda o Executivo.

E voltamos com isso à reviravolta — infundada do ponto de vista técnico. Em 17 de abril, em viagem aos EUA para uma reunião do FMI, Campos Neto anunciou que “há mais incerteza agora do que no último encontro” (???) e que a falta de previsibilidade atrapalharia o plano assumido pelo Copom em março, de dar continuidade ao movimento de queda da Selic. Como bem observou o jornalista Luis Nassif, a casca de banana atirada pelo presidente do Banco Central deu resultados imediatos: no dia seguinte à sua fala, as expectativas com relação a um corte de 0,5% na Selic caíram de 79% para 28%. Menos de dez dias depois Campos Neto ataca novamente: a inflação, diz ele, em evento em São Paulo, “mantém trajetória de queda, mas as expectativas estão elevadas” (reparem bem, ele admite que a inflação está em queda…). E com a deixa, na reunião seguinte do Copom, o corte foi de 0,25% e não de 0,5%, em decisão dividida.

Daí por diante as expectativas favoráveis ao comportamento da economia começaram a descer ladeira abaixo. Forçar a queda de apenas 0,25%, em vez do esperado 0,5%, na reunião de 8 de maio, levando à divisão do Copom (os indicados por Lula votaram por redução de 0,5%, aqueles indicados por Bolsonaro votaram por uma queda de 0,25%), ajudou a acelerar a ofensiva. O nome de Gabriel Galípolo, atual diretor de política monetária indicado pelo governo de Lula e apontado como provável sucessor de Campos Neto na presidência da entidade, começa a ser duramente questionado. Na última reunião do dia 19 de junho, realizada a profecia de Campos Neto, um Copom completamente refém de um mercado voraz e corrosivo, instigado pelo próprio presidente da autoridade monetária do país, procura estancar a sangria das expectativas que o próprio BC alavanca e vota em uníssono pela manutenção da taxa. Quem haveria de votar contra? De uma Selic ao final do ano em torno de 9%, agora não se fala de outra coisa senão na manutenção dos 10,5% até o final de 2024. Missão cumprida.

E a economia brasileira? Ah, vai bem, obrigada. Produto e emprego permanecem surpreendendo, arrecadação também, contas externas ok, inflação em queda… E o que importa isso tudo? Nada. Mas com as expectativas contribuindo para inflar incertezas e reduzir o pouco investimento, o ambiente amargo vai contaminar também a economia real. Depois de três décadas servindo à riqueza velha, com o Executivo cada vez mais amarrado, fazendo das tripas coração pra preservar um grau de liberdade mínimo, com o Congresso mais reacionário da história a manobrar interesses os mais escusos, resta saber se haverá um fio de Ariadne pra resgatar o país desse labirinto, mais sinistro que o meu, por abrigar o Minotauro extremista que continua a devorar nossas esperanças.

 

Fonte: Jornal GGN

 

Jodi Dean: ‘Precisamos de camaradagem’

Por muito tempo, a retórica individualista do "autocuidado" eclipsou nosso senso de trabalho coletivo em busca de objetivos comuns. A camaradagem tem a ver com nossa responsabilidade uns pelos outros - e nos torna melhores e mais fortes do que jamais poderíamos ser sozinhos.

Constantemente nos dizem que nossos problemas podem ser resolvidos com imaginação, grandes idéias e criatividade. Parece que novas idéias criativas não apenas resolverão a crise climática, mas também eliminarão desigualdades extremas e até triunfarão sobre o ódio racial. Estranhamente, esse apelo para “pensar grande” e ser “imaginativo” une todo mundo, desde as grandes empresas de tecnologia a ativistas socialistas, passando por políticos ordinários e adeptos do “comunismo de luxo totalmente automatizado”.

Essa aparente unidade nos impede de ver quão graves são os conflitos subjacentes em torno do capitalismo, das fronteiras, migração e recursos. Divisões escapam à visão, ocultadas pela fantasia de que poderia haver alguma ideia grande o suficiente, criativa o suficiente e imaginativa o suficiente a ponto de resolver todos os nossos problemas – e instantaneamente, pelo visto.

Assim é a ilusão que dirige o apelo à imaginação. Mas, na realidade, enfrentamos conflitos fundamentais sobre o futuro de nossas sociedades e do mundo. A mudança social não é indolor. Precisamos aceitar a realidade do antagonismo, saber de que lado estamos e lutar para fortalecer esse lado. Não precisamos convencer todo mundo. O que precisamos é convencer pessoas suficientes a se engajarem na luta, e vencer.

Grandes ideias não são nada sem quadros militantes para lutar por elas. No entanto, grande parte da esquerda contemporânea não conseguiu desenvolver e sustentar uma base de lutadores fortes, comprometidos e organizados. A disciplina do trabalho coletivo em nome de um objetivo compartilhado foi substituída por uma retórica individualista de conforto e autocuidado.

Essa retórica e as práticas correspondentes respondem a um problema real – a escassez de organizações políticas que tenham sentido para seus membros e apoiem suas necessidades. Na ausência de tais organizações, alguns ativistas de esquerda tratam as mídias sociais como uma saída política. Mas, dado o modo de indignação ininterrupta nas redes, ficar online como forma de ser politicamente ativo na esquerda pode ser uma experiência profundamente masoquista.

Os que deveriam estar do nosso lado são os que mais nos atacam. A mesma coisa acontece quando se formam grupos em torno de questões momentâneas para planejar ações conjuntas. Acostumados aos ataques e abusos dos fanáticos de direita mobilizados pelo capitalismo, nos ofendemos fácil e somos lentos em confiar uns nos outros. Apelar para o autocuidado aborda o sintoma, mas não a causa de nossa incapacidade política. Pois ignora o que realmente está faltando – uma relação política construída com base na solidariedade.

A história das organizações socialistas e comunistas nos dá uma figura que encarna essa relação – o camarada. Como um modo de endereçar, pertencimento e destinatário de expectativas, o camarada designa a relação entre aqueles que estão do mesmo lado de uma luta política. Indo além da ideia de política como uma mera questão de convicção individual, o camarada aponta para as expectativas de solidariedade necessárias para construir uma capacidade política compartilhada. Por causa das expectativas de nossos camaradas, comparecemos às reuniões que de outra forma perderíamos, realizamos trabalhos políticos que poderíamos procrastinar e tentamos cumprir nossas responsabilidades uns com os outros. Experimentamos a alegria da luta comprometida, de aprender pela prática. Superamos aqueles medos que podem nos dominar se formos forçados a enfrentá-los sozinhos. Nossos camaradas nos tornam melhores, mais fortes, para jamais nos sentirmos sozinhos.

•           Ódio racial em julgamento

Tomemos um exemplo da história do Partido Comunista dos EUA: um júri interno realizado no Harlem em 1931. O partido levou August Yokinen, um trabalhador finlandês, a julgamento por preconceito racial, por defender a superioridade branca e avançar pontos de vista prejudiciais à classe trabalhadora. Cerca de 1500 trabalhadores, negros e brancos, participaram do julgamento do partido, realizado no Harlem Casino, um dos maiores auditórios da região. Clarence Hathaway, o editor branco do jornal Daily Worker, apresentou o caso de acusação. Richard B. Moore, um dos oradores negros mais respeitados do partido, liderou a defesa de Yokinen. Um júri de quatorze trabalhadores, sete negros e sete brancos, proferiu o veredicto.

Yokinen era um dos três membros brancos do partido que estavam trabalhando na bilheteria do baile de dança do Clube Finlandês dos Trabalhadores do Harlem. Vários trabalhadores negros chegaram para o baile e só foram admitidos com relutância. Tendo conseguido entrar, foram tratados com tanta hostilidade que logo foram embora. Nenhum dos membros brancos do partido os acolheu ou os defendeu.

Durante a investigação do incidente pelo partido, os camaradas de Yokinen admitiram seu erro. Mas Yokinen tentou justificar seu comportamento, explicando que ele achava que os trabalhadores negros iriam para a piscina e que ele não queria tomar banho com pessoas negras.

Quando chegou o momento do julgamento do partido, Yokinen já havia reconhecido sua culpa e prometido retificá-la com trabalho concreto em favor da luta pela libertação do povo negro. A questão que restava perante o júri era então se Yokinen deveria ser expulso do partido por seu racismo e “chauvinismo branco” ou ser colocado em um período de suspensão supervisionada.

Os argumentos de Hathaway de acusação enfatizaram que Yokinen não apenas falhou em agir de acordo com as expectativas igualitárias do Partido Comunista, mas que esse mesmo fracasso o colocou do lado de linchadores e proprietários. Até a menor expressão de superioridade racial branca mina a solidariedade de classe e fortalece a burguesia. Quando Yokinen falhou em manter o compromisso do partido com a igualdade racial, ele deu aos trabalhadores negros boas razões para não esperar nada além de traição – do partido e de qualquer trabalhador branco.

Hathaway lembrou ao júri que, como a luta pelos direitos iguais dos negros era indispensável à luta proletária, o Partido Comunista tinha que provar – com ações – que estava comprometido em eliminar todos os vestígios de chauvinismo branco. Expulsar Yokinen demonstraria esse compromisso. Mas Hathaway também ofereceu a Yokinen um caminho de volta ao partido. Se Yokinen lutasse ativamente contra a supremacia branca, vendendo o jornal negro Liberator e relatando seu julgamento no Clube dos Trabalhadores Finlandeses, ele então poderia solicitar readmissão ao partido.

A defesa de Moore procurou mudar o foco para o inimigo real, a classe capitalista. Argumentou que foram os proprietários e a burguesia os que espalharam o veneno do ódio racial – auxiliados por sindicatos e oportunistas no movimento socialista. O argumento de Moore não era que Yokinen não deveria ser responsabilizado. Era que ninguém era inocente. É o imperialismo capitalista, como estrutura, que espalha a ideologia corrupta da superioridade branca.

Moore voltou sua crítica ao Partido Comunista, perguntando se o próprio partido havia feito o trabalho educacional necessário para enfrentar o ódio racial. Tinha desenvolvido programas para o movimento dos trabalhadores para explicar a importância da luta contra o linchamento? Havia feito o esforço colossal necessário para erradicar o preconceito? Moore declarou que a resposta era “não”. O partido era cúmplice do crime de Yokinen. Moore concluiu assim que a autocrítica, não a expulsão, era o melhor caminho. A autocrítica permitiria ao partido provar seu compromisso por meio de suas ações. Um benefício adicional, argumentou Moore, era que a autocrítica salvaria Yokinen para a luta, um fator crucial quando cada trabalhador precisa estar envolvido no esforço de derrubar o sistema.

Em seu resumo, Moore lembrou ao júri a seriedade de uma expulsão do Partido Comunista. “Prefiro que minha cabeça seja arrancada do corpo por capitalistas linchadores do que ser expulso da Internacional Comunista”, disse. Ele quis dizer que ser separado do partido, separado dos camaradas e privado de sua camaradagem, é um destino pior que a morte. É o tipo de morte social em que um trabalhador se torna um forasteiro de seu próprio movimento, tão ruim quanto os próprios capitalistas.

Moore concluiu que Yokinen deveria ser condenado, mas mais importante é condenar o capitalismo pela miséria, preconceito, terror e linchamento que gera. O partido precisava redimir e educar o camarada, para lhe dar uma chance de se provar a si mesmo. O partido também teria que se envolver em uma luta implacável contra o chauvinismo branco e tudo mais que ameaçasse a unidade de classe.

O júri considerou Yokinen culpado – nada surpreendente, uma vez que ele já havia admitido sua culpa. E concordaram em expulsá-lo, mas ficaram divididos sobre se a expulsão deveria durar seis ou doze meses. Eles acataram as sugestões da promotoria sobre as maneiras pelas quais Yokinen poderia corrigir seus erros, vendendo o Liberator e lutando contra o chauvinismo branco. Ao final, apesar de Yokinen ter sido expulso, ele permaneceu um camarada. O julgamento resultou em uma decisão que afirmou seu papel na luta de classes, um papel focado na construção da unidade entre trabalhadores brancos e negros. O partido não o limou e forneceu-lhe um caminho de volta.

No dia seguinte ao julgamento, Yokinen foi preso e retido para deportação. A International Labor Defense (IDL – Defensoria Internacional do Trabalho), ligada à Internacional Comunista, o defendeu durante suas audiências de deportação.

•           Do mesmo lado

O julgamento de Yokinen ensina uma série de lições que os socialistas contemporâneos fariam bem em reaprender: lições sobre camaradagem. O primeiro conjunto de lições é sobre estar do mesmo lado. A acusação e a defesa compartilhavam os mesmos princípios e objetivos: a unidade da classe trabalhadora, a abolição da supremacia branca, a necessidade de igualdade racial na vida cotidiana, a revolução proletária. Princípios comuns permitiram discernir e nomear o inimigo comum – capitalistas e proprietários defendendo a supremacia branca e a lei do linchamento. Qualquer um que aceitasse esses princípios era um camarada, mesmo quando errava. O fato de serem camaradas significava que eram valiosos para a luta. Eles só precisavam ser ensinados, treinados. A revolução precisa de tantos recrutas quanto possível.

O segundo conjunto de lições segue o valor da autocrítica coletiva. Se um de nossos camaradas errar, nós compartilhamos a responsabilidade por isso. O que poderíamos ter feito para evitar o erro? Que tipo de instrução ou orientação poderíamos ter fornecido? Estamos todos imersos na ideologia racista do capitalismo o tempo todo. Precisamos nos apoiar na luta contra isso. Devemos condenar ações que reforcem a supremacia branca e condenar ainda mais fortemente o sistema que a reproduz.

Finalmente, o terceiro conjunto de lições envolve o caminho de volta. Em contraste com o identitarismo tóxico, que Mark Fisher apelidou de “castelo dos vampiros”, e a cultura perniciosa de “cancelamento” que circula entre os esquerdistas das mídias sociais, no caso Yokinen, o Partido Comunista buscava unidade. Buscou práticas que construíssem essa unidade, e não práticas que a desfizessem. Mesmo alguém expulso do partido não estava completamente condenado. De fato, quando teve que enfrentar o poder agressivo do Estado imperialista, o partido assumiu a frente em sua defesa. Yokinen ainda estava do mesmo lado que os comunistas. Ainda era um camarada. Yokinen aceitou a decisão do partido sobre o trabalho que precisava realizar para combater a supremacia branca e construir a unidade da classe trabalhadora. O que estava em jogo não era o moralismo – a necessidade de um “pedido de desculpas” – ou um julgamento individualista sobre sua atitude. O que importava era fazer o trabalho que a luta revolucionária exige.

•           Disciplina

Para muitos na esquerda contemporânea, disciplina é uma palavra ruim. Não vêem apenas a disciplina como uma ameaça à liberdade individual, mas são céticos em relação à participação política intensa de qualquer tipo. Enxergando a disciplina camarada apenas como restrição e não como uma decisão de desenvolver capacidade coletiva, substituem a concretude da luta política pela fantasia de que a política possa ser individual. Essa substituição ignora o fato de que a camaradagem é uma escolha voluntária – tanto para quem se une, como para o partido. Também ignora a qualidade libertadora da disciplina, pois quando temos camaradas somos liberados da obrigação de ser, conhecer e fazer tudo por conta própria; em vez disso, existe um coletivo maior com uma linha, programa e conjunto de tarefas e objetivos que nos reúne. Somos liberados do cinismo que posa de maturidade pelo otimismo prático que o trabalho fiel gera. A disciplina fornece o suporte que nos liberta para cometer erros, aprender e crescer. Quando erramos – e cada um de nós certamente errará – nossos camaradas estarão lá para nos levantar, sacudir a poeira e nos colocar no caminho acertado. Não estamos abandonados para caminhar a sós.

Os esquerdistas não-filiados e não-organizados permanecem frequentemente fascinados pela ilusão de que as, assim chamadas, “pessoas comuns” irão criar, espontaneamente, novas formas de vida que conduzirão a um futuro glorioso. Essa ilusão falha em reconhecer as privações e carências debilitantes que quarenta anos de neoliberalismo infligiram à massa da população. Se fosse verdade que austeridade, dívida, colapso de infraestruturas institucionais e fuga de capitais poderiam permitir o surgimento espontâneo de formas igualitárias de vida, não veríamos as enormes desigualdades econômicas, a intensificação da violência racializada, o declínio da expectativa de vida e a morte lenta, a falta de água não potável, a militarização do policiamento e da vigilância, bairros urbanos e suburbanos desolados que hoje formam o cenário comum.

Exaustão de recursos naturais também inclui a exaustão de recursos humanos. Muitas vezes as pessoas querem fazer algo, mas não sabem o que fazer ou como fazer. Elas podem estar isoladas em locais de trabalho não-sindicalizados, sobrecarregados por vários empregos de horário flexível, cuidando de amigos e familiares. A organização disciplinada – a disciplina de camaradas comprometidos com a luta comum por um futuro igualitário emancipatório – pode ajudar aqui. Às vezes, queremos e precisamos de alguém para nos orientar o que fazer, porque estamos cansados demais para descobrir sozinhos. Às vezes, quando nos é dada uma tarefa como camarada, sentimos que nossos pequenos esforços têm maior significado e propósito, talvez até um significado histórico mundial na luta milenar do povo contra a opressão. Às vezes, apenas o fato de saber que temos camaradas que compartilham nossos compromissos, nossas alegrias e nossos esforços para aprender com as derrotas torna o trabalho político possível onde não era antes.

 

Fonte Blog da Boitempo

 

Como Conselho Federal de Medicina se tornou pivô dos embates sobre aborto legal no Brasil

A nova onda de debates sobre o direito ao aborto legal no Brasil tem um poderoso protagonista, o Conselho Federal de Medicina (CFM), uma entidade com orçamento milionário e poder para cassar registros profissionais que sofre acusações de ter alinhamento político.

Foi uma resolução do CFM restringindo o aborto após 22 semanas, emitida em março e logo depois neutralizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que catapultou a mobilização pela criação de um projeto de lei no Congresso sobre o tema.

O texto em tramitação na Câmara prevê penas de até 20 anos de prisão para quem fizer um aborto após 22 semanas de gestação, até mesmo em casos de estupro, situação em que a interrupção da gravidez é permitida em lei no país.

O tema voltou a jogar luz sobre a atuação do CFM, provocando divisão na classe médica e acusações de alinhamento a grupos políticos de direita, como ocorreu durante a pandemia do coronavírus.

Naquela ocasião, o CFM defendeu o direito de médicos prescreverem medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, ecoando bandeira do então presidente Jair Bolsonaro.

Dessa vez, o conselho recebeu fortes críticas após aprovar, em março deste ano, uma resolução que impedia o uso da assistolia fetal em abortos em idade gestacional avançada.

A técnica, recomendada pela Organização Mundial de Saúde para esses casos de interrupção da gravidez, consiste em usar medicamentos para interromper os batimentos do feto, garantido que ele não seja retirado do útero com sinais vitais.

Fim do WhatsApp

Críticos do procedimento dizem que ele consiste num "assassinato de bebês" e que deveria ser protegida a vida do feto. Já seus defensores dizem que a técnica é um procedimento ético para realizar abortos após 22 semanas de gestação e que é uma violência obrigar a gestante a manter uma gravidez decorrente de estupro.

A resolução sobre aborto, porém, foi rapidamente suspensa por uma decisão liminar do ministro STF Alexandre de Moraes, em uma ação movida pelo PSOL. Ele entendeu que o CFM extrapolou sua competência ao fixar limites para o aborto legal, que não estão previstos na lei brasileira.

Mas quais são as competências legais do Conselho Federal de Medicina?

O CFM não é uma associação de profissionais privada. A entidade é uma autarquia criada por lei em 1957 para regular e fiscalizar a atuação da categoria no país.

Entenda abaixo as prerrogativas do conselho, as críticas dentro e fora da classe médica e a reação no Congresso provocada pela resolução sobre aborto suspensa pelo Supremo.

•           O que diz o CFM e seus críticos sobre a resolução

A resolução do CFM foi alvo de críticas de associações médicas e da área da saúde, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), e a Sociedade Brasileira de Bioética.

Já a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO, na sigla em inglês) publicou uma manifestação na segunda-feira (17/6) em que "expressa profunda preocupação com a recente resolução emitida pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil que proíbe a indução de assistolia para abortos induzidos legalmente".

"Essa proibição no Brasil é antiética e contradiz as evidências médicas", continuou a federação internacional, da qual faz parte a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Em manifestação por escrito enviada à BBC News Brasil, o presidente do CFM, o obstetra José Hiran, negou que o Conselho esteja alinhado ao campo político da direita.

"Trata-se de um órgão de Estado, que, como tal, não serve a Governos. Em 68 anos de funcionamento, o CFM tem sido instrumento para oferecer à população brasileira acesso a serviços e atendimento de qualidade. O compromisso do CFM é com a medicina, a saúde e a vida, trabalhando sempre atento aos limites e possibilidades colocados pela legislação, a ciência e a ética", afirmou.

Questionado sobre o posicionamento do CFM sobre o projeto de lei que criminaliza o aborto acima de 22 semanas com penas de até 20 anos de prisão, Hiran respondeu que "o Conselho Federal de Medicina não contribui com a elaboração desse PL" e que "o tema ainda está sendo analisado internamente".

"De qualquer modo, entendemos que este é um assunto que deve ser discutido no âmbito do Congresso Nacional, que deve ouvir todos os segmentos envolvidos, promovendo um amplo debate com a sociedade sobre o tema", disse ainda.

Na segunda-feira, Hiran participou de uma sessão temática no plenário do Senado sobre o tema. Ele disse, segundo a Folha de S. Paulo, que na interrupção de gravidez após 22 semanas, mesmo em caso de estupro, a “autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós de proteger a vida de qualquer um, mesmo um ser humano formado com 22 semanas".

•           Projeto de lei com 'reação' do Congresso à derrubada da norma do CFM

O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) afirma que a derrubada da resolução pelo STF gerou uma "reação" do Congresso.

Foi assim que ele e mais 32 deputados apresentaram um projeto de lei (PL 1904/2024) que tenta equiparar abortos realizados no Brasil após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, até mesmo em casos de estupro. Pela proposta, a gestante e o médico que realizar o procedimento poderá ter que cumprir pena de até 20 anos de prisão.

"Na verdade, o projeto é uma reação à ação do PSOL junto ao Supremo Tribunal Federal. Assistolia é um procedimento médico que é colocar uma injeção no coração do bebê e ele tem um infarto fulminante. Nós estamos tratando aqui não de embriões no primeiro, no segundo mês, nós estamos tratando de vidas com 5 meses e 2 semanas. São as 22 semanas", disse, ao programa Fantástico, da TV Globo.

A proposta teve sua tramitação acelerada, inicialmente, com apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mas acabou sendo freada após a reação negativa de parte da sociedade.

O conselheiro Raphael Câmara Medeiros Parente, médico obstetra e autor da resolução contra o aborto aprovada no CFM, reconhece que a iniciativa estimulou a atuação do Congresso, mas afirma que o Conselho "não tem nada a ver com esse PL".

"O ministro Alexandre de Moraes [ao derrubar a resolução do CFM] não falou que era função do Congresso [legislar sobre o direito ao aborto], que não era nossa? O que o Congresso fez? Pegou para eles e fizeram. Só que o PL é bem além do que a nossa resolução propõe", disse à BBC News Brasil.

Câmara, que foi secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde no governo Jair Bolsonaro, afirma que não concorda com o que chamou de "pena surreal" de até 20 anos estabelecida no PL e que teme que a proposta possa dar margem para criminalizar mesmo médicos que realizem abortos em situações em que há risco de morte para a gestante.

Por outro lado, ele defende que o Congresso aprove outra proposta que proíba a interrupção da gestação acima de 22 semanas em casos de estupro, transformando em lei o que previa a resolução do CFM suspensa pelo STF.

Além disso, o CFM tenta reverter a decisão de Alexandre de Moraes, mas ainda não há data para o caso ser julgado pelo plenário da corte.

Para Câmara, não se pode falar em aborto após 22 semanas porque a partir dessa idade gestacional o feto já tem viabilidade fetal, ou seja, já pode sobreviver fora do útero.

Apesar disso, segundo o portal do Colégio de Obstetras e Ginecologistas, associação dos Estados Unidos, a maioria dos fetos que nascem no intervalo de 23 a 25 semanas de gestação e sobrevivem "enfrenta deficiências graves, muitas vezes permanentes".

Câmara, porém, defende que, caso a gestante vítima de estupro não queira manter a gravidez e o feto tenha mais de 22 semanas, seja feito um parto antecipado.

"O foco da resolução é proibir matar bebê acima de 22 semanas com assistolia fetal", defendeu.

"O que seria feito [após as 22 semanas]? Você tira o bebê e ele vai ser cuidado. Se a mulher não quiser ficar com ele, vai para adoção. É simples", disse também.

Para o ginecologista Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco e um dos poucos médicos que hoje realizam abortos legais no país após as 22 semanas de gestação, seria uma “violência obrigar uma mulher estuprada a dar à luz um filho com sérias sequelas.”

Ele nega que a assistolia fetal seja dolorosa para o feto, como simulou uma atriz em sessão sobre a assistolia fetal no Senado Federal, realizada na segunda-feira (17/6) com participação do CFM.

"Mentem quando dizem que a assistolia é dolorosa. Doloroso é um prematuro ir para a UTI, entubar, fazer dissecção de veia, fazer cirurgia. Isso é doloroso", afirmou à BBC News Brasil.

•           Quem faz aborto após 22 semanas?

Segundo Moraes, a maioria dos abortos são realizados antes de 22 semanas e, os que ultrapassam esse período, demoram a ser feitos pela dificuldade das mulheres em ter acesso ao aborto legal no país.

Outro fator que contribuí para a demora são as gestações de crianças e adolescentes vítimas de estupro, diz o médico. Nesses casos, a gestação pode demorar a ser descoberta, seja porque a menina abusada não entende que está grávida, seja porque ela tem medo ou vergonha de avisar a família.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2023, mais de 60% das vítimas de estupro têm até 13 anos. E, nesse grupo, 86% dos agressores são conhecidos, sendo que 64% são familiares – o que dificulta ainda mais a denúncia.

•           CFM diz que não se opõe ao 'aborto legal'

Em manifestação por escrito à reportagem, o presidente do Conselho Federal de Medicina disse que "é importante corrigir uma narrativa distorcida que coloca o CFM como opositor ao chamado aborto legal".

"Isso não é verdade. Nunca, a edição da Resolução CFM nº 2.378/2024 [que trata da assistolia fetal] teve como objetivo comprometer a oferta desse serviço em hospitais da rede pública. Trata-se de programa incorporado pelo Estado brasileiro e que deve ser disponibilizado à população, segundo critérios de acesso definidos em lei", disse ainda José Hiran.

Sua manifestação não aborda, porém, o fato de o Código Penal brasileiro, ao garantir o direito ao aborto no caso de estupro, não estabelecer o limite de 22 semanas, como fixa a resolução do CFM, ao proibir a assistolia fetal.

Hiran criticou, ainda, os poucos serviços de aborto legal disponíveis no país.

"É evidente que culpar o CFM e a Resolução pelos problemas do aborto legal no Brasil configura uma forma de lançar cortina de fumaça sobre um debate que tem como foco principal a proteção dos direitos da mulher e do nascituro", respondeu à reportagem.

"Se o governo fizesse sua parte, assegurando o funcionamento da rede do aborto legal, o martírio das vítimas de estupro poderia ser reduzido. No entanto, os problemas da gestão do SUS têm contribuído pela dupla penalização da mulher violada. Primeiro, a mulher é vítima do agressor, depois se torna refém da inoperância do Estado, por meios de seus representantes na gestão da rede de saúde", acrescentou.

•           CFM terá eleições em agosto

Como autarquia criada por lei, o Conselho Federal de Medicina deve regular e fiscalizar a atuação da categoria no país.

O órgão tem poder de aprovar resoluções e pode cassar registros de médicos que não sigam suas regras, impedindo sua atuação profissional.

A instituição é financiada, principalmente, por taxas obrigatórias pagas pelos mais de 600 mil médicos registrados e obteve R$ 276,6 milhões em receitas em 2023.

Um médico tem de pagar R$ 859,00 em 2024 ao CFM (valores reajustados a cada ano), enquanto empresas de serviços médicos têm de contribuir de acordo com o seu capital social – para empresas com capital social maior que 10 milhões de reais, a contribuição deste ano é de R$ 6.873.

O órgão, que tem autonomia administrativa e financeira, é fiscalizado pelo TCU (Tribunal de Contas da União).

A crítica que algumas associações médicas e da área da saúde levantam contra o CFM é que o conselho estaria atuando de forma politizada, ignorando a ciência, seja na postura adotada na pandemia, seja agora na questão do aborto.

"Lamentavelmente, nos últimos anos, a partir do governo passado, houve uma cooptação do conselho. Foram eleitas pessoas que deturparam completamente a função do CFM", crítica Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora da Faculdade de Medicina da Unicamp.

"Passamos pela vergonha de ter um conselho que defendia ivermectina para tratar covid", disse ainda à reportagem, em referência a remédios sem eficácia que foram usados na pandemia, com anuência do CFM.

A última eleição para a composição do CFM foi realizada em 2019. A nova gestão, que comandará o conselho pelos próximos cinco anos, será escolhida pelos médicos em agosto.

Cada Estado elege dois conselheiros federais, um efetivo e um suplente. Depois, esses conselheiros escolhem, entre si, os que ocuparão a direção da instituição.

Também crítico da atual gestão, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) lançou o manifesto "Muda CFM", apoiando chapas de oposição.

Entre os princípios do manifesto, estão "a defesa de uma medicina baseada na ciência" e " a independência e autonomia do CFM em relação a partidos políticos e a governos".

Além disso, a associação defende "a democratização das atividades do CFM, com viabilização de amplos debates com a categoria e com instituições científicas da saúde coletiva e da bioética em relação a temas polêmicos e sensíveis".

À BBC News Brasil, o oncologista e médico sanitarista Arruda Bastos, integrante da coordenação da ABMMD, acusou o CFM de adotar a resolução sobre assistolia fetal sem debate com outras instituições.

"Discutiram entre quatro paredes e foi feita essa resolução, contra, inclusive as associações que congregam especialidades médicas, de ginecologia e obstetrícia", ressaltou.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) chegou a publicar uma nota crítica a resolução do CFM, mas depois a retirou do ar.

Segundo o portal Metrópoles, a manifestação dizia que "a resolução não atende ao propósito alegado de ‘proteção à vida’. Ao contrário, amplia vulnerabilidades já existentes e expõe justamente as mulheres mais carentes e mais necessitadas do apoio e da assistência médica".

Procurada pela BBC News Brasil, a federação não explicou o motivo de ter tirado a nota do seu site. Solicitada a se manifestar para a reportagem, respondeu que "não é competência da Febrasgo manifestar-se sobre ou julgar o posicionamento de qualquer entidade médica".

O conselheiro Rafael Câmara minimizou as críticas de outras entidades ao CFM.

"Só existe uma instituição no Brasil que tem legitimidade para falar pelo 600 mil médicos do país: é o Conselho Federal de Medicina. Nós fomos eleitos para representar os médicos. Eu, por exemplo, represento os 80.000 médicos do Rio de Janeiro", disse.

Ele também respondeu às críticas sobre a atuação do CFM na pandemia. Segundo Câmara, o conselho sempre se colocou a favor da vacinação.

Ele também disse que a instituição não se posicionou a favor de medicamentos ineficazes contra a covid, mas defendeu a liberdade de atuação médica.

"O parecer 04 (de 2020) simplesmente dizia que o médico poderia fazer uso da autonomia médica para prescrever o que achasse correto", afirmou.

Segundo o próprio CFM, esse parecer, de abril de 2020, "estabelece critérios e condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico confirmado de covid-19".

O documento dizia que não havia comprovação sobre a eficácia das substâncias, mas que ela poderia ser prescrita, após o consentimento do paciente, com os devidos esclarecimentos sobre a falta de comprovação científica e eventuais efeitos colaterais.

Além disso, estabelecia que, "diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19".

Para Rosana Onocko, da Abrasco, o CFM fez uma defesa incorreta da autonomia médica, alinhado com o discurso do então presidente Bolsonaro.

"O bom médico é obrigado a proceder de acordo com as evidências científicas. Então, quando o CFM torna suprema a opinião do médico, quer dizer que a liberdade do médico está por cima das evidências científicas acumulada no planeta Terra? Isso não é possível", criticou.

 

Fonte: BBC News Brasil