Rudá Ricci: ‘Eleições municipais - a cilada
das pequenas cidades’
O esquema de Artur
Lira: articular prefeitos fisiológicos e deputados do baixo clero com a pauta
do grande capital. O risco: avanço da direita em 2024 e um Congresso piorado em
2026. A alternativa: projetos de transformação local, apoiados nas mulheres e
jovens
O primeiro ponto a
ressaltar sobre as eleições municipais brasileiras é que 65% delas são rurais
(remoto ou adjacente) ou estão distantes de grandes centros urbanos.
Ocorre que esses
municípios já foram pesquisados pela antropologia política. O estudo que mais
me impressiona é o de Moacir Palmeira. Nele, o autor revela que nessas
localidades a disputa eleitoral é polarizada entre quase sempre famílias
detentoras do poder econômico.
Há uma moral política
interessante nos municípios rurais ou remotos. Como parte da população gravita
ao redor do poder econômico concentrado, os polos – situação e oposição –
articulam praticamente todos os habitantes. E a prefeitura emprega os apoiadores
do vencedor.
O consenso nessas
localidades é de que quem vence merece empregar os apoiadores da última
eleição, de maneira que se o segundo bloco vencer na eleição seguinte, tem o
aval geral para demitir quem quiser para empregar os apoiadores. Lembremos que
em 700 municípios brasileiros, a prefeitura é o maior empregador local.
Uma outra decorrência
da polarização nesses municípios é ainda mais insólita: o apoiador do candidato
derrotado só pode mudar de lado na eleição seguinte. Fica, portanto, atado ao
bloco do derrotado por quatro anos, cumprindo uma “pena”.
Por que esses dados
sobre municípios rurais e remotos são importantes para as eleições municipais?
Porque elegem deputados federais. E, como sabemos, deputados federais atanazam
a vida de presidentes e mandam em boa parte do orçamento federal.
O poder dos deputados
federais começa com a revolta dos bagrinhos quando da eleição de Severino
Cavalcanti como presidente da Câmara dos Deputados. Ficou pouco tempo, mas
abriu espaço para os esquemas de Eduardo Cunha e Arthur Lira.
Até então, o baixo
clero – assim chamado desde a ditadura militar porque eram deputados que não
eram chamados para o “conselho de cardeais” convocado pelos militares para
alinhar pautas no Congresso Nacional – era disperso nas suas agendas locais.
Com Cunha, o baixo
clero se articulou. Cunha trouxe o apoio de federações empresariais para a
campanha e suporte da bancada que ele elegia. Nos bastidores, afirmava-se que
ele tinha 150 deputados federais de um total de 250 que articulou e conseguiu
apoio de altos empresários.
O resultado foi que o
baixo clero passou a defender uma agenda nacional que não tinha, a do alto
empresariado. Lira deu um passo a mais e conseguiu capturar uma imensa fatia do
orçamento federal que, agora, vai para os pequenos municípios que elegem o baixo
clero.
Estima-se que quase 8
em cada 10 deputados estão nas sombras na Câmara de Deputados e são
potencialmente do baixo clero, ou seja, sua força vem da articulação ao redor
de Arthur Lira e formam a principal base do que se denomina Centrão.
Então, temos que ter
claro que as eleições municipais compõem a base do poder do baixo clero
instalado no Congresso Nacional. É a partir delas que se forma o arco político
de base do Centrão e a base do poder de Arthur Lira.
Como o bolsonarismo
procura atuar nesses pequenos municípios? Procurando estimular o sentimento de
ressentimento frente ao governo federal e sugerir que Jair Bolsonaro e os
ultraconservadores são perseguidos pela sana do ministro Alexandre de Moraes.
Esta é a motivação
para as manifestações recentes lideradas pelo bolsonarismo: dar visibilidades à
força e, ao mesmo tempo, perseguição que sofrem e, assim, coesionarem sua base
municipal.
Como a esquerda
deveria atuar nesses pequenos municípios? Atuando e organizando diretamente
mulheres e jovens, criando inclusive, fontes de financiamento dos órgãos
federais para gerar emprego e estruturas associativas de geração de renda.
Explico: jovens e mulheres se subordinam ao patriarcado e coronelismo nos
pequenos municípios.
Se o campo
progressista e esquerda financiarem a autonomia econômica de jovens e mulheres
nesses pequenos municípios, criaria uma pequena revolução em todo interior do
país, quebrando ao menos parte do poder e monopólio econômico e político nessas
localidades.
E as eleições nos
grandes municípios? Aqui, a impessoalidade é mais forte e, assim, as agendas
são mais disputadas e plurais. Por este motivo, grandes temas – saúde,
segurança, obras, dentre outros – geram embates ideológicos e de interesses.
Nos grandes
municípios, pelos motivos expostos, ocorre mais facilmente a nacionalização das
pautas eleitorais. E é aqui que ocorre uma grande oportunidade para a esquerda:
a emergência da agenda ambiental, devido à crise ambiental.
Em outras palavras, a
agenda da extrema direita que dominava o cenário nacional com o bolsonarismo no
governo, a questão da segurança nacional, está sendo substituída neste momento
pela questão ambiental. E já está evidente que esta nova agenda cala a direita
e a extrema-direita.
Eduardo Leite cometeu
o maior deslize de sua vida política justamente ao colocar a sobrevivência do
mercado acima da sobrevivência de vidas humanas quando comentou a necessidade
de segurar doações aos desalojados. Fica evidente como direita e extrema direita
não sabem o que dizer.
A esquerda, então, tem
uma avenida a ocupar: articular uma discussão sobre desenvolvimento urbano a
partir da crise climática, emplacando a agenda da saúde pública porque é ela
que aparecerá nos próximos dias, com a baixa das águas no RS. Teremos epidemias
sendo disseminadas pelas ruas sujas e tomadas por insetos e pequenos animais em
circulação.
Estamos num momento
importantíssimo da vida política do Brasil e o mote são as eleições municipais.
Elas articularão presente com futuro e por aí que consolidaremos a democracia e
políticas públicas inclusivas. Mas, terá muita disputa.
• Eleições: a tarefa de repensar modelos
de cidades, Por Fernando Marcelino
Uma das grandes falhas
das esquerdas é debater pouco ou quase nada as teses que dizem respeito ao
cotidiano das cidades. Quase não se faz isso. Todos discutem ardorosamente
questões no plano internacional, nacional e setorial, mas muito raramente a
pauta incluiu algum tema regional ou local. O erro básico das esquerdas é
centrar-se apenas nas grandes teses e, como resultado, normalmente não se
apresentam como opção concreta para governar os municípios. Existe pouca
clareza dos militantes e dirigentes que, para governar, antes é preciso ter um
projeto local. Não se percebe a importância estratégica das cidades, seja na
disputa hegemônica, seja como instrumento de melhoria na qualidade de vida do
povo.
O embate político no
Brasil, nos próximos meses, se dará em torno de propostas de governo nas
cidades. As exigências que emergem são tarefas muito mais complexas do que
aquelas que se davam há dez, 20, 30 anos. Entender o novo momento histórico que
estamos vivendo e as novas necessidades é crucial.
A construção de um
projeto de desenvolvimento municipal deve ocorrer de forma detalhada ao longo
do debate eleitoral, visando confrontar os problemas diagnosticados e realizar
a estratégia que se propõe a resolvê-los. É preciso formular um plano que possa
ser transformado em ponto de referência para a população, que se trave a luta
política e ideológica em torno dele. Ao fazer isso, pode-se colocar no caminho
da disputa de hegemonia, com conceitos que possam organizar o pensamento e
oferecer um imaginário para a sociedade.
Muitas vezes o eleitor
fica com o projeto conservador mais por receio do projeto progressista do que
propriamente pelas qualidades daquele escolhido. Isso acontece porque a
proposta apresentada não é capaz de demonstrar que viria para melhorar.
Empresários e setores das classes médias temem que obras sejam paralisadas,
greves e movimentos sociais sejam promovidos, que se torrem os recursos
públicos com programas sociais, não tendo a preocupação de gerar novos
investimentos.
Todas as cidades podem
fazer transformações positivas em pouco tempo, seja por uma visão estratégica,
pela reciclagem de espaços ociosos, intervenções pontuais – a acupuntura urbana
–, gerar novas energias e desencadear suas potencialidades. Falta de dinheiro
não justifica falta de ideias. Diversas ações exigem mais criatividade do que
um grande volume de recursos.
Um plano de
desenvolvimento urbano requer priorizar áreas de grande impacto no futuro da
cidade, elaborando estudos prospectivos para balizar seu desenvolvimento,
visões, objetivos e ações. Projeta-se o futuro no presente, baseado nas lições
do passado, com escalas de curto prazo, médio prazo e longo prazo. Os planos de
curto prazo remetem aos objetivos de médio e longo prazo. O planejamento
conecta o presente e o futuro, em esforços coordenados e nas suas devidas
etapas. Ao mesmo tempo, é flexível, se adaptando as necessidades gerais.
Planejamento como ação de intervenção no futuro, mediando tendências, mas
seguindo diversos planos simultaneamente, definindo prioridades e fortalecendo
as formas de execução no devido tempo.
É preciso elaborar
projetos exequíveis no curto e longo prazo que visem a gestão do território
urbano, promovendo o planejamento espacial integrado. É óbvio que se trata de
dinamizar o que já existe, e não de inventar uma visão futura idealizada,
desgarrada da realidade. Trata-se, antes de tudo, de ter os pés no chão, de
conhecer profundamente a dinâmica existente para então intervir.
Em primeiro lugar,
deve-se realçar a importância do ensino primário, dos cuidados de saúde, da
segurança social e de outros serviços públicos. Garantir quantidade e qualidade
e melhorar a qualidade geral da população urbana. O primeiro passo para criar uma
cidade desenvolvida é assegurar que o básico seja muito bem feito, estando a
prefeitura presente para solucionar os problemas diários e valorizando
constantemente os diversos espaços da cidade. A qualidade de vida das pessoas
não depende apenas das grandes obras. Muitas vezes fazer o básico é mais
difícil do que se imagina.
Uma prefeitura que não
esteja no dia a dia da população é de pouca serventia para a população. Por
isso, é essencial que a prefeitura conte com uma política de zeladoria urbana
contínua, eficiente, eficaz e transparente, capaz de limpar, varrer, carpir, lavar,
pintar, reorganizar e requalificar os espaços urbanos públicos. Não ter uma
zeladoria permanente leva ao desperdício de dinheiro público além da lentidão
ao atendimento da população, com o abandono aos detalhes da cidade e o
agravamento de problemas no funcionamento dos serviços aos cidadãos.
A zeladoria é uma
estrutura baseada no princípio da manutenção de áreas públicas, responsável
pelo sistema viário, rede de drenagem, substituição de lâmpadas, limpeza
urbana, limpeza de lixeiras públicas e bueiros, manutenção de vegetação e
jardins em praças/parques e vigilância sanitária. Contempla uma série de
serviços, incluindo a retirada de entulhos, jardinagem, capinagem, manejo e
plantio de árvores, manutenção de ruas, guias e sarjetas, limpeza de bueiros,
além da sinalização vertical e horizontal. A zeladoria contempla projetos e
obras permanentes de recuperação da malha viária e de manutenção de edifícios
públicos, recuperação das malhas viária e cicloviária com serviços de
pavimentação, microdrenagem, iluminação e sinalização, recuperar viadutos e
trincheiras, recuperação de calçadas e acessibilidade nos equipamentos
municipais, recuperação do patrimônio histórico e fiscalização eficiente das
obras realizadas por concessionárias de água, esgoto, gás, telecomunicações.
Além de projetos de
zeladoria de ponta, as cidades podem incrementar os mecanismos de planejamento
– orçamentário, de investimentos e serviços públicos – para resolução dos
graves problemas causados pela desigualdade territorial.
Cidades ao redor do
mundo estão empenhando esforços para adicionar alguma forma de classificação
geográfica ao orçamento público. Assim os investimentos devem ser realizados de
acordo com as regiões de maior vulnerabilidade. Os investimentos maiores devem
ser nas áreas que mais precisam. O principal motivo para a adoção de
estratégias regionalizadas de orçamentação é a necessidade de os governos
combaterem as desigualdades socioespaciais, muitas vezes geradas depois de um
surto de desenvolvimento nas regiões mais abastadas. Essas estratégias, ao
introduzir novos critérios para o planejamento e a execução orçamentária, criam
novas regras de governança que possibilitam combater outros aspectos
problemáticos dos sistemas tradicionais de gestão orçamentária.
Outra questão comum
nas cidades é uma ocupação desordenada com vazios urbanos em excesso. A
conceituação do termo vazio urbano considera todos os lotes que não possuam
qualquer tipo de edificação sobre eles. Maiores e menores, terrenos vazios, com
alguma estrutura acabada ou inacabada, com edifícios em ruínas, prédios
fechados, casas abandonadas, lojas, galpões, massas falidas, indústrias e
terrenos com áreas verdes. É necessário que se mude a narrativa do caráter
negativo dos vazios urbanos e se passe a interpretá-los como grandes potenciais
de desenvolvimento sustentável urbano. A primeira reação ao observar a
existência deles não é examinar as causas da ociosidade, mas admitir que
existem boas razões para tal, sendo preferível deixar as coisas como estão.
Diversas cidades
conseguiram reciclar imóveis de forma bem sucedida. Só que os vazios urbanos
devem ser entendidos como espaços de possibilidade de melhorias para as
cidades. Podem se transformar em novas vias de acesso para populações, serem
preenchidos com infraestrutura pública, parques urbanos, corredores verdes,
hortas urbanas, moradias sociais, centros comerciais, praças, escolas, creches,
módulos policiais e áreas de lazer, bem como hortas comunitárias, dentre
outros. Espaços que anteriormente apresentavam-se como um vazio urbano, redutos
de lixo e consumo e comercialização de ilícitos, tornam-se diferencial e com
outro significado para os moradores.
A cidade é um meio
material e social adequado a uma maior socialização das forças produtivas e de
consumo. A vida urbana induz à criação de meios coletivos. As cidades são
perfeitas para duas tarefas emancipatórias: a elevação das forças produtivas e
a socialização da riqueza socialmente construída. O governo municipal cumpre
muitos papéis, criando novos mercados e impulsionando a adoção de novos
serviços. Ele pode oferecer incentivos para apoiar empresas a fazer parcerias
com outras e com a própria prefeitura, ativar polos industriais. Cada estágio
de crescimento e expansão urbana corresponde, grosso modo, um nível de uma
complexidade crescente na atividade industrial. Por isso a importância de
fortalecer a atividade industrial no município para garantir um desenvolvimento
mais consolidado e seguro.
Existem outros temas
emergentes da agenda urbana que também merecem maior detalhamento, como as
formas de gestão urbanas mais modernas, as cidades-esponja, mobilidade ativa,
urbanismo tático, a importância dos centros e da identidade das cidades,
programas de segurança pública, o papel das prefeituras no desenvolvimento
econômico, blockchain, uso da Internet das Coisas e os cérebros urbanos no
planejamento urbano. São questões que estão em curso no desenvolvimento de
diversas cidades e que podem estar na agenda urbana atual.
É crucial esforçar-se
para promover a renovação urbana. A próxima eleição municipal é uma
oportunidade para avançar em propostas de desenvolvimento urbano que sejam
capazes de construir cidades habitáveis, ágeis, seguras, resilientes, verdes,
inteligentes e belas. O futuro da esquerda passa pelas cidades.
Fonte: Outras Palavras
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