sábado, 25 de maio de 2024

Rudá Ricci: ‘Eleições municipais - a cilada das pequenas cidades’

O esquema de Artur Lira: articular prefeitos fisiológicos e deputados do baixo clero com a pauta do grande capital. O risco: avanço da direita em 2024 e um Congresso piorado em 2026. A alternativa: projetos de transformação local, apoiados nas mulheres e jovens

O primeiro ponto a ressaltar sobre as eleições municipais brasileiras é que 65% delas são rurais (remoto ou adjacente) ou estão distantes de grandes centros urbanos.

Ocorre que esses municípios já foram pesquisados pela antropologia política. O estudo que mais me impressiona é o de Moacir Palmeira. Nele, o autor revela que nessas localidades a disputa eleitoral é polarizada entre quase sempre famílias detentoras do poder econômico.

Há uma moral política interessante nos municípios rurais ou remotos. Como parte da população gravita ao redor do poder econômico concentrado, os polos – situação e oposição – articulam praticamente todos os habitantes. E a prefeitura emprega os apoiadores do vencedor.

O consenso nessas localidades é de que quem vence merece empregar os apoiadores da última eleição, de maneira que se o segundo bloco vencer na eleição seguinte, tem o aval geral para demitir quem quiser para empregar os apoiadores. Lembremos que em 700 municípios brasileiros, a prefeitura é o maior empregador local.

Uma outra decorrência da polarização nesses municípios é ainda mais insólita: o apoiador do candidato derrotado só pode mudar de lado na eleição seguinte. Fica, portanto, atado ao bloco do derrotado por quatro anos, cumprindo uma “pena”.

Por que esses dados sobre municípios rurais e remotos são importantes para as eleições municipais? Porque elegem deputados federais. E, como sabemos, deputados federais atanazam a vida de presidentes e mandam em boa parte do orçamento federal.

O poder dos deputados federais começa com a revolta dos bagrinhos quando da eleição de Severino Cavalcanti como presidente da Câmara dos Deputados. Ficou pouco tempo, mas abriu espaço para os esquemas de Eduardo Cunha e Arthur Lira.

Até então, o baixo clero – assim chamado desde a ditadura militar porque eram deputados que não eram chamados para o “conselho de cardeais” convocado pelos militares para alinhar pautas no Congresso Nacional – era disperso nas suas agendas locais.

Com Cunha, o baixo clero se articulou. Cunha trouxe o apoio de federações empresariais para a campanha e suporte da bancada que ele elegia. Nos bastidores, afirmava-se que ele tinha 150 deputados federais de um total de 250 que articulou e conseguiu apoio de altos empresários.

O resultado foi que o baixo clero passou a defender uma agenda nacional que não tinha, a do alto empresariado. Lira deu um passo a mais e conseguiu capturar uma imensa fatia do orçamento federal que, agora, vai para os pequenos municípios que elegem o baixo clero.

Estima-se que quase 8 em cada 10 deputados estão nas sombras na Câmara de Deputados e são potencialmente do baixo clero, ou seja, sua força vem da articulação ao redor de Arthur Lira e formam a principal base do que se denomina Centrão.

Então, temos que ter claro que as eleições municipais compõem a base do poder do baixo clero instalado no Congresso Nacional. É a partir delas que se forma o arco político de base do Centrão e a base do poder de Arthur Lira.

Como o bolsonarismo procura atuar nesses pequenos municípios? Procurando estimular o sentimento de ressentimento frente ao governo federal e sugerir que Jair Bolsonaro e os ultraconservadores são perseguidos pela sana do ministro Alexandre de Moraes.

Esta é a motivação para as manifestações recentes lideradas pelo bolsonarismo: dar visibilidades à força e, ao mesmo tempo, perseguição que sofrem e, assim, coesionarem sua base municipal.

Como a esquerda deveria atuar nesses pequenos municípios? Atuando e organizando diretamente mulheres e jovens, criando inclusive, fontes de financiamento dos órgãos federais para gerar emprego e estruturas associativas de geração de renda. Explico: jovens e mulheres se subordinam ao patriarcado e coronelismo nos pequenos municípios.

Se o campo progressista e esquerda financiarem a autonomia econômica de jovens e mulheres nesses pequenos municípios, criaria uma pequena revolução em todo interior do país, quebrando ao menos parte do poder e monopólio econômico e político nessas localidades.

E as eleições nos grandes municípios? Aqui, a impessoalidade é mais forte e, assim, as agendas são mais disputadas e plurais. Por este motivo, grandes temas – saúde, segurança, obras, dentre outros – geram embates ideológicos e de interesses.

Nos grandes municípios, pelos motivos expostos, ocorre mais facilmente a nacionalização das pautas eleitorais. E é aqui que ocorre uma grande oportunidade para a esquerda: a emergência da agenda ambiental, devido à crise ambiental.

Em outras palavras, a agenda da extrema direita que dominava o cenário nacional com o bolsonarismo no governo, a questão da segurança nacional, está sendo substituída neste momento pela questão ambiental. E já está evidente que esta nova agenda cala a direita e a extrema-direita.

Eduardo Leite cometeu o maior deslize de sua vida política justamente ao colocar a sobrevivência do mercado acima da sobrevivência de vidas humanas quando comentou a necessidade de segurar doações aos desalojados. Fica evidente como direita e extrema direita não sabem o que dizer.

A esquerda, então, tem uma avenida a ocupar: articular uma discussão sobre desenvolvimento urbano a partir da crise climática, emplacando a agenda da saúde pública porque é ela que aparecerá nos próximos dias, com a baixa das águas no RS. Teremos epidemias sendo disseminadas pelas ruas sujas e tomadas por insetos e pequenos animais em circulação.

Estamos num momento importantíssimo da vida política do Brasil e o mote são as eleições municipais. Elas articularão presente com futuro e por aí que consolidaremos a democracia e políticas públicas inclusivas. Mas, terá muita disputa.

 

•        Eleições: a tarefa de repensar modelos de cidades, Por Fernando Marcelino

Uma das grandes falhas das esquerdas é debater pouco ou quase nada as teses que dizem respeito ao cotidiano das cidades. Quase não se faz isso. Todos discutem ardorosamente questões no plano internacional, nacional e setorial, mas muito raramente a pauta incluiu algum tema regional ou local. O erro básico das esquerdas é centrar-se apenas nas grandes teses e, como resultado, normalmente não se apresentam como opção concreta para governar os municípios. Existe pouca clareza dos militantes e dirigentes que, para governar, antes é preciso ter um projeto local. Não se percebe a importância estratégica das cidades, seja na disputa hegemônica, seja como instrumento de melhoria na qualidade de vida do povo.

O embate político no Brasil, nos próximos meses, se dará em torno de propostas de governo nas cidades. As exigências que emergem são tarefas muito mais complexas do que aquelas que se davam há dez, 20, 30 anos. Entender o novo momento histórico que estamos vivendo e as novas necessidades é crucial.

A construção de um projeto de desenvolvimento municipal deve ocorrer de forma detalhada ao longo do debate eleitoral, visando confrontar os problemas diagnosticados e realizar a estratégia que se propõe a resolvê-los. É preciso formular um plano que possa ser transformado em ponto de referência para a população, que se trave a luta política e ideológica em torno dele. Ao fazer isso, pode-se colocar no caminho da disputa de hegemonia, com conceitos que possam organizar o pensamento e oferecer um imaginário para a sociedade.

Muitas vezes o eleitor fica com o projeto conservador mais por receio do projeto progressista do que propriamente pelas qualidades daquele escolhido. Isso acontece porque a proposta apresentada não é capaz de demonstrar que viria para melhorar. Empresários e setores das classes médias temem que obras sejam paralisadas, greves e movimentos sociais sejam promovidos, que se torrem os recursos públicos com programas sociais, não tendo a preocupação de gerar novos investimentos.

Todas as cidades podem fazer transformações positivas em pouco tempo, seja por uma visão estratégica, pela reciclagem de espaços ociosos, intervenções pontuais – a acupuntura urbana –, gerar novas energias e desencadear suas potencialidades. Falta de dinheiro não justifica falta de ideias. Diversas ações exigem mais criatividade do que um grande volume de recursos.

Um plano de desenvolvimento urbano requer priorizar áreas de grande impacto no futuro da cidade, elaborando estudos prospectivos para balizar seu desenvolvimento, visões, objetivos e ações. Projeta-se o futuro no presente, baseado nas lições do passado, com escalas de curto prazo, médio prazo e longo prazo. Os planos de curto prazo remetem aos objetivos de médio e longo prazo. O planejamento conecta o presente e o futuro, em esforços coordenados e nas suas devidas etapas. Ao mesmo tempo, é flexível, se adaptando as necessidades gerais. Planejamento como ação de intervenção no futuro, mediando tendências, mas seguindo diversos planos simultaneamente, definindo prioridades e fortalecendo as formas de execução no devido tempo.

É preciso elaborar projetos exequíveis no curto e longo prazo que visem a gestão do território urbano, promovendo o planejamento espacial integrado. É óbvio que se trata de dinamizar o que já existe, e não de inventar uma visão futura idealizada, desgarrada da realidade. Trata-se, antes de tudo, de ter os pés no chão, de conhecer profundamente a dinâmica existente para então intervir.

Em primeiro lugar, deve-se realçar a importância do ensino primário, dos cuidados de saúde, da segurança social e de outros serviços públicos. Garantir quantidade e qualidade e melhorar a qualidade geral da população urbana. O primeiro passo para criar uma cidade desenvolvida é assegurar que o básico seja muito bem feito, estando a prefeitura presente para solucionar os problemas diários e valorizando constantemente os diversos espaços da cidade. A qualidade de vida das pessoas não depende apenas das grandes obras. Muitas vezes fazer o básico é mais difícil do que se imagina.

Uma prefeitura que não esteja no dia a dia da população é de pouca serventia para a população. Por isso, é essencial que a prefeitura conte com uma política de zeladoria urbana contínua, eficiente, eficaz e transparente, capaz de limpar, varrer, carpir, lavar, pintar, reorganizar e requalificar os espaços urbanos públicos. Não ter uma zeladoria permanente leva ao desperdício de dinheiro público além da lentidão ao atendimento da população, com o abandono aos detalhes da cidade e o agravamento de problemas no funcionamento dos serviços aos cidadãos.

A zeladoria é uma estrutura baseada no princípio da manutenção de áreas públicas, responsável pelo sistema viário, rede de drenagem, substituição de lâmpadas, limpeza urbana, limpeza de lixeiras públicas e bueiros, manutenção de vegetação e jardins em praças/parques e vigilância sanitária. Contempla uma série de serviços, incluindo a retirada de entulhos, jardinagem, capinagem, manejo e plantio de árvores, manutenção de ruas, guias e sarjetas, limpeza de bueiros, além da sinalização vertical e horizontal. A zeladoria contempla projetos e obras permanentes de recuperação da malha viária e de manutenção de edifícios públicos, recuperação das malhas viária e cicloviária com serviços de pavimentação, microdrenagem, iluminação e sinalização, recuperar viadutos e trincheiras, recuperação de calçadas e acessibilidade nos equipamentos municipais, recuperação do patrimônio histórico e fiscalização eficiente das obras realizadas por concessionárias de água, esgoto, gás, telecomunicações.

Além de projetos de zeladoria de ponta, as cidades podem incrementar os mecanismos de planejamento – orçamentário, de investimentos e serviços públicos – para resolução dos graves problemas causados pela desigualdade territorial.

Cidades ao redor do mundo estão empenhando esforços para adicionar alguma forma de classificação geográfica ao orçamento público. Assim os investimentos devem ser realizados de acordo com as regiões de maior vulnerabilidade. Os investimentos maiores devem ser nas áreas que mais precisam. O principal motivo para a adoção de estratégias regionalizadas de orçamentação é a necessidade de os governos combaterem as desigualdades socioespaciais, muitas vezes geradas depois de um surto de desenvolvimento nas regiões mais abastadas. Essas estratégias, ao introduzir novos critérios para o planejamento e a execução orçamentária, criam novas regras de governança que possibilitam combater outros aspectos problemáticos dos sistemas tradicionais de gestão orçamentária.

Outra questão comum nas cidades é uma ocupação desordenada com vazios urbanos em excesso. A conceituação do termo vazio urbano considera todos os lotes que não possuam qualquer tipo de edificação sobre eles. Maiores e menores, terrenos vazios, com alguma estrutura acabada ou inacabada, com edifícios em ruínas, prédios fechados, casas abandonadas, lojas, galpões, massas falidas, indústrias e terrenos com áreas verdes. É necessário que se mude a narrativa do caráter negativo dos vazios urbanos e se passe a interpretá-los como grandes potenciais de desenvolvimento sustentável urbano. A primeira reação ao observar a existência deles não é examinar as causas da ociosidade, mas admitir que existem boas razões para tal, sendo preferível deixar as coisas como estão.

Diversas cidades conseguiram reciclar imóveis de forma bem sucedida. Só que os vazios urbanos devem ser entendidos como espaços de possibilidade de melhorias para as cidades. Podem se transformar em novas vias de acesso para populações, serem preenchidos com infraestrutura pública, parques urbanos, corredores verdes, hortas urbanas, moradias sociais, centros comerciais, praças, escolas, creches, módulos policiais e áreas de lazer, bem como hortas comunitárias, dentre outros. Espaços que anteriormente apresentavam-se como um vazio urbano, redutos de lixo e consumo e comercialização de ilícitos, tornam-se diferencial e com outro significado para os moradores.

A cidade é um meio material e social adequado a uma maior socialização das forças produtivas e de consumo. A vida urbana induz à criação de meios coletivos. As cidades são perfeitas para duas tarefas emancipatórias: a elevação das forças produtivas e a socialização da riqueza socialmente construída. O governo municipal cumpre muitos papéis, criando novos mercados e impulsionando a adoção de novos serviços. Ele pode oferecer incentivos para apoiar empresas a fazer parcerias com outras e com a própria prefeitura, ativar polos industriais. Cada estágio de crescimento e expansão urbana corresponde, grosso modo, um nível de uma complexidade crescente na atividade industrial. Por isso a importância de fortalecer a atividade industrial no município para garantir um desenvolvimento mais consolidado e seguro.

Existem outros temas emergentes da agenda urbana que também merecem maior detalhamento, como as formas de gestão urbanas mais modernas, as cidades-esponja, mobilidade ativa, urbanismo tático, a importância dos centros e da identidade das cidades, programas de segurança pública, o papel das prefeituras no desenvolvimento econômico, blockchain, uso da Internet das Coisas e os cérebros urbanos no planejamento urbano. São questões que estão em curso no desenvolvimento de diversas cidades e que podem estar na agenda urbana atual.

É crucial esforçar-se para promover a renovação urbana. A próxima eleição municipal é uma oportunidade para avançar em propostas de desenvolvimento urbano que sejam capazes de construir cidades habitáveis, ágeis, seguras, resilientes, verdes, inteligentes e belas. O futuro da esquerda passa pelas cidades.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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