Respeitem
os vários tipos de fé dos povos do Rio Grande do Sul: “Não os julguem!”
Sigo
comovido com o sofrimento dos povos do Rio Grande do Sul, nossos irmãos e
irmãs, e indignado com o capitalismo, com o agronegócio, os desmatadores, os
empresários das monoculturas desertificadoras e com quem fomenta o uso de
combustíveis fósseis, pois é este projeto de morte – a idolatria do mercado –
que nos levou às mudanças climáticas e está nos encurralando com a Emergência
Climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais. As sirenes da
Emergência Climática estão gritando de forma estridente.
Além
da nossa solidariedade, que deve ser a mais efetiva possível, aos povos
gaúchos, aos animais e a toda biodiversidade, temos que denunciar as causas que
levaram aos eventos extremos que estão golpeando os povos no Rio Grande do Sul.
Se não alterarmos as causas complexas que estão causando as mudanças
climáticas, teremos tragédias cada vez mais brutais e com mais frequência.
Lamentável ver pessoas divulgando fake news, mentiras e insistindo em posturas
negacionistas em um contexto que exige união para reconstruir vidas e condições
de vida.
Tenho
recebido vídeos de padres jovens, leigos em teologia e ciências sociais,
divulgados por leigos infantilizados, praticando uma espécie de negacionismo
religioso, atribuindo injustamente e de forma absurda a causa do brutal evento
extremo que se abate sobre o Rio Grande do Sul à existência de pessoas ateias
ou integrantes do candomblé, da Umbanda ou ainda porque muitos gaúchos deixaram
a Igreja Católica e agora estariam sofrendo por isto.
Absurdo
brutal afirmar isto julgando as pessoas do querido estado do Rio Grande do sul.
Não vou repetir aqui as calúnias, os preconceitos, as expressões discriminatórias
e criminosas para não ecoar as posturas lamentáveis, injustas e contrárias ao
Evangelho de Jesus Cristo. Entretanto, peço: não julguem as pessoas. Ser
solidário/a, amar, sim; julgar, não! Respeitem os vários tipos de fé dos povos
do Rio Grande do Sul.
Este
tipo de acusação trata-se de negacionismo religioso, que violenta de duas
formas: por um lado, julga pessoas caluniando-as com intolerância religiosa, o
que é crime e acaba por incentivar ataques aos Povos de Terreiro e a seus
líderes espirituais, e, por outro lado, desvia e oculta a atenção das causas
reais e históricas do evento extremo: as mudanças climáticas causadas pela
ganância de capitalistas que cegados trituram todo o meio ambiente em busca de
lucro e de acumulação de capital. Estes acusadores não falam nem uma vírgula
sobre estas causas que precisam ser denunciadas e superadas. Ao atribuir as
causas da tragédia a forças “demoníacas” inocentam e encobrem as verdadeiras
causas socioeconômicas e políticas capitalistas.
No
Brasil há grande diversidade religiosa, inclusive entre os Povos de Terreiros.
A categoria de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Ancestral Africana,
os Povos de Terreiro, é composta pelos segmentos do Candomblé das nações e
Ketu, Angola e Jeje, Angola-Muxikongo, de Umbanda e Omolocô de diferentes
linhas e por Reinados nas mais diversas linhagens, dentre outros.
Como
assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, o CEBI, e agente de pastoral
da Comissão Pastoral da Terra, CPT, tenho convivido muito com pessoas de
Religião de Matriz Africana – Candomblé, Umbanda… -, com indígenas com mística
e espiritualidade de Povos Originários, pessoas espíritas, ateias, de religiões
orientais etc. Com estas pessoas tenho aprendido muito e lutamos juntos por
direitos à terra, à moradia, à preservação ambiental e tantas outras lutas. Dia
20 de novembro de 2023, “por acaso”, assisti a uma sessão de Umbanda em uma
praça. Fui bem acolhido e me senti abençoado por outra religião, a Umbanda,
religião que prega o amor, a paz, a fraternidade e o respeito.
Por
que pessoas que se dizem cristãs, sejam católicas ou (neo)pentecostais,
perseguem os Povos de Terreiro, pessoas do Candomblé e da Umbanda? Há muitas
semelhanças entre a celebração na Umbanda e as celebrações que se fazem nas
igrejas cristãs: cantos, orações, bênçãos, partilha etc. Mesmo que fossem
totalmente distintas as formas de celebração e de rituais, não há motivo para
discriminação e muito menos perseguição, pois os Povos de Terreiro pregam o
amor, a paz, a fraternidade e o respeito. Além do mais, o Brasil é um país
laico, ou seja, está garantida na Constituição Federal de 1988 a liberdade de
credo de todas as religiões e igrejas, bem como a alteridade cultural. O Brasil
não é um país confessional, de uma única religião, o que seria ditadura religiosa.
Intolerância religiosa é crime. Sei que o preconceito é fruto de
desconhecimento e falta de informação correta e histórica. Não há como amar o
que se desconhece.
O
biblista e teólogo padre Marcelo Barros nos recorda que “o termo Umbanda vem do
idioma quimbunda de Angola e significa “arte de curar”, ou hoje podemos
traduzir por “arte de cuidar”, o que liga a fé e a espiritualidade ao cuidado
uns dos outros/umas das outras, assim como cuidado da mãe-Terra e da natureza.
Assim como em sua sociedade Jesus valorizou os samaritanos, cultural e
espiritualmente, reconhecemos nas comunidades de Umbanda essas comunidades
samaritanas que têm ajudado as pessoas negras e pobres a salvaguardar a
consciência de sua dignidade humana e a necessária e salutar cultura
comunitária da qual a nossa sociedade precisa tanto.”
Infelizmente,
em pleno século XXI há grupos cristãos fundamentalistas que combatem e
perseguem as religiões afrodescendentes. É mais triste ainda constatar que
fazem isso em nome de Jesus e de Deus. Conforme o Evangelho, Jesus afirmou que
pelos frutos se conhece a árvore. No Brasil e em todo o continente, os frutos
das religiões negras têm sido preservar as culturas originárias, manter a
unidade das comunidades e, em nossos dias, testemunhar a toda a humanidade uma
espiritualidade que liga o amor social ao cuidado afetuoso com a mãe-Terra e
toda a natureza.
No
passado e até hoje, a Umbanda e as outras religiões indígenas e negras foram
discriminadas, condenadas e mesmo perseguidas pela nossa Igreja e, hoje ainda,
por grupos católicos fundamentalistas e (neo)pentecostais. Por isso, temos uma
dívida moral com os Povos de Terreiro e as espiritualidades de matriz afro e
podemos, em nome de Jesus, afirmar em bom e alto som: Viva a Umbanda! Viva o
Candomblé! Viva os Povos de terreiro!
Sejamos
construtores de paz com respeito entre as religiões, igrejas e pessoas
religiosas. Só tolerância é pouco, exige-se respeito pelo diferente. E não
atribuamos às práticas religiosas ou ausência delas as tragédias anunciadas
causadas pelo sistema de morte que é o capitalismo, como a que hoje abate sobre
milhares de irmãos e irmãs no Rio Grande do Sul. Que a luz e a força divina nos
guiem sempre, inclusive no processo de libertação de preconceitos e
discriminações.
Fonte:
Por frei Gilvander Moreira, em Combate Racismo Ambiental
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