domingo, 26 de maio de 2024

O capitalismo senil e os CEOs popstars

Uma das muitas contradições presentes no campo ideológico das Big Techs é a que opõe a fé na descentralização e a sedução dessas corporações pela “liderança” empresarial. Identificar as empresas pelos apelidos dos seus executivos-chefes, ou CEOs – Altman, no caso da OpenAI; Zuckerberg, no da Meta; Ellison, no da Oracle – tornou-se jargão. Na imprensa especializada prevalece a sensação de que esses nomes servem mais como sinônimos do que como metonímias, como se o indivíduo que dirige a corporação fosse também o eixo sobre o qual gira seu sucesso ou fracasso. As aquisições malsucedidas, as violações de segurança e os problemas de monetização do Yahoo ao longo da década de 2010 tornaram-se indelevelmente associados à sua CEO, Marissa Mayer. O retorno triunfante da Apple, praticamente falida no final da década de 1990, foi atribuído ao lendário golpe dado por Steve Jobs em seu conselho de administração.

Os CEO nem sempre ocuparam um lugar tão privilegiado na cultura empresarial global. Na opinião de Rakesh Khurana, professor da Harvard Business School, os líderes empresariais já foram tão anônimos para o público “como o eram suas secretárias, motoristas e engraxates”. No seu trabalho de 2002, Searching for a Corporate Saviour: The Irrational Quest for Charismatic CEOs [“Procurando um Salvador Corporativo: a busca irracional por CEOs carismáticos”, em tradução preliminar]Khurana descreve a mudança do papel prático e simbólico destas figuras desde o final do século XIX. Os primeiros titãs da indústria – os Carnegies e os Rockefellers, os Henry Fords e Charles Eastmans, e outros grandes líderes empresariais – adquiriram notoriedade pública pela sua construção de impérios, inovações técnicas e de gestão, esforços filantrópicos e seu ativismo antioperário. Eles personificavam um tipo distintamente burguês de autoridade carismática weberiana, sob a qual a acumulação de riquezas era vista como uma recompensa divinamente ordenada pela sua excepcional ética de trabalho. Em meados do século XX, contudo, esta imagem foi transformada à medida que o desenvolvimento de rotinas, procedimentos, leis e normas corporativas conduziu a uma forma reconhecidamente moderna de autoridade legal ou racional.

Naquele momento, o magnata reencarnou como um administrador competente. Embora Khurana atribua isto à ascensão de tiranos como Hitler e Mussolini, que explodiram o “mito do self-made man”, uma explicação mais completa poderia estabelecer uma ligação entre o CEO de meados do século XX e os princípios formais de gestão do taylorismo. O apelo à racionalidade e à eficiência despersonalizou a subjugação do trabalho pelo capital. A exploração já não podia ser personificada pelo barão da empresa, uma vez que as condições existentes no local de trabalho eram o resultado de um sistema de análise, cálculo e planejamento eticamente neutro e semelhante à norma legal. Embora os trabalhadores organizados continuassem a rebelar-se contra o “chefe-espantalho” da fábrica fordista, durante a década de 1950 a escala crescente das operações empresariais, bem como a substituição dos empresários e dos seus herdeiros pelos acionistas e, posteriormente, pelos conselhos de administração e equipes de gestão, ajudou a inaugurar um período no qual o CEO delegou grande parte das operações diárias visíveis da empresa.

Na década de 1980, as condições estavam propícias para que outra transformação ocorresse. Os efeitos do desempenho de cinco anos de alta da bolsa de Nova York, seguidos por uma série muito mais longa de aumento dos preços das ações na década seguinte, refletiram-se na sorte dos fundos mútuos. Depois que o Congresso dos EUA aprovou a Lei da Receita de 1978, que legalizou e popularizou os planos de aposentadoria privados, cuja contribuição beneficia-se de generosas isenções fiscais – os famosos planos 401(k) – o dinheiro fluiu para eles, o que significou que o capital de investidores não profissionais ou “comuns” começou a ser canalizado para uma gama diversificada de ações de inúmeras empresas. Adivieram duas consequências importantes: uma ampla demanda por estas ações e um envolvimento emocional generalizado com o desempenho geral da bolsa. A mídia dos EUA continua a dedicar uma quantidade esmagadora de tempo à evolução dos preços das ações; Donald Trump frequentemente parece vincular o sucesso de sua presidência ao desempenho do S&P 500 [um dos índices de Wall Street], enquanto os fundos que acompanham o desempenho desse índice cresceram em popularidade nas últimas décadas entre a comunidade internacional de investimentos.

Isso permitiu a rápida expansão da imprensa de negócios, com a fundação de veículos como CNBC, MSNBC e Bloomberg News durante as décadas de 1980 e 1990 e a proliferação de inúmeras publicações financeiras especializadas, bem como o surgimento do cobiçado novo título de “analista de ações”. O jornalismo econômico concentrava-se no desempenho de curto prazo das empresas, para as quais o preço das ações era um barômetro claro e prontamente disponível. É claro que, como ressalta Khurana, essa cobertura sempre foi “tingida com o viés individualista da cultura americana”, concentrando-se em personalidades individuais em vez de estratégias complexas. O principal deles era o CEO, a personificação mais visível do destino de uma empresa.

Ao mesmo tempo, os deveres do CEO começaram a mudar para aparições na mídia, reuniões de acionistas, conferências do setor, apresentações de lucros, briefings individuais e outras responsabilidades, que passaram a ser chamadas de “relações com investidores”. O líder empresarial ideal era aquele que chamava a atenção e inspirava a confiança de um número muito maior de partes envolvidas ou conectadas de uma forma ou de outra com a empresa. Aqueles que conseguiam cumprir essas tarefas eram remunerados com uma renda estratosférica por seu trabalho executivo. Khurana descreve o surgimento dos “CEOs terceirizados” e o processo pelo qual a busca por um novo CEO deixou de ser uma formalidade sem graça, ou seja, simplesmente a constatação da promoção iminente de um funcionário antigo que havia subido na escada corporativa, para se tornar um espetáculo de mídia transmitido com grande alarde.

Esse período também viu o renascimento da mitologia do fundador-empreendedor, que, não por coincidência, coincidiu com o boom da tecnologia, bem como um aumento significativo na popularidade dos modelos de financiamento de capital de risco e no número de empresas que buscavam acesso ao capital. Nesse ambiente, os magnatas da tecnologia precisavam proclamar ambições de mudança de paradigma para seu trabalho e buscavam formas criativas de narrá-las. Isso se refletiu no gênero literário peculiar que surgiu na época e que até hoje permanece nas listas de best-sellers: a biografia ou autobiografia empresarial evangelística.

Um elemento básico desse gênero, como aponta Khurana, é mostrar como o sujeito alcançou o sucesso apesar dos infortúnios dos primeiros anos de sua vida: a gagueira no caso de Jack Welch da Chrysler, a dislexia de John Chambers da Cisco. Hagiografias mais recentes seguiram essa tendência: o estudo de Walter Isaacson sobre Steve Jobs se concentra em sua adoção na infância e no diagnóstico de câncer de pâncreas, enquanto o retrato de Elon Musk feito por Ashlee Vance explica os efeitos do bullying e da ruptura do casamento neste “Tony Stark da vida real”.

O culto ao “inovador” pode ser mantido na década de 2020? Considere a apresentação de Steve Jobs na MacWorld 2007, uma cerimônia pomposa na qual a Apple anuncia seus próximos produtos. Em seu discurso principal, Jobs listou os três novos dispositivos a serem lançados naquele ano – “um iPod com controles de toque, um telefone e um dispositivo inovador de comunicação pela Internet” – antes de levantar o véu para revelar que essas eram, na verdade, as funções de um único dispositivo híbrido, o iPhone. Esse se tornou o modelo predominante de inovação tecnológica: o que Jason E. Smith chama de “canivete suíço do século XXI”, por meio do qual as capacidades e os recursos existentes são misturados, assimilados, adaptados e incorporados em ferramentas compostas multifuncionais. Os aparelhos de consumo das últimas décadas são quimeras engenhosas que podem recombinar e aprimorar superficialmente funções tecnológicas conhecidas. Na visão de Smith, isso indica a ausência sistêmica do tipo de inovação revolucionária que outrora transformou o cotidiano da população em geral – automóveis, ferrovias, eletrificação, telecomunicações, fotografia e cinematografia – e que trouxe ganhos significativos de produtividade para a economia capitalista como um todo.

Hoje, a reprodução dessa inovação por recombinação está ocorrendo em nível corporativo. A morte do laboratório de pesquisa interno, outrora sinônimo de instituições como o Bell Labs ou o Projeto Manhattan, sinaliza uma estratégia organizacional que Nancy Ettlinger chama de “paradigma da abertura”, por meio da qual as empresas reduzem ou eliminam o investimento interno em Pesquisa & Desenvolvimento, optando, em vez disso, por uma prática coordenada de inovação tericeirizada, caracterizada pelo fornecimento externo de pesquisa, tecnologia e habilidades. Assim como o iPhone, a empresa de tecnologia do século XXI torna-se uma ferramenta composta, uma coleção heterogênea de patentes e licenças proprietárias, de vendedores e fornecedores contratados, de divisões e equipes autônomas, de projetos e estruturas de código aberto, de integrações de terceiros e provedores de nuvem, de aplicativos e plataformas de navegador nativos e competências educacionais transferíveis reunidas em um pool corporativo transnacional. Em meio a esse fluxo, o CEO deve projetar uma imagem de unidade e integridade. Entretanto, quando o valor de mercado de uma empresa cai, o CEO é revelado como apenas mais uma unidade modular na panóplia de recursos.

 

¨      A quem o presidente do Banco Central diz sim? Por Aldemario Araujo Castro

Em entrevista ao Estadão/Broadcast, o ainda presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, afirmou: “A coisa mais importante, sentando na cadeira, é tentar olhar por cima, e não dentro do ruído. Há muitos ruídos de curto prazo: de economia, político. O mais importante é saber dizer não. Vão vir várias ideias e propostas que não são nem do interesse da sociedade e nem do Banco Central. Às vezes, é preciso dizer não para o Executivo. Às vezes, para o Legislativo. Que tenha a firmeza de dizer não, que tenha a capacidade de explicar a opinião e que passe transparência ao longo do tempo. Mas a capacidade de dizer não é crucial”.

São raros os reconhecimentos públicos acerca dos mais importantes e fortes poderes efetivamente existentes no âmbito das relações socioeconômicas no Brasil. A fala do atual, e ainda, presidente do Banco Central não poderia ser mais elucidativa. Ao relevar a quem o dirigente máximo do BC deve dizer não e deixar implícito a quem a mesma autoridade deve dizer sim, ficou claro o jogo de forças existente na sociedade brasileira.

Curiosamente, sugere-se que o presidente do BC diga não ao Executivo (leia-se, o presidente da República) e ao Legislativo (leia-se, o Congresso Nacional composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal). São justamente os dois poderes políticos titularizados por representantes eleitos pelo povo, detentor do poder político soberano (artigo primeiro, parágrafo único, da Constituição).

Esse tipo de fala também deixa claro qual o verdadeiro objetivo das teses, ideias, movimentos ou leis definidoras de autonomias e independências para o Banco Central. Persegue-se, evidentemente, um afastamento de definições que possam conter, por menor que seja, um conteúdo popular em confronto com os sagrados e intocáveis interesses do deus mercado.

O presidente do BC explicita, sem pudor, a quem dirige um “não”. Não fez o mesmo em relação a quem dirige um “sim”. Mas esse último é  facilmente identificado a partir da atuação da instituição que lidera. De forma sumária, recebe o “sim” do presidente do Banco Central do Brasil o mercado financeiro, seus componentes e os instrumentos de que se vale para transferir montanhas de recursos financeiros do conjunto da sociedade para uma minoria de privilegiados.

Os tais componentes do mercado financeiro envolvem, entre outros: a) bancos e caixas econômicas; b) seguradoras; c) corretoras de valores; d) bolsa de valores; e) bolsa de mercadorias e futuros; f) entidades de previdência; g) cooperativas de crédito; h) consultores e operadores individuais e i) especuladores (camuflados de investidores).
Os principais instrumentos operados ou administrados pelo Banco Central para viabilizar a referida transferência de riqueza no âmbito da sociedade brasileira são: a) a fixação da taxa básica de juros da economia; b) operações compromissadas; c) swap cambial e d) formação de reservas monetárias.

A fixação da taxa básica de juros (Selic), invariavelmente entre as maiores do mundo e sem razão econômica plausível, viabiliza uma movimentação anual de recursos financeiros da ordem de 1,5 trilhão de reais. São valores que saem das famílias, empresas e Poder Público em direção aos credores das dívidas públicas e privadas. É relativamente fácil perceber que essa massa de recursos é subtraída da dinamização das atividades econômicas na forma de produção e consumo de bens e serviços.

Esse último dado demonstra a razão fundamental para os brasileiros figurarem como a quarta nacionalidade com mais recursos alocados em paraísos fiscais. O montante em questão é estimado em cerca de 520 bilhões de dólares americanos.

Sem base legal conhecida, o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos (já considerado o compulsório) por meio das chamadas “operações compromissadas”. A seguinte ponderação foi realizada, em 2015, pelo ex-senador José Serra: “O custo das operações compromissadas – dívida sobre tutela do Banco Central – é outro exemplo: perto de um trilhão de reais rendendo 14,25% ao ano!”. Registre-se que nos últimos anos o trilhão já foi ultrapassado em muito.

Os abusos nas operações de swap cambial também foram destacados pelo ex-senador José Serra: “Tampouco pode se desconhecer a incidência de outros fatores como despesas de R$120 bilhões produzidas pela política de swaps cambiais – operações feitas para dar seguros contra a variação do dólar. (…) Limitar-se-á a liberdade excessiva de endividamento hoje existente, a qual permite ao Banco Central exercer políticas cujos custos fiscais são desproporcionais, como, por exemplo, a mencionada oferta prematura e astronômica de swaps cambiais ao setor privado, em um cenário que deveria ser de câmbio flutuante”.

A formação das reservas monetárias do Brasil é outro capítulo onde as censuras ao Banco Central são fortes e consistentes. “Ao acumular reservas cambiais, o país incorre em custos e benefícios; o acúmulo justifica-se sobretudo como um ‘seguro’, a ser usado em estado adverso. Neste texto, questiona-se o porquê de o Banco Central possuir nível de reservas tão acima do seu ‘ponto ótimo’ .

”Qual o problema de ter reservas em excesso? No caso do Brasil, em que os juros pagos pelo governo são atipicamente elevados em uma ampla comparação internacional, isso gera um custo fiscal de carregamento das reservas bastante ‘salgado’. Mas isso ainda é potencializado por algumas características idiossincráticas de nosso arcabouço de política monetária e fiscal”. “Mauro Benevides Filho [deputado federal, PDT/CE] afirmou que, segundo os parâmetros do próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), o volume de reservas internacionais poderia ser reduzido para quase US$ 200 bilhões. Isso reduziria os custos fiscais de manutenção dos títulos em dólar, mas ainda assim manteria a segurança jurídica para investidores e importadores. ‘Manter a reserva internacional além do limite que manda a teoria econômica é um custo fiscal que não tem precedente’.

Destaque-se que convivemos com duras limitações para as despesas de manutenção e ampliação dos direitos sociais, representadas, entre outros, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, pela Emenda Constitucional n. 95/2016 e pelo “Novo Arcabouço Fiscal”. Entretanto, a regulação da ação do Banco Central nos campos monetário e cambial é praticamente inexistente. Adotar leis de responsabilidade nessas searas deve ser considerado, pelos donos do poder econômico, como demonstração do mais elevado desequilíbrio mental.

E as ferramentas voltadas para a acumulação de riquezas nas mãos de poucos a partir dos recursos da grande maioria da sociedade se multiplicam. Nesse sentido, a Auditoria Cidadã da Dívida denuncia a “securitização dos créditos públicos” por intermédio do PLP n. 459, de 2017. “O sistema tem causado prejuízos como desvio do dinheiro de impostos, perda de controle da arrecadação, Parcerias Público Privadas que lesam os cofres públicos e outros mecanismos que beneficiam bancos”.
Esses componentes anteriormente destacados integram um rentismo extremamente perverso. A acumulação de riquezas (e fortunas) com base na geração de empregos e na produção de bens e serviços ficou no passado. Predomina,  atualmente, no Brasil e no mundo, o capital improdutivo. São engenhosamente criados e ancorados na institucionalidade jurídica vários mecanismos viabilizadores de um enorme fluxo de recursos financeiros da grande maioria da sociedade para uma meia dúzia de pessoas, sem relação direta com a dinamização da economia real.

Outro ponto que merece destaque na entrevista do presidente do BC é sua afirmação de que pretende “deixar a vida pública”. Assim como todos os anteriores presidentes do Banco Central, em alguns meses teremos notícia da instalação de Sua Excelência em um vistoso posto no mercado.

É preciso pontuar que todos os governos brasileiros, incluídos o atual (Lula 3) e o anterior (Bolsonaro), são competentes gestores desses mecanismos de produção de profundas desigualdades socioeconômicas. As diferenças entre eles são cosméticas ou secundárias. A tal polarização radical e ruidosa alimenta os incautos, incapazes, por várias razões, de compreender o contexto político e econômico mais profundo em que estão inseridos.

As peripécias do presidente do Banco Central e os poderosos e mesquinhos interesses por ele cuidados somente cederão espaço diante de uma vigorosa conscientização, organização e mobilização dos interesses populares, claramente distintos e distantes do mercado financeiro e do rentismo dominante. A inversão da perversa lógica socioeconômica prevalecente não cairá do céu ou será viabilizada em um passe de mágica de algum salvador da Pátria.

 

Fonte: Por Por Michael Eby, no El Salto- Tradução: Glauco Faria, para Outras Palavras

 

Nenhum comentário: