quarta-feira, 22 de maio de 2024

Êxodo climático: a ficção se tornou realidade

As mudanças climáticas permeiam a literatura saindo do plano da ficção para o cotidiano, segundo avalia o autor indiano Amitav Ghosh, que tem refletido sobre a cli-fi (ficção climática).

Estamos entrando na mais dura das realidades, onde um contingente cada vez maior de pessoas tem sido compelido a imigrar de sua terra natal. O mundo contabiliza mais de 114 milhões de refugiados, premidos entre guerras, fome, perseguição religiosa, étnica e eventos extremos cada vez mais frequentes.  

A guerra e a pobreza geram, historicamente, situações incontroláveis. Hoje existem no mundo mais de uma centena de conflitos armados localizados, somados a outras crises humanitárias causadas por questões étnicas, religiosas e por constantes perdas de meios de subsistência, provocadas por crescente desertificação, como ocorre no Sahel.

Os eventos extremos estão contribuindo cada vez mais para deslocamentos forçados. O Brasil sente na pele essa nova realidade. A Defesa Civil do Rio Grande do Sul contabilizou, até o dia 18 de maio, cerca de 2.304.432 pessoas atingidas, 540.188 desalojadas, com 77.202 em abrigos, 155 mortos, 94 desaparecidos e 806 feridos, mas os números crescem todos os dias. 

Para muitos dos atingidos isso não foi novidade. Segundo o escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 43 mil refugiados já viviam no Rio Grande do Sul, incluindo 29 mil venezuelanos que fugiam da pobreza e 12 mil haitianos, alguns em fuga do devastador terremoto de 2010. O Rio Grande do Sul está entre os três estados brasileiros a receber refugiados em um programa federal. Foi ali que cerca de 14 mil refugiados encontraram emprego formal.  

Se a ficção literária do clima acabou imersa em nossa realidade, a expressão artística tem retratado com frequência movimentos/deslocamentos humanos forçados.  

A exposição chamada Destino/Destino, de Carlo Vidoni em Friuli, Itália, enfoca o destino dos refugiados. Uma das obras é “Sou de onde vou”, que retrata a transformação da saudável curiosidade humana por novos espaços mesclada à imigração forçada. A humanidade comum, caracterizada por uma tensão entre o apego aos lugares onde crescemos e seu abandono compulsório, transformando em necessidade a normalidade saudável de curiosidade sobre o mundo que existe para além dos muros do lar.  

Outra exposição, “O Jardim do (in)visível” na Eslovênia, retrata a expectativa de asilo dos imigrantes ilegais na Europa; e a impressionante arte de “Petrificados”, na Cruz Vermelha Internacional de Genebra, captura o espírito da crise humanitária com figuras encapuçadas que representam a violação de direitos humanos que ocorre durante as guerras, provocando migrações forçadas. 

A tendência de deslocamentos humanos aumenta agora também impulsionada pelas mudanças climáticas. De 2008 a 2019, o clima provocou, em média, um êxodo de cerca de 21,5 milhões de pessoas por ano. Desde então o cenário continua a piorar de forma substancial, atestando os piores prognósticos já apontados pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC).   

Em 2022, mais de 70% dos refugiados fugiram de países altamente vulneráveis ao clima. “Cerca de 60% dos deslocados forçados e apátridas vivem em países frágeis e/ou afetados por conflitos, que estão entre os mais vulneráveis às mudanças climáticas e os menos prontos para se adaptar”, afirma a Acnur. 

Do Afeganistão à América Central somam-se secas, inundações e outros eventos climáticos extremos. “Atingem os menos preparados para se recuperar e se adaptar”, atesta a Acnur, que pede que os países trabalhem juntos para combater as mudanças climáticas e mitigar seu impacto em centenas de milhões de pessoas.  

O Pacto Global sobre Migração Segura, adotado pela ONU a partir de 2018, afirma que “os governos devem trabalhar para proteger os refugiados climáticos nos países de chegada, concebendo opções de recolocação e de visto previstas, se a adaptação e o regresso não forem possíveis nos seus países de origem”. 

O pacto soa como bom conselho para países membros da ONU, mas sem força de lei. Esse é o ponto sobre o qual o Brasil deve se debruçar. Importantíssima a inclusão dos refugiados ambientais, ou refugiados climáticos, no contexto de proteção jurídica dos direitos humanos.  

A migração transfronteiriça por motivos climáticos precisa contar com o “princípio da não repulsão”, ou seja, os refugiados ambientais que atravessaram fronteiras não podem ser deportados à força, contra sua vontade. A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, também da ONU, é de 1951 e protege pessoas perseguidas por motivos raciais, de religião e outros, mas não contempla refugiados ambientais. Apesar de avanços institucionais e pactos mais recentes, a assistência e o abrigo a refugiados ambientais, para ser efetivo, terão que ser devidamente contemplados no direito internacional. 

Um dos pontos essencias é avançar na obtenção de recursos financeiros para a adaptação climática e assistência às populações, com a necessária adoção do Fundo de Perdas e Danos, que continua sem lastro financeiro apesar da longa trajetória de discussões nas últimas cúpulas climáticas globais. 

“Essa assistência faz ainda mais sentido, e é mais urgente, ao considerarmos que os mais fragilizados e vulneráveis são crianças, mulheres e idosos, além de populações tradicionais e pessoas que vivem em extrema pobreza, os que mais sofrem as consequências e que têm menos resiliência aos impactos climáticos”, afirmou a advogada Fernanda Cavedon durante discussões preparatórias para a COP27, promovidas pelo Proam. “A situação é ainda profundamente injusta, pois são os mais pobres que muito pouco contribuem para o desequilíbrio do sistema climático global”, completa.  

Em abril deste ano a Acnur criou o Fundo de Resiliência Climática com o objetivo de financiar a ação direta contra o clima e alcançar refugiados, apátridas e deslocados, bem como suas comunidades de acolhimento. O Fundo busca contribuições internacionais para “expandir o alcance e o impacto das intervenções relacionadas ao clima, viabilizando projetos que construam resiliência, mitiguem riscos e promovam soluções sustentáveis em ambientes de deslocamento vulneráveis ao clima”.  

É preocupante o crescente sentimento anti-imigrantes das tendências de extrema direita na Europa e de outras partes do mundo. Isso traz urgência em realçar o imprescindível multilateralismo colaborativo das nações para enfrentar crises humanitárias. É inadmissível que a solidariedade possa ser fragilizada por nacionalismos xenófobos que, mergulhados no individualismo, não se dão conta dos processos que vitimam grande contingente de populações que lutam por sobrevivência. 

O cenário futuro é ainda mais preocupante. O acirramento das mudanças climáticas é atestado por uma atmosfera global que já atinge concentração de 428 ppm. de carbono, 20% acima do nível considerado seguro

Há ainda questões relacionadas à empatia. A sociedade humana precisa compreender a realidade das perdas socioeconômicas e interpessoais que assolam os refugiados, assim como as pressões pré e pós imigração a que são submetidos. É preciso avaliar o que significa, de forma traumática, perder teto, bens, parentes e amigos em tragédias como a que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. A relocação, mesmo que assistida, leva à necessidade de considerar saúde física e mental, reconstrução do tecido social e relações identitárias, pessoais e comunitárias.  

Só em 2021 foram 23,7 milhões de pessoas deslocadas no interior do seu próprio país em consequência de desastres. O Banco Mundial realizou um estudo em que projeta, até 2050, a incidência de migração interna, dentro de seus próprios países, de 216 milhões de pessoas, sendo que a África Subsaariana poderá receber até 86 milhões de migrantes climáticos internos; Leste Asiático e Pacífico, 49 milhões; Sul da Ásia, 40 milhões; Norte de África, 19 milhões; América Latina, 17 milhões; e Europa Oriental e Ásia Central, 5 milhões.

Algumas comunidades não têm condições ou meios de migrar e ficam presas dentro do contexto de risco, o que exige avanços em estratégias de adaptação climática. Com a amplificação dos impactos climáticos, a vulnerabilidade aumenta e as áreas de risco também. Nesse contexto ampliado, as comunidades expostas precisam ter capacidade de compreender sua vulnerabilidade e os riscos envolvidos. É preciso ainda empoderar essas populações vulneráveis, possibilitando que tenham voz para opinar sobre seu destino.  

Assim, é necessário debater e capacitar as populações que ocupam áreas de risco sobre cenários possíveis, refletindo sobre sua relocação, de forma que os mais vulneráveis possam debater e opinar, de forma prévia, sobre seu próprio destino. 

Um terço do mundo não conta com sistemas de alerta precoce, cuja criação é defendida de forma urgente pelas Nações Unidas. Segundo a ONU, será preciso, até 2027, prover o mundo com sistemas tecnológicos de previsão de eventos extremos, com capacidade de comunicação para promover alertas preventivos, de forma didática, adotando planos de contingência com meios operacionais efetivos e capacitando as comunidades para respostas eficientes.

Finalmente, é preciso que a sensibilização dos brasileiros em relação às inundações que atingiram tão duramente o Rio Grande do Sul leve o país a compreender a dimensão e o escopo do enfrentamento climático, conferindo à política de adaptação climática seu devido status de relevância e urgência. 

Será necessário instituir processo eficaz de governança climática, permeando todos os setores, corrigindo erros históricos e desestimulando as atuais tendências de ocupação desregrada dos territórios, e, de forma estrutural, descarbonizar a economia nacional para longe da dependência insustentável dos combustíveis fósseis. 

 

¨      Área urbanizada sob risco de enchentes e deslizamentos equivale a três cidades de São Paulo

 

O Brasil tem pelo menos 4.700 quilômetros quadrados de áreas urbanizadas sob risco de enchentes ou de deslizamentos se o nível do rio mais próximo atingir três metros. A constatação é da rede MapBiomas, que analisou dados do período de 1985 a 2022. Não há números mais recentes, mas a tendência segue aumento na ocupação, de acordo com os pesquisadores. Até 2022, o total de áreas em risco de desastre climático já era equivalente a três vezes a cidade de São Paulo. O que corresponde a uma área de 1,5 mil quilômetros.

O parâmetro de três metros utilizado como referência pelo MapBiomas leva em conta a área alagada na inundação registrada em 2023 na bacia do Taquari, no Rio Grande do Sul. Na recente tragédia no estado, provocada por fortes chuvas desde o final de abril, o nível do Rio Guaíba, em Porto Alegre, por exemplo, subiu 2 metros acima da cota de inundação, que é de 3 metros – e da cota de alerta, de 2,5 metros, atingindo mais de cinco metros. As inundações que se repetiram em quase todo o estado provocaram destruição e mortes.

Neste final de semana, a água nas calçadas de várias ruas da região central de Porto Alegre começou a secar. Houve uma queda do nível do lago depois de duas semanas de cheias. Mas, nesta segunda-feira (20), o nível do Guaíba voltou a subir, alcançando 4,32 metros às 7h15. Na noite de ontem (19), a medição era de 4,24 metros, às 22h45. O cálculo é da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), no Cais Mauá.

<><> Enchentes e a vulnerabilidade em favelas

O risco se repete pelo Brasil, onde desde 1985, as áreas urbanas no país triplicaram, mas a ocupação próxima a leitos de rio quadruplicou. “As cidades estão ficando mais densas, sem espaço. Mas se você olhar a curva, o cenário ainda é de expansão, não pararam de crescer as áreas de ocupação”, afirmou ao UOL o coordenador da equipe urbana do MapBiomas, Julio Pedrassoli.

Nas últimas quatro décadas, o país viu áreas serem ocupadas de forma desordenada, chegando a locais que deveriam ter construções proibidas por oferecer riscos a moradias. Hoje, São Paulo é o estado com mais áreas nessa condição, com uma área de 631 quilômetros em risco. A situação é mais grave nas favelas. Segundo o MapBiomas, a cada 100 hectares urbanizados nesses aglomerados, 17,3 ficam em áreas suscetíveis a inundações.

“As favelas, que são áreas mais vulneráveis, são empurradas para terrenos menos valiosos e, por sua vez, mais suscetíveis a riscos. Isso acontece em todo o Brasil, de Norte a Sul”, destaca Pedrassoli. Entre 1985 e 2022 também houve um aumento de 5,2 vezes na ocupação de áreas de declividade. No total, eram mais de 450 quilomêtros, há dois anos. Sendo que 154 quilômetros eram só em Minas Gerais.

<><> Ocupação de áreas em risco

Esse percentual foi definido porque a Lei 6766/79 diz que o parcelamento do solo não pode ser feito em terrenos com declividade superior a 30%, que são consideradas encostas. Conforme reportou a RBA, dados do governo federal também apontam que desastres climáticos como o que assola o Rio Grande do Sul e já provocou destruição e mortes em São Sebastião (SP) e em Petrópolis (RJ) podem se repetir em pelo menos outros 1.942 municípios brasileiros.

Isso significa que uma em cada três cidades está localizada em área de risco recorrente para desastre climático, como inundações, enchentes e deslizamentos de terra. Ou parte delas tem pontos vulneráveis, como Santa Maria (RS). Duas pessoas da mesma família morreram no início do mês, após um deslizamento no Morro do Cechella. Os moradores precisaram evacuar suas casas devido ao risco de novos deslizamentos devido a crateras abertas pela chuva no topo do morro.

 

¨      ‘Crise ambiental no RS mostra que não há barragens seguras’, afirma dirigente do MAB

 

Apesar da existência estimada de mais de 2 mil barragens no Paraná, há pouca informação disponível sobre as condições da maioria delas e sobre se oferecem risco à população no atual período de crise climática. Com as chuvas e o impacto ambiental no Rio Grande do Sul, a preocupação aumenta entre parlamentares e movimentos sociais.

O deputado estadual Requião Filho (PT) propôs recentemente um Plano de Barragens, projeto hoje parado na Assembleia Legislativa do Paraná. O parlamentar havia alertado para a urgência do projeto e para a criação de um Departamento de Mapeamento de Riscos Geológicos.

O Paraná possui 2.541 reservatórios/barragens com lâminas d’água superiores a 10.000 m2 ou 1 hectare (há). Há uma diversidade de formatos, uma vez que podem ser barragens de irrigação, do setor elétrico, açudes, entre outros.

Do ponto de vista do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), as enchentes e a tragédia humanitária no Rio Grande do Sul amplificam o alerta para os riscos destas construções.

“A enchente no Rio Grande do Sul mostra que não é verdadeiro o sentimento de que o setor elétrico é seguro e mineração sujeita a rupturas. No Rio Grande do Sul, a barragem do Rio das Antas rompeu, mostrando que nenhuma barragem é segura”, afirma Robson Formica, da direção estadual e nacional do movimento.

O dirigente afirma que é preciso enraizar o que hoje é um Plano de Segurança, no marco de um Plano Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), estabelecido pela Lei nº 12.334/2010, que tem o objetivo de garantir que padrões de segurança de barragens sejam seguidos, de forma a reduzir a possibilidade de acidentes e suas consequências.

Já o Plano de Segurança da Barragem é um instrumento do PNSB de implantação obrigatória pelo empreendedor, cujo objetivo é auxiliá-lo na gestão da segurança da barragem.

Entretanto, Formica pondera: “O plano de segurança das barragens não é o mesmo das populações atingidas. Pessoas têm que saber sobre o tipo de procedimento e o que fazer quando surge algum problema”, aponta.

Formica cita como exemplo de risco o ocorrido em 2014, na hidrelétrica de Salto Caxias, no município de Capitão Leônidas Marques (PR), quando a água quase transpôs e as comportas foram abertas de forma repentina, impactando 40 famílias. “Os atingidos sofrem não só com o rompimento, mas também com as operações”, afirma.

A Copel, antiga estatal de energia, hoje privatizada, possui 62 usinas próprias (18 hidrelétricas, 1 térmica e 43 eólicas) e detém participação em outros 14 empreendimentos de geração de energia (1 térmica, 8 hidrelétricas, 4 parques eólicos e 1 solar), totalizando uma capacidade instalada de 6.966,6 MW ajustados a sua participação. A reportagem buscou entrar em contato com a companhia, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para informações.

Já o Instituto Água e Terra (IAT) é o órgão responsável pela fiscalização da segurança de barragens de usos múltiplos (exceto para fins de aproveitamento hidrelétrico) no Paraná. O objetivo é proporcionar uma avaliação da segurança das barragens com redução de incidentes e acidentes. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa, mas até o fechamento da edição não recebeu resposta. O espaço segue aberto.

“Não tem nada estadual, então tudo que vier a acrescentar é importante, mas chamamos a atenção para a política nacional de barragens. Qual é a interface com a população atingida? Concretamente, as pessoas não sabem para onde ir se algo romper. Qual é o protocolo?”, pergunta Formica.

 

Fonte: Por Carlos Bocuhy, no Le Monde/RBA/Brasil de Fato

 

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