Êxodo climático:
a ficção se tornou realidade
As
mudanças climáticas permeiam a literatura saindo do plano da ficção para o
cotidiano, segundo avalia o autor indiano Amitav Ghosh, que tem refletido sobre a cli-fi (ficção
climática).
Estamos
entrando na mais dura das realidades, onde um contingente cada vez maior de
pessoas tem sido compelido a imigrar de sua terra natal. O mundo
contabiliza mais de 114 milhões de refugiados, premidos entre guerras, fome,
perseguição religiosa, étnica e eventos extremos cada vez mais
frequentes.
A
guerra e a pobreza geram, historicamente, situações incontroláveis. Hoje
existem no mundo mais de uma centena de conflitos armados localizados, somados
a outras crises humanitárias causadas por questões étnicas, religiosas e por
constantes perdas de meios de subsistência, provocadas por
crescente desertificação, como ocorre no Sahel.
Os
eventos extremos estão contribuindo cada vez mais para deslocamentos forçados.
O Brasil sente na pele essa nova realidade. A Defesa Civil do Rio Grande do Sul
contabilizou, até o dia 18 de maio, cerca de 2.304.432 pessoas atingidas, 540.188 desalojadas, com 77.202 em abrigos, 155 mortos, 94
desaparecidos e 806 feridos, mas os números crescem todos os dias.
Para
muitos dos atingidos isso não foi novidade. Segundo o escritório do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 43 mil refugiados já
viviam no Rio Grande do Sul, incluindo 29 mil venezuelanos que fugiam da
pobreza e 12 mil haitianos, alguns em fuga do devastador terremoto de 2010. O
Rio Grande do Sul está entre os três estados brasileiros a receber refugiados
em um programa federal. Foi ali que cerca de 14 mil refugiados encontraram emprego
formal.
Se
a ficção literária do clima acabou imersa em nossa realidade, a expressão
artística tem retratado com frequência movimentos/deslocamentos humanos
forçados.
A
exposição chamada Destino/Destino, de Carlo Vidoni em Friuli, Itália, enfoca o
destino dos refugiados. Uma das obras é “Sou de onde vou”, que retrata a
transformação da saudável curiosidade humana por novos espaços mesclada à
imigração forçada. A humanidade comum, caracterizada por uma tensão entre
o apego aos lugares onde crescemos e seu abandono compulsório, transformando em
necessidade a normalidade saudável de curiosidade sobre o mundo que existe para além dos muros do lar.
Outra
exposição, “O Jardim do (in)visível” na Eslovênia, retrata a expectativa de
asilo dos imigrantes ilegais na Europa; e a impressionante arte de
“Petrificados”, na Cruz Vermelha Internacional de Genebra, captura o espírito
da crise humanitária com figuras encapuçadas que representam a violação de
direitos humanos que ocorre durante as guerras, provocando migrações
forçadas.
A
tendência de deslocamentos humanos aumenta agora também impulsionada pelas
mudanças climáticas. De 2008 a 2019, o clima provocou, em média, um êxodo de
cerca de 21,5 milhões de pessoas por ano. Desde então o cenário continua a
piorar de forma substancial, atestando os piores prognósticos já apontados pelo
Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC).
Em
2022, mais de 70% dos refugiados fugiram de países altamente vulneráveis ao
clima. “Cerca de 60% dos deslocados forçados e apátridas vivem em países
frágeis e/ou afetados por conflitos, que estão entre os mais vulneráveis às
mudanças climáticas e os menos prontos para se adaptar”, afirma a Acnur.
Do
Afeganistão à América Central somam-se secas, inundações e outros eventos
climáticos extremos. “Atingem os menos preparados para se recuperar e se
adaptar”, atesta a Acnur, que pede que os países trabalhem juntos para combater as
mudanças climáticas e mitigar seu impacto em centenas de milhões de
pessoas.
O
Pacto Global sobre Migração Segura, adotado pela ONU a partir de 2018, afirma
que “os governos devem trabalhar para proteger os refugiados climáticos nos
países de chegada, concebendo opções de recolocação e de visto previstas, se a
adaptação e o regresso não forem possíveis nos seus países de origem”.
O
pacto soa como bom conselho para países membros da ONU, mas sem força de lei.
Esse é o ponto sobre o qual o Brasil deve se debruçar. Importantíssima a
inclusão dos refugiados ambientais, ou refugiados climáticos, no contexto de
proteção jurídica dos direitos humanos.
A
migração transfronteiriça por motivos climáticos precisa contar com o
“princípio da não repulsão”, ou seja, os refugiados ambientais que atravessaram
fronteiras não podem ser deportados à força, contra sua vontade. A Convenção
Relativa ao Estatuto dos Refugiados, também da ONU, é de 1951 e protege pessoas
perseguidas por motivos raciais, de religião e outros, mas não contempla
refugiados ambientais. Apesar de avanços institucionais e pactos mais recentes,
a assistência e o abrigo a refugiados ambientais, para ser efetivo, terão que
ser devidamente contemplados no direito internacional.
Um
dos pontos essencias é avançar na obtenção de recursos financeiros para a
adaptação climática e assistência às populações, com a necessária adoção do
Fundo de Perdas e Danos, que continua sem lastro financeiro apesar da longa
trajetória de discussões nas últimas cúpulas climáticas globais.
“Essa
assistência faz ainda mais sentido, e é mais urgente, ao considerarmos que
os mais fragilizados e vulneráveis são crianças, mulheres e idosos, além
de populações tradicionais e pessoas que vivem em extrema pobreza, os que mais
sofrem as consequências e que têm menos resiliência aos impactos climáticos”,
afirmou a advogada Fernanda Cavedon durante discussões preparatórias para a
COP27, promovidas pelo Proam. “A situação é ainda profundamente injusta, pois
são os mais pobres que muito pouco contribuem para o desequilíbrio do sistema
climático global”, completa.
Em
abril deste ano a Acnur criou o Fundo de Resiliência Climática com o objetivo de financiar a ação direta contra o
clima e alcançar refugiados, apátridas e deslocados, bem como suas comunidades
de acolhimento. O Fundo busca contribuições internacionais para “expandir o
alcance e o impacto das intervenções relacionadas ao clima, viabilizando
projetos que construam resiliência, mitiguem riscos e promovam soluções
sustentáveis em ambientes de deslocamento vulneráveis ao clima”.
É
preocupante o crescente sentimento anti-imigrantes das tendências de extrema
direita na Europa e de outras partes do mundo. Isso traz urgência em realçar o
imprescindível multilateralismo colaborativo das nações para enfrentar crises
humanitárias. É inadmissível que a solidariedade possa ser fragilizada por
nacionalismos xenófobos que, mergulhados no individualismo, não se dão conta
dos processos que vitimam grande contingente de populações que lutam por
sobrevivência.
O
cenário futuro é ainda mais preocupante. O acirramento das mudanças climáticas
é atestado por uma atmosfera global que já atinge concentração de 428 ppm. de
carbono, 20% acima do nível considerado seguro.
Há
ainda questões relacionadas à empatia. A sociedade humana precisa compreender a
realidade das perdas socioeconômicas e interpessoais que assolam os refugiados,
assim como as pressões pré e pós imigração a que são submetidos. É preciso
avaliar o que significa, de forma traumática, perder teto, bens, parentes e
amigos em tragédias como a que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. A
relocação, mesmo que assistida, leva à necessidade de considerar saúde física e mental, reconstrução do tecido social e relações identitárias,
pessoais e comunitárias.
Só
em 2021 foram 23,7 milhões de pessoas deslocadas no interior do seu
próprio país em consequência de desastres. O Banco Mundial realizou um estudo em que projeta, até 2050, a incidência de migração
interna, dentro de seus próprios países, de 216 milhões de pessoas, sendo
que a África Subsaariana poderá receber até 86 milhões de migrantes
climáticos internos; Leste Asiático e Pacífico, 49 milhões; Sul da Ásia, 40
milhões; Norte de África, 19 milhões; América Latina, 17 milhões; e Europa
Oriental e Ásia Central, 5 milhões.
Algumas
comunidades não têm condições ou meios de migrar e ficam presas dentro do
contexto de risco, o que exige avanços em estratégias de adaptação climática.
Com a amplificação dos impactos climáticos, a vulnerabilidade aumenta e as
áreas de risco também. Nesse contexto ampliado, as comunidades expostas
precisam ter capacidade de compreender sua vulnerabilidade e os riscos
envolvidos. É preciso ainda empoderar essas populações vulneráveis,
possibilitando que tenham voz para opinar sobre seu destino.
Assim,
é necessário debater e capacitar as populações que ocupam áreas de risco sobre
cenários possíveis, refletindo sobre sua relocação, de forma que os mais
vulneráveis possam debater e opinar, de forma prévia, sobre seu próprio
destino.
Um
terço do mundo não conta com sistemas de alerta precoce, cuja criação é
defendida de forma urgente pelas Nações Unidas. Segundo a ONU, será preciso, até 2027, prover o mundo com sistemas
tecnológicos de previsão de eventos extremos, com capacidade de comunicação
para promover alertas preventivos, de forma didática, adotando planos de
contingência com meios operacionais efetivos e capacitando as comunidades para
respostas eficientes.
Finalmente,
é preciso que a sensibilização dos brasileiros em relação às inundações que
atingiram tão duramente o Rio Grande do Sul leve o país a compreender a
dimensão e o escopo do enfrentamento climático, conferindo à política de
adaptação climática seu devido status de relevância e
urgência.
Será
necessário instituir processo eficaz de governança climática, permeando todos
os setores, corrigindo erros históricos e desestimulando as atuais tendências
de ocupação desregrada dos territórios, e, de forma estrutural, descarbonizar a
economia nacional para longe da dependência insustentável dos combustíveis
fósseis.
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Área urbanizada sob
risco de enchentes e deslizamentos equivale a três cidades de São Paulo
O
Brasil tem pelo menos 4.700 quilômetros quadrados de áreas urbanizadas sob
risco de enchentes ou de deslizamentos se o nível do rio mais próximo atingir
três metros. A constatação é da rede MapBiomas, que analisou dados do
período de 1985 a 2022. Não há números mais recentes, mas a tendência segue
aumento na ocupação, de acordo com os pesquisadores. Até 2022, o total de áreas
em risco de desastre climático já era equivalente a três vezes a cidade de São
Paulo. O que corresponde a uma área de 1,5 mil quilômetros.
O
parâmetro de três metros utilizado como referência pelo MapBiomas leva em conta
a área alagada na inundação registrada em 2023 na bacia do Taquari, no Rio
Grande do Sul. Na recente tragédia no estado, provocada por fortes chuvas desde
o final de abril, o nível do Rio Guaíba, em Porto Alegre, por exemplo, subiu 2
metros acima da cota de inundação, que é de 3 metros – e da cota de alerta, de
2,5 metros, atingindo mais de cinco metros. As inundações que se repetiram em
quase todo o estado provocaram destruição e mortes.
Neste
final de semana, a água nas calçadas de várias ruas da região central de Porto
Alegre começou a secar. Houve uma queda do nível do lago depois de duas semanas
de cheias. Mas, nesta segunda-feira (20), o nível do Guaíba voltou a subir,
alcançando 4,32 metros às 7h15. Na noite de ontem (19), a medição era
de 4,24 metros, às 22h45. O cálculo é da Agência Nacional de Águas e Saneamento
Básico (ANA), no Cais Mauá.
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Enchentes e a vulnerabilidade em favelas
O
risco se repete pelo Brasil, onde desde 1985, as áreas urbanas no país
triplicaram, mas a ocupação próxima a leitos de rio quadruplicou. “As cidades
estão ficando mais densas, sem espaço. Mas se você olhar a curva, o cenário
ainda é de expansão, não pararam de crescer as áreas de ocupação”, afirmou
ao UOL o coordenador da equipe urbana do MapBiomas, Julio
Pedrassoli.
Nas
últimas quatro décadas, o país viu áreas serem ocupadas de forma desordenada,
chegando a locais que deveriam ter construções proibidas por oferecer riscos a
moradias. Hoje, São Paulo é o estado com mais áreas nessa condição, com uma
área de 631 quilômetros em risco. A situação é mais grave nas favelas. Segundo
o MapBiomas, a cada 100 hectares urbanizados nesses aglomerados, 17,3 ficam em
áreas suscetíveis a inundações.
“As
favelas, que são áreas mais vulneráveis, são empurradas para terrenos menos
valiosos e, por sua vez, mais suscetíveis a riscos. Isso acontece em todo o
Brasil, de Norte a Sul”, destaca Pedrassoli. Entre 1985 e 2022 também houve um
aumento de 5,2 vezes na ocupação de áreas de declividade. No total, eram mais
de 450 quilomêtros, há dois anos. Sendo que 154 quilômetros eram só em Minas
Gerais.
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Ocupação de áreas em risco
Esse
percentual foi definido porque a Lei 6766/79 diz que o parcelamento do solo não
pode ser feito em terrenos com declividade superior a 30%, que são consideradas
encostas. Conforme reportou a RBA, dados do governo federal também apontam
que desastres climáticos como o que assola o Rio Grande do Sul e já provocou
destruição e mortes em São Sebastião (SP) e em Petrópolis (RJ) podem se repetir
em pelo menos outros 1.942 municípios brasileiros.
Isso
significa que uma em cada três cidades está localizada em área de risco
recorrente para desastre climático, como inundações, enchentes e deslizamentos
de terra. Ou parte delas tem pontos vulneráveis, como Santa Maria (RS). Duas
pessoas da mesma família morreram no início do mês, após um deslizamento no
Morro do Cechella. Os moradores precisaram evacuar suas casas devido ao risco
de novos deslizamentos devido a crateras abertas pela chuva no topo do morro.
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‘Crise ambiental no RS
mostra que não há barragens seguras’, afirma dirigente do MAB
Apesar
da existência estimada de mais de 2 mil barragens no Paraná, há pouca
informação disponível sobre as condições da maioria delas e sobre se oferecem
risco à população no atual período de crise climática. Com as chuvas e o
impacto ambiental no Rio Grande do Sul, a preocupação aumenta entre
parlamentares e movimentos sociais.
O
deputado estadual Requião Filho (PT) propôs recentemente um Plano de Barragens,
projeto hoje parado na Assembleia Legislativa do Paraná. O parlamentar havia
alertado para a urgência do projeto e para a criação de um Departamento de
Mapeamento de Riscos Geológicos.
O
Paraná possui 2.541 reservatórios/barragens com lâminas d’água superiores a
10.000 m2 ou 1 hectare (há). Há uma diversidade de formatos, uma vez que podem
ser barragens de irrigação, do setor elétrico, açudes, entre outros.
Do
ponto de vista do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), as enchentes e a tragédia humanitária no Rio Grande
do Sul amplificam o alerta para os riscos destas construções.
“A
enchente no Rio Grande do Sul mostra que não é verdadeiro o sentimento de que o
setor elétrico é seguro e mineração sujeita a rupturas. No Rio Grande do Sul, a
barragem do Rio das Antas rompeu, mostrando que nenhuma barragem é segura”,
afirma Robson Formica, da direção estadual e nacional do movimento.
O
dirigente afirma que é preciso enraizar o que hoje é um Plano de Segurança, no
marco de um Plano Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), estabelecido pela Lei nº 12.334/2010, que tem o
objetivo de garantir que padrões de segurança de barragens sejam seguidos, de
forma a reduzir a possibilidade de acidentes e suas consequências.
Já
o Plano de Segurança da Barragem é um instrumento do PNSB de implantação
obrigatória pelo empreendedor, cujo objetivo é auxiliá-lo na gestão da
segurança da barragem.
Entretanto,
Formica pondera: “O plano de segurança das barragens não é o mesmo das
populações atingidas. Pessoas têm que saber sobre o tipo de procedimento e o
que fazer quando surge algum problema”, aponta.
Formica
cita como exemplo de risco o ocorrido em 2014, na hidrelétrica de Salto Caxias,
no município de Capitão Leônidas Marques (PR), quando a água quase transpôs e
as comportas foram abertas de forma repentina, impactando 40 famílias. “Os
atingidos sofrem não só com o rompimento, mas também com as operações”, afirma.
A
Copel, antiga estatal de energia, hoje privatizada, possui 62 usinas próprias
(18 hidrelétricas, 1 térmica e 43 eólicas) e detém participação em outros 14
empreendimentos de geração de energia (1 térmica, 8 hidrelétricas, 4 parques
eólicos e 1 solar), totalizando uma capacidade instalada de 6.966,6 MW
ajustados a sua participação. A reportagem buscou entrar em contato com a
companhia, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para informações.
Já
o Instituto Água e Terra (IAT) é o órgão responsável pela fiscalização da
segurança de barragens de usos múltiplos (exceto para fins de aproveitamento
hidrelétrico) no Paraná. O objetivo é proporcionar uma avaliação da segurança
das barragens com redução de incidentes e acidentes. A reportagem entrou em
contato com a assessoria de imprensa, mas até o fechamento da edição não
recebeu resposta. O espaço segue aberto.
“Não
tem nada estadual, então tudo que vier a acrescentar é importante, mas chamamos
a atenção para a política nacional de barragens. Qual é a interface com a
população atingida? Concretamente, as pessoas não sabem para onde ir se algo
romper. Qual é o protocolo?”, pergunta Formica.
Fonte:
Por Carlos Bocuhy, no Le Monde/RBA/Brasil de Fato
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