Crise climática: como serão as próximas
zoonoses?
Existe uma citação de
Rudolf Virchow, o médico, cientista e político do final do século XIX também
considerado o “pai” da patologia moderna, que aparece constantemente em
trabalhos científicos e relatórios sobre a relação entre a saúde humana e a
conservação da biodiversidade: “Entre a medicina animal e a humana não há linha
divisória — e nem deveria haver.”
Embora estimativas
apontem para o fato de que seis em cada dez doenças infecciosas que assolam a
espécie humana tenham origem em populações de outros animais, a atenção dada a
este conjunto de condições de saúde – chamadas coletivamente de zoonoses – ainda
não é suficiente. Uma vez que zoonoses são causadas por agentes biológicos como
bactérias, fungos, protozoários, vírus e helmintos que circulam em animais
silvestres (e alguns domésticos), apenas tendo expandido sua “lista de
interesses” para a nossa espécie, entender onde e como estes patógenos
representam um maior risco à saúde é extremamente estratégico. Afinal de
contas, três das pandemias mais famosas foram causadas por patógenos que
anteriormente circulavam entre hospedeiros animais: a peste bubônica, a
pandemia de gripe no começo do século XX, também chamada de Gripe Espanhola e a
pandemia recente de COVID-19.
No contexto
brasileiro, lidamos há séculos com doenças tropicais de origem zoonótica como a
malária, febre amarela, dengue, doença de Chagas e leishmaniose. Mais
recentemente, tem-se observado um aumento no número de casos do vírus nativo
oropouche, causador de uma doença transmitida por mosquitos como a dengue — e
com sintomas parecidos. A oropouche circula naturalmente em primatas e
bichos-preguiça, mas também tem a capacidade de ser transmitida para pessoas.
A ausência de uma
linha divisória entre a saúde animal e a humana torna-se evidente quando se
encara a questão das zoonoses. Mais do que evidente, torna-se urgente quando
encaramos o fato de que tanto a destruição de áreas naturais quanto as
consequências climáticas desta destruição, como as recentes enchentes que
assolam o Rio Grande do Sul, aumentam o risco de contágio de seres humanos por
uma ampla gama de zoonoses.
Sobre as consequências
de enchentes como essas para a disseminação de zoonoses, sabe-se que é provável
um aumento nos casos de doenças transmitidas pela água, como a leptospirose e a
hepatite A, assim como doenças transmitidas por mosquitos como dengue e
chikungunya. Estes são os riscos geralmente associados a inundações em meio
urbano de maneira geral. Mas a história do estudo de zoonoses no meio silvestre
no Brasil é uma história de preocupantes lacunas de conhecimento, e mesmo com
equipes de cientistas que se voltam a estudar aspectos diversos dessas doenças,
os riscos específicos de cada localidade ainda são um tópico com muitos pontos
de interrogação.
“Muitos artigos e
relatórios internacionais citam que o Brasil tem um potencial zoonótico grande,
e inicialmente a gente tinha o objetivo de entender o que já se sabe sobre a
circulação de patógenos em animais silvestres no país”, conta Gabriella Tabet Cruz,
pesquisadora associada do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos
Silvestres Reservatórios do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Gabriella foi
uma das pesquisadoras centrais no processo de elaboração de um banco de dados
que reúne informações espaciais sobre a ocorrência de patógenos de potencial
zoonótico no Brasil. Ela completa: “E o que a gente percebeu é que as
amostragens não eram nada representativas. Nós avaliamos três bases de dados
principais, com dados de genoma e de ocorrência de patógenos. Algumas tinham
informações tanto de humanos quanto de animais, e outras eram focadas apenas em
mamíferos silvestres. E de toda a biodiversidade de mamíferos silvestres do
Brasil, nós encontramos dados sobre zoonoses relativas somente a 343 espécies,
sendo que temos mais de 700 espécies catalogadas”.
• Estudos concentrados
E a
não-representatividade não para por aí: na mais completa destas bases de dados
analisadas, a Nucleotide, mantida pelos Institutos Nacionais de Saúde dos
Estados Unidos, apenas 2% de todas as sequências genéticas provenientes do
Brasil correspondem a amostras de mamíferos não-humanos. Cruz conta ainda que a
maior parte dos dados não estavam referenciados espacialmente, o que dificulta
a avaliação de quais áreas estão em maior risco de contágio, assim como as
tomadas de decisão. Os dados estavam marcados apenas como “Brasil” o que, para
um país de dimensão subcontinental, não diz muito sobre quais populações de
cada mamífero silvestre estão com maior circulação de um determinado patógeno.
O cenário de tão pouca
informação sobre zoonoses justamente em regiões do mundo que têm grande risco
de contágio – por fatores climáticos, de biodiversidade, e também por condições
socioeconômicas desiguais, destruição de áreas naturais e uma infraestrutura de
saúde também marcada por desigualdades de acesso – se insere em um contexto
geral de financiamento à pesquisa e à vigilância de zoonoses. Um artigo de
revisão de 2022 compilando a produção científica sobre zoonoses e mudanças
climáticas em todo o mundo, demonstrou que os países que mais produzem estudos
sobre o assunto são países do norte global, como os Estados Unidos, Reino
Unido, Austrália, Canadá e Alemanha. O Brasil sequer figura na lista dos dez
maiores produtores de conhecimento acerca de seu potencial zoonótico que, como
lembrou Gabriella Cruz, é reconhecido internacionalmente.
A pesquisadora Gisele
Winck, também do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos
Silvestres Reservatórios do IOC/Fiocruz, trabalha, junto a colaboradoras como a
própria Gabriella Cruz, em reduzir estas lacunas de conhecimento. “O
financiamento à pesquisa de maneira geral é meio errático no Brasil. De governo
para governo, as políticas de fomento mudam muito. E essa falta de constância
de financiamento de pesquisa é uma questão-chave que explica essas lacunas de
conhecimento e de pesquisa. E não só nesse assunto, em qualquer assunto”, conta
Winck. “Nós somos um país extremamente diverso, mas nós não temos um programa
de pesquisa estruturado de uma forma pensada para abarcar essa diversidade. E
nessa questão da biodiversidade, e de entender também como os riscos à saúde
humana se interligam com essa biodiversidade, nós acabamos tendo uma escassez
grande de dados. Nós aqui trabalhamos em um grupo de pesquisa que tenta
entender essas relações e construir modelos que ajudem a prever os riscos para
poder agir estrategicamente, mas modelos dependem de dados primários sobre onde
estão os patógenos e seus hospedeiros, que nem sempre estão disponíveis.”
Com tantas lacunas de
informação, entender como cada região do Brasil difere das outras em termos de
riscos de contágio e espalhamento de zoonoses é um desafio para as
pesquisadoras. Mas um desafio necessário frente aos riscos de surgimento de
novas epidemias, ou mesmo pandemias, com origem em animais. O grupo de pesquisa
que Gisele compõe desenvolveu recentemente um modelo para prever quais são os
fatores que levam a um maior risco de zoonoses nas 27 Unidades Federativas
brasileiras. Segundo este modelo, aproximadamente 80% do risco de zoonoses em
cada estado pode ser explicado por cinco fatores: perda de vegetação, riqueza
de mamíferos, isolamento dos municípios, pouca vegetação urbana e alta
cobertura vegetal natural. Em resumo: localidades com muitas áreas naturais e
alta riqueza de mamíferos silvestres, que também estão em processo de
degradação, veem um maior contato com estes animais. Consequentemente, há um
maior risco de que patógenos que circulam entre populações silvestres consigam
causar infecções eventuais e se adaptar a animais domésticos e à espécie
humana.
Para desenvolver e
refinar modelos como este e entender quais patógenos específicos estão
circulando em populações naturais em cada estado, é importante que haja uma
vigilância abrangente em áreas naturais ao longo de todo o território nacional.
E é aí que tropeçamos em mais uma lacuna: “Neste momento, a gente não tem
nenhum órgão responsável diretamente pela saúde de animais silvestres”, conta a
Dra. Gisele Winck. E explica:
“O Ministério da
Agricultura e Pecuária monitora a questão dos animais de criação, mas eles só
olham para doenças quando elas acometem esses animais. Mesmo que eles
identifiquem que a fonte do surto é silvestre, não podem legalmente fazer nada.
O Ministério do Meio Ambiente também só pode atuar no manejo de surtos de
doenças em populações de animais que estão em perigo de extinção segundo as
listas de classificação de risco, ou abrangidas por algum Plano de Ação
Nacional (PAN). Fora isso, o MMA só pode lidar com surtos de zoonoses quando
eles ocorrem dentro de alguma Unidade de Conservação.”
A pesquisadora comenta
que, até muito recentemente, o Ministério da Saúde também olhava para a questão
das zoonoses apenas quando havia um contágio em humanos, ou em casos em que o
risco deste contágio era detectado. Mais recentemente, a Coordenação Geral de
Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial tem reforçado a
importância de monitorar animais relevantes para a saúde pública, o que inclui
o monitoramento de “vetor, hospedeiro, reservatório, portador, amplificador ou
suspeito para alguma zoonose de relevância para a saúde pública”. Isto resolve
parte do problema, mas não lida com zoonoses ainda desconhecidas. E, mesmo com
este esforço, o país ainda está longe de ter uma vigilância epidemiológica em
populações silvestres que permita entender e monitorar os riscos específicos de
cada localidade, ou monitorar patógenos mais raros sobre os quais se conhece
pouco.
“Um exemplo que eu
gosto, até por ser menos falado na mídia, é o do vírus Sabiá, que surgiu de
repente na década de 1990”, conta Winck. “Foram poucos casos, mas esse vírus
tem uma letalidade absurdamente alta. Ele chegou a ser isolado e sequenciado à
época, e logo depois ele sumiu. Mas alguns casos voltaram a aparecer nos
últimos anos, e a causa só foi confirmada como sendo o vírus Sabiá depois que
as pessoas já tinham vindo a óbito.”
Uma boa notícia que as
pesquisadoras trazem é a de que no dia 25 de abril saiu o decreto que cria o
Comitê Técnico Interinstitucional de Uma Só Saúde. O conceito de “uma só saúde”
é um novo nome proposto pelo Governo Federal para a perspectiva de “saúde única”,
que entende saúde em um contexto amplo que inclui aspectos socioambientais, a
conservação da biodiversidade, as questões do clima e a desigualdade
socioeconômica. “Com isso, temos representantes de quase todos os ministérios,
além da Fiocruz, alguns conselhos profissionais, o ICMBio, o IBAMA… Está todo
mundo ali. E isso é um grande passo que o Brasil dá em direção a essa mudança
de políticas públicas no que diz respeito a olhar para a saúde silvestre no
contexto de zoonoses”, explica Winck.
Sobre a crise atual no
RS, Gisele, que é natural de Santa Maria, comenta algo que remete à ideia de
Virchow sobre uma indissociabilidade entre a saúde humana e a de outros
animais: “O que eu posso pensar é que esses alagamentos drásticos não afetam só
a gente. Assim como nós perdemos territórios, as populações naturais também. E
uma coisa que a gente precisa pensar é no quanto estes eventos extremos podem
favorecer o contato entre nós e os animais silvestres. Porque esses animais
também vão atrás de áreas secas para se refugiar, e nós não sabemos quais podem
ser essas áreas, ou se elas podem ser as mesmas cidades onde as pessoas estão
se refugiando”. E completa, com uma sinceridade importante e de implicações
preocupantes: “Eu não tenho nem ideia. Mas acho que é algo muito importante de
se estudar para o futuro.”
Fonte: Por Bruno
Moraes, em O Eco
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