Condomínio
de luxo avança contra quilombo em São Roque (SP)
São
Roque, no interior de São Paulo, é conhecida como a terra do vinho, contando
com tradicionais vinícolas e um roteiro onde turistas podem degustar as bebidas
regionais. Cerca de 25 km do centro da cidade, longe dos pontos turísticos,
está o bairro do Carmo, que abriga o Quilombo Revolucionário do Carmo.
Atualmente,
o quilombo ocupa uma pequena faixa na beira de uma estrada de terra que leva às
outras casas do bairro. Na outra ponta da estrada está a portaria de um algoz
comum entre os quilombolas e o bairro do Carmo: um condomínio de luxo.
A
área ocupada por aproximadamente 700 quilombolas é reconhecida como
remanescente de quilombo pela Fundação Palmares desde 2000 e está em processo
de titulação. Ela não engloba o bairro do Carmo como um todo, que, embora seja
reivindicado como território ancestral, ficou de fora do Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID), uma etapa obrigatória do processo de
titulação de territórios quilombolas, feito pelo Incra.
Recentemente,
o condomínio de luxo, chamado de Patrimônio do Carmo, ergueu um muro nos
limites do território que está em processo de titulação. O muro avança pelo
terreno de algumas casas dos quilombolas, invadindo parte do território que
eles reivindicam como tradicional. Segundo os moradores do quilombo, os
responsáveis pelo empreendimento disseram que o muro seria a solução para
aumentar a segurança das mansões. Os quilombolas dizem que os empreendedores
veem o bairro do Carmo como “um lugar perigoso” e dizem “que os moradores
teriam roubado uma das casas de luxo”.
Espremidos
entre uma linha de trem que corta a região e o muro, os moradores do quilombo
se dizem humilhados. Eles veem a construção como um espaço de segregação da
área quilombola e do próprio bairro do Carmo, que foi construído em torno de
uma igreja de Nossa Senhora do Carmo e das casas de descendentes de
escravizados.
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Por que isso importa?
• Conflitos
territoriais marcam os processos de demarcação de áreas de remanescentes de
quilombo no Brasil, embora a Constituição garanta o direito dessas populações
às terras ocupadas por seus antepassados
• A
reportagem mostra como um muro, construído por um condomínio de luxo nos
limites de um território tradicional em processo de titulação, se tornou um
símbolo da segregação e da violência contra um quilombo, que resiste à
especulação imobiliária no estado de São Paulo
A
construção do muro foi paralisada há alguns meses depois da pressão dos
moradores, mas ficou ali, pela metade, perpetuando toda a degradação que ela já
tinha causado. O paredão se encontra no final da rua do Cruzeiro, que tem esse
nome por conta de um crucifixo colocado por um padre ali, há mais de um século.
Ele toma toda a viela Augusto Pedro Platão, nome do pai de Israel Platão, 59
anos, que sempre morou no Carmo. Ele se diz indignado porque o muro foi
construído colado à sua casa.
“O
bairro do Carmo cresceu na parte de população, só que não aumentou na área.
Agora, os bacanas querem encurralar a gente cada vez mais com esse muro”, diz.
Andando pela viela que carrega o nome de seu pai, Israel conta que todas as
casas ali são de parentes dele, incluindo um quintal de sua falecida avó. Todos
foram afetados de alguma forma pelo muro do condomínio, seja por ter tapado a
luz do sol ou até mesmo mudado a forma de ir e vir.
A
construção passa por baixo da caixa-d’água de Israel e acabou com um pomar que
ele cultivava, onde seus netos costumavam brincar. “Eles [os construtores do
muro] arrancaram mais de 20 pés de banana, pé de mexerica, pé de laranja,
destruíram toda a plantação. É uma coisa que deixa a gente muito triste. Meu
neto é nascido aqui, sempre gostou de brincar aqui em cima e não pode mais
porque agora tem essas lanças perigosas de ferragem. A minha netinha passou
ali, quase se machucou.”
• Quilombolas
foram contratados para construir o muro
Alguns
dos pedreiros que foram contratados para construir o muro na fronteira do
território em titulação são quilombolas, de acordo com os moradores ouvidos
pela reportagem. “A vida da gente é trabalhar aí dentro”, diz Givaldo Correia,
56 anos, morador do Carmo. Ele faz reformas e constrói casas no condomínio há
quase 36 anos, mas não participou da construção do muro. “Os outros fizeram
porque foram obrigados. Se você falar que não vai fazer, o cara te manda
embora”, comenta.
Israel
também não chegou a trabalhar na obra, mas sempre prestou serviços no
condomínio Patrimônio do Carmo, como pedreiro. Semanas após a reportagem ter
visitado o local, os moradores do quilombo mandaram vídeos de um poste que está
sendo colocado junto do muro. Segundo Israel, a estrutura está sendo feita para
instalação de câmeras de segurança, que ficarão voltadas para o quilombo. Para
Givaldo, o muro é uma forma de tachá-los de ladrões. “Tudo que acontece aí
dentro jogam [a culpa] aqui. Então quer dizer que todo mundo aqui é ladrão?”,
questiona.
A
Agência Pública entrou em contato com a diretoria do condomínio Patrimônio do
Carmo, mas não obteve resposta até a publicação.
• Do
outro lado do muro
Enquanto
Israel lamentava a perda de luz do sol e do pomar que cultivava do lado da sua
casa, do outro lado do muro a realidade era outra. Fotos tiradas por drone pela
reportagem da Pública mostram casas de alto padrão do condomínio Patrimônio do
Carmo, com vastos quintais, todos com piscina, e ruas que lembram os subúrbios
dos Estados Unidos.
Uma
breve visita no site do empreendimento mostra que atualmente existem 34 imóveis
à venda no lugar, que custam entre mais de R$ 1 milhão até R$ 2,8 milhões. A
única casa disponível para aluguel tem 407 metros quadrados (m²), cinco
quartos, duas suítes e seis banheiros. O custo mensal é de R$ 8,2 mil. Um mapa
ilustrativo explica que o condomínio de luxo tem área total de aproximadamente
10 mil m².
Quando
o empreendimento chegou na região, na década de 1970, a vida dos moradores do
bairro do Carmo começou a girar em torno do condomínio. A maioria deles
trabalha por lá, em serviços como jardinagem, limpeza e reformas.
Isaque
da Cruz, coordenador da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos
(Conaq) e líder da associação dos quilombolas do Carmo, diz que os terrenos
ocupados pelo condomínio já eram habitados por moradores do Carmo e que a área,
embora ainda não tenha sido delimitada como território quilombola, é
reivindicada como território ancestral. Segundo ele, o empresário Gilberto
Daccache seria o maior loteador de terras para uso do condomínio. Além do
condomínio, Isaque diz que Daccache também é dono de grande parte das casas e
terrenos do próprio bairro do Carmo.
“Ele
conseguiu muitas terras na região se aproveitando da falta de instrução dos
moradores e oferecendo acordos que não os favoreciam”, explica. Dona Maria José
tem 73 anos e é uma das moradoras mais antigas da região, tendo convivido com
pessoas que foram escravizadas. Ela lembra que, antes da chegada do condomínio,
algumas pessoas da comunidade tinham casas no lugar ocupado hoje pelas mansões.
“Enganaram as pessoas, fizeram elas acharem que iam ganhar muita coisa. Foram
pegando os terrenos e crescendo”, diz.
Em
2012, os quilombolas formalizaram a Associação da Comunidade Remanescente de
Quilombo Nossa Senhora do Carmo. Em 2017, eles ocuparam a área em que estão
hoje, às margens da estrada Aguassaí, em um processo que chamaram de “retomada
do território ancestral”. Na época, a prefeitura de São Roque entrou com um
processo de reintegração de posse contra os quilombolas, que ocuparam um
terreno às margens da estrada.
A
decisão diz que a “área onde foi instalada a ocupação faz parte do processo
histórico de expropriação que reduziu o território ocupado e utilizado pelos
remanescentes de quilombo do Carmo, de seus mais de 2.000 hectares originais,
para os atuais 14 hectares compreendidos pela Vila do Carmo”. Também afirma que
a sobrevivência da Comunidade Remanescente de Quilombo de Nossa Senhora do
Carmo “está ameaçada por grandes empreendimentos e especulação imobiliária” e
conclui que os elementos não eram suficientes para que fosse feita a
reintegração.
Em
2018, o quilombo registrou uma manifestação na Procuradoria da República em
Osasco (SP) para que o Ministério Público Federal (MPF) fizesse uma
representação contra a Associação Residencial Ecológica Patrimônio do Carmo
(AREPC), que administra o condomínio, por colocarem “cancelas em áreas públicas
de passagem por territórios tradicionais dos quilombolas”.
A
passagem por dentro do condomínio dava acesso a uma rodovia importante da
região. As cancelas, além do muro, impedem a livre circulação dos quilombolas
pelo território. Quem chega ao condomínio de luxo tem que apresentar documentos
para poder entrar e é escoltado por uma viatura durante a travessia pela área.
O procedimento do MPF foi arquivado em 2020 a pedido dos próprios quilombolas,
que preferiram tentar o diálogo com o condomínio para resolver a situação, mas
as cancelas nunca foram retiradas.
Gilvaldo
Correia, morador do quilombo, diz que teve o carro revistado pelos seguranças
do condomínio quando estava saindo do trabalho. “Eu perguntei: ‘Vocês são
polícia? Vocês têm autoridade para fazer isso? Eu trabalho aqui, nunca arrumei
confusão com ninguém, nunca roubei um prego aqui dentro’. Eles falaram que era
ordem”, conta.
A
Pública entrou em contato com o Patrimônio do Carmo e com a Impacto, empresa
responsável pela segurança do lugar, para saber sobre os procedimentos usados
pelos agentes. Marcos Garroti, atual diretor de segurança da AREPC, disse
apenas que a associação de moradores “conta com espaços públicos e privados,
pelos quais a Associação é responsável pela sua manutenção, limpeza,
preservação e segurança”. O diretor informou que “a associação tem a
prerrogativa concedida pela prefeitura de acesso controlado, desta feita, todas
as pessoas que acessam o residencial, como pessoas que farão travessia,
visitantes dos associados, e até mesmo os associados, passam por este
controle”. Ele também diz que “não existe a necessidade de escolta e o que
ocorre é o acompanhamento de pessoas que farão a travessia e que as rotinas de
segurança são definidas em conjunto pelas empresas de segurança e Diretoria
Executiva” do empreendimento.
Perguntado
sobre as revistas em carros, o diretor respondeu que isto ocorreu “há mais de
cinco anos”, por outra empresa contratada para segurança, que não atua mais no
condomínio.
• Histórias
e contradições do Carmo
Atualmente,
o processo de titulação do quilombo do Carmo está na fase de finalização do
RTID, com conversas com os moradores e a definição dos limites da área que será
titulada. Hoje o bairro do Carmo tem cerca de 16 hectares, a área pleiteada
pelo quilombo no Incra tem 357 hectares. Ela é dividida em dez glebas. O
condomínio de luxo não está na parte que os quilombolas estão pleiteando, mas o
muro fica nos limites de uma das áreas em processo de titulação.
Os
moradores do bairro do Carmo e as pessoas que hoje formam o Quilombo
Revolucionário do Carmo são descendentes dos escravizados que pertenciam à
Ordem de Nossa Senhora do Carmo, da Província Carmelita Fluminense (PCF), que
possuía uma terra de 2.175 alqueires, cerca de 5.263 hectares, parte por
concessão de sesmaria do governo português e parte por dote, segundo
informações do Mapa dos Conflitos – Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, que
busca listar territórios onde os riscos ambientais afetam as populações e
tornar públicas vozes que lutam por justiça ambiental.
As
pessoas que eram escravizadas eram chamadas de “escravos da santa”, uma forma
de tentar desvincular o nome da igreja do processo de escravização. A ordem
arrendava seus escravizados para fazendeiros como uma forma de arrecadar
dinheiro para se manter.
Segundo
Isaque, a história de como os escravizados do Carmo ganharam direito sobre as
terras começa com uma dívida da ordem. “Já tinha acabado a escravidão no Brasil
inteiro, mas aqui não. Continuaram escravizando e se favorecendo durante 15
anos, ganhando dinheiro com isso. A Coroa portuguesa descobriu e falou que não
ia mais comprar nada deles e que eles deviam um tanto de imposto”, explica.
Como
a Igreja não tinha como pagar os impostos, foi feito um acordo com os
escravizados: eles iriam trabalhar durante 20 anos em Bananal, cidade paulista
mais próxima do estado do Rio de Janeiro, com a promessa de que, quando
voltassem, as terras da fazenda Icaraí e da fazenda Sorocamirim seriam suas.
Juntas, as duas fazendas tinham uma extensão de 5.265 hectares.
De
acordo com a associação quilombola, em 1912 a PCF dividiu as terras em lote
para venda, sem considerar os direitos dos negros libertos, com a intenção de
expulsá-los do local. Os ex-escravizados resistiram e reivindicaram as terras
que eram suas por direito. Em 1919, um acordo judicial foi feito entre as duas
partes, as terras dos ex-escravizados foram reduzidas à quarta parte do
terreno, ficando com 384,5 alqueires, cerca de 930,4 hectares.
Com
a redução das terras, muitas pessoas migraram para cidades vizinhas para tentar
uma vida melhor. Nos anos seguintes, muitas terras foram perdidas em acordos
sem fundamentos, com pessoas se aproveitando da falta de instrução dos
moradores da região.
Desde
que voltaram ao seu território tradicional, os quilombolas sofrem racismo,
preconceito e violências, muitas vezes dos próprios moradores do bairro do
Carmo. “Eles nos chamavam de bandidos e ladrões, saíam do serviço e passavam
aqui. Dentro do ônibus eles xingavam a gente de bandidos, ladrões de terra.
Para falar a verdade, eles eram manipulados pelo emprego”, explica Lucilene
Filomena dos Santos, conhecida na comunidade como Filó, que também é
coordenadora da Conaq.
Ela
relata situações de ameaça durante a ocupação do terreno que hoje está sendo
titulado. Quando chegaram ali, tinham medo que colocassem fogo nos barracos
durante a noite. O filho dela foi espancado quando voltava de um treino de
futebol. “Quando ele estava subindo de volta [apontaram] ‘o neguinho ladrão de
terra’. Estavam batendo e enforcando ele.”
O
filho de Isaque também sofreu com ameaças e agressões físicas. Quando contou
que morava no quilombo e era filho da liderança do local, as agressões
começaram. “Deram murros no estômago e ameaçaram de morte”, conta. Na época,
eles resolveram não prestar queixa.
Isaque
conta que o Carmo é conhecido como “o quilombo que não quer ser quilombo”, pela
falta de aceitação de uma parte dos moradores do bairro, que está ligada ao
medo de perderem o emprego no condomínio de luxo se apoiarem a luta quilombola.
Como o bairro foi construído em torno de uma igreja, o catolicismo também é
muito forte, o que torna difícil para a população aceitar que uma ordem
católica era responsável por arrendar escravizados para as fazendas.
Embora
o quilombo tenha sido reconhecido em 2000, o processo de RTID só foi aberto
pelo Incra em 2006, após pressão dos quilombolas e do MPF. Em 2013, o MPF
entrou com uma ação civil pública com pedido de antecipação de tutela,
determinando que o Incra apresentasse um cronograma das atividades de
elaboração do RTID da terra quilombola.
Fonte:
Por Matheus Santino, da Agencia Pública
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