Ayrton Senna: por que o tricampeão segue forte
na memória do automobilismo no Brasil e no mundo?
Numa manhã quente e
ensolarada de primavera, um ano e oito dias antes do acidente que tiraria sua
vida, Ayrton Senna estava rodeado por jornalistas no paddock de Ímola.
Cerca de cinco minutos
depois de sair de sua McLaren após o primeiro treino para o Grande Prêmio de
San Marino de 1993, o brasileiro explicava sua chegada tardia à Itália, naquela
manhã, em um vôo noturno saindo de São Paulo.
Com o macacão vermelho
tirado dos ombros e amarrado na cintura, Senna estava cercado.
As perguntas
continuavam e, com o passar do tempo, um jovem jornalista em sua primeira
cobertura do Grande Prêmio aprendia, da maneira mais difícil, um dos principais
desafios de um "quebra-queixo".
Atrás de Senna,
segurando um gravador por cima do ombro do piloto, o braço completamente
esticado do repórter começou a cansar e a ficar dolorido.
O que fazer? Bastante
espremido, não era possível tirar o braço e trocar o gravador de mãos, ou
perderia a entrevista. Mas o desconforto só aumentava.
Até que ele tomou uma
decisão. Com cuidado, apoiou o braço o mais levemente possível no ombro do
maior superastro que a Fórmula 1 já tinha tido até ali — e que provavelmente já
teve.
Senna não sabia que o
jornalista sabia que não deveria fazer aquilo e que se sentiu péssimo. Ele
poderia ter recuado, movido ou ter reclamado da invasão do seu espaço pessoal.
Vários pilotos atuais de F1 certamente o fariam.
Mas ele não. Ignorou,
como se não estivesse acontecendo; ficou imóvel como um iogue, tolerando a
grosseria, aparentemente alheio a ela, até que todas as perguntas fossem
feitas. Agradeceu educadamente a todos e entrou no caminhão da McLaren.
Aquele jornalista é
este que aqui escreve. E naquela manhã Senna deu uma pequena demonstração do
lado generoso, suave e gentil de um homem que, em outros momentos, poderia ser
a personificação da firmeza, acidez, agressividade e do desejo cego e insaciável.
• A luz e a sombra
Por qual motivo Senna
conversava com a imprensa após o primeiro treino, algo incomum? Isso revela
outro lado dele.
A McLaren usava
motores Ford, na época, após a Honda cancelar a parceria no final de 1992. E
Senna, frustrado com a falta de potência em relação ao motor Renault da
Williams, carro e motor que ele cobiçava, estaria competindo num acordo por
corrida.
Ele já havia vencido
duas das três primeiras corridas de maneira brilhante, mas sabia que a Williams
acabaria atingindo seu potencial e suas esperanças de título desapareceriam, a
menos que algo fosse feito em relação ao motor que ele usava.
O que se dizia era que
ele havia concordado em correr em Ímola no limite do prazo, por isso a chegada
tao em cima, e aproveitou a entrevista para protestar contra a injustiça de
tudo.
O subtexto era como
ele, Senna, poderia estar em tal situação?
O que ele realmente
queria era uma Williams-Renault — em meados de 1992 ele até se ofereceu para
competir de graça para eles, mas Alain Prost, cujo contrato continha uma
cláusula de "não Senna", já havia sido contratado.
Na falta disso, Senna
queria o motor Ford de fábrica e estava fazendo de tudo para consegui-lo — o
que estava, por contrato, reservado à Benetton.
Senna estava fazendo
política, usando seu status para pressionar e tentar melhorar sua situação. Mas
dentro disso, havia uma sensação de direito.
A mesma mentalidade
que, três anos antes, no Grande Prêmio do Japão, o levou a empurrar
deliberadamente a Ferrari de seu arquirrival Prost para fora da pista na
primeira curva, a 250 km/h, pois estava irritado com a recusa dos organizadores
em mover sua pole position para o lado mais limpo da pista.
Duas semanas depois,
Senna concedeu a entrevista em que soltou uma frase que se tornou icônica:
"Estamos competindo para vencer, se não disputarmos nas brechas não
seremos mais pilotos!".
Ela foi citada muitas
vezes ao longo dos anos como uma ilustração pura da filosofia agressiva de
corrida de Senna. Mas as pessoas esquecem que Senna estava dissimulando quando
disse isso.
O entrevistador Jackie
Stewart — tricampeão, que não poderia ser ignorado — o pressionou sobre o
incidente com Prost, e Senna não gostou. O fato é que ali não houve brecha — e
Senna sabia disso.
Um ano depois, ele
admitiu que havia jogado Prost para fora da pista deliberadamente, em
retaliação aos acontecimentos em Suzuka, um ano antes, em 1989, quando teve sua
vitória retirada pelo líder do automobilismo Jean-Marie Balestre em
circunstâncias duvidosas, após uma colisão com Prost, numa decisão que deu o
título mundial para o francês.
Este era o lado mais
sombrio de Senna — um homem que ia a extremos, e às vezes exibia uma moral
questionável, para conseguir o que queria e o que sentia que merecia.
• O fascínio da complexidade
Esse era Senna. Seu
apelo, o fascínio mundial por ele, reside não apenas no talento surpreendente,
mas também na profundidade e na complexidade de sua personalidade. Sim, ele foi
um dos maiores pilotos de corrida que o mundo já viu. Talvez o maior. Mas era
muito mais do que isso.
Ele tinha um carisma
tão convincente que poderia silenciar uma sala. Era magnético de se ouvir.
Imensamente inteligente, ele era um filósofo disposto a fornecer uma janela aos
perigos de sua profissão, seu próprio senso de mortalidade e como isso o afetava.
"Você está
fazendo algo que ninguém mais é capaz de fazer", disse ele certa vez.
"(Mas) no mesmo
momento em que você é visto como o melhor, o mais rápido e alguém que não pode
ser alcançado, você fica extremamente frágil. Porque em uma fração de um
segundo, acabou.
"Esses dois
extremos são sentimentos que você não sente todos os dias. Todas essas são
coisas que contribuem para, como posso dizer, me conhecer cada vez mais
profundamente. Essas são as coisas que me fazem continuar."
Nenhum outro piloto
jamais falou de tal forma, sobre esse assunto, com tanta eloquência.
A morte também tem seu
papel na iconografia. Quando Senna morreu em Ímola, em 1994, com seu capacete
perfurado por um braço da suspensão ao bater na parede da curva Tamburello, ele
foi congelado no tempo, aos 34 anos.
A idade acrescentara
algumas rugas ao redor de seus olhos escuros, mas não diminuíra sua aparência
de estrela de cinema — sua vida virará uma cinebiografia produzida pela
Netflix. E sua forma de pilotar era incomparável, como sempre tinha sido.
• As grandes corridas
Pouco menos de duas
semanas antes da entrevista naquela manhã na região de Emilia-Romagna, na
Itália, em 1993, Senna tinha feito sua melhor corrida.
Este jornalista também
estava lá, desta vez como espectador, sob a chuva gelada da chicane de
Donington Park, esperando os carros na primeira volta do Grande Prêmio da
Europa.
Como sempre nas
corridas de F1 britânicas da época, os comentários do circuito eram quase
inaudíveis.
Não havia internet ou
smartphones para transmitir notícias ao vivo. Eu não tinha um rádio. Mas quando
o barulho dos carros na primeira volta começou, um burburinho surgiu na
multidão. Algo especial acontecia.
Quando os carros
surgiram e contornaram a chicane, Senna, que havia largado em quarto, já estava
em segundo e, logo atrás da Williams do líder Prost, nitidamente prestes a ser
o primeiro.
Senna tinha acabado de
fazer uma das melhores voltas iniciais já vistas e, em seguida, desapareceu na
distância.
Senna fez muito isso.
São muitas excelentes corridas para se mencionar todas. Ele se destacou como
verdadeiramente especial desde muito cedo.
Em 1984, ele deveria
ter vencido sua sexta corrida, o Grande Prêmio de Mônaco. Em um Toleman, ele
estava alcançando a McLaren líder de Prost debaixo de uma chuva torrencial e
estava logo atrás quando a corrida foi cancelada já na metade.
No ano seguinte, sua
primeira vitória, no Grande Prêmio de Portugal de 1985, foi uma das maiores
corridas sob chuva da história, na qual terminou um minuto à frente da Ferrari
de Michele Alboreto e pelo menos uma volta à frente de todos os outros.
Naquele ano, seu Lotus
não era o carro mais rápido, mas Senna conquistou sete pole positions em 16
corridas.
Com mais um desempenho
impressionante, indo para a McLaren em 1988, ele garantiu seu primeiro título
em Suzuka, no Japão. Após cair para 14º após uma largada ruim, ele alcançou e
ultrapassou Prost, então seu companheiro de equipe, debaixo de chuva.
E depois teve o Brasil
em 1991, quando ele concorreu com a Williams mais rápida de Ricciardo Patrese,
com pneus slick e com chuva ao final da corrida, mesmo com um carro preso na
sexta marcha.
Ao final daquela
corrida, Senna estava tão exausto que não conseguiu sair do carro sem ajuda. No
pódio, ele mal pôde erguer o troféu para homenagear os adorados torcedores
brasileiros, que o reverenciavam como uma espécie de semideus.
• Até o limite - e além
Senna foi um homem
que, sem dúvida, dedicou-se a seu esporte com mais intensidade, e deu mais de
si na busca incessante pelo sucesso, do que qualquer outro na história.
A transparência do
quanto isso significava para ele era outra parte do apelo poderoso de Senna,
mas pode ter sido o que o arruinou.
Provavelmente nunca se
saberá exatamente o que aconteceu em Ímola no dia 1 de Maio de 1994. A coluna
de direção do carro partiu-se no acidente. Teria quebrado antes? Sua equipe, a
Williams, disse que não. Seus chefes técnicos, Patrick Head e Adrian Newey,
acabaram sendo absolvidos após um longo e demorado processo na Itália.
Eles sempre
argumentaram que o acidente foi causado por uma combinação de fatores: pelo
travamento do difusor roubando o downforce de seu carro, quando Senna passou
por cima de lombadas na curva Tamburello a 300 km/h, fazendo uma curva mais
apertada do que na volta anterior, com baixa pressão nos pneus após, tentando
ficar à frente do Benetton mais veloz de Michael Schumacher. Damon Hill, seu
colega de equipe na época, diz que também acredita nisso, tendo visto todos os
dados do carro.
Senna morreu
acreditando que o carro de Schumacher era ilegal no início daquele ano. Pode
ter sido - foi encontrado software ilegal nele, embora haja prova de que o
mesmo tenha sido usado. De qualquer forma, o Benetton certamente era mais
rápido. Mas de alguma forma Senna colocou o difícil e imprevisível Williams
FW16 na pole position nas três primeiras corridas do ano.
Head e Newey sempre
defenderam que foi mérito de Senna, não do carro. A vantagem média dele de
ritmo sobre Hill nessas sessões de qualificação foi de impressionantes 0,922
segundos. Na primeira corrida da temporada no Brasil, tentando em vão ficar
junto a Schumacher, Senna havia ultrapassado Hill logo após a metade da
distância.
Até o fim ele foi
ultrapassando os limites, forçando os carros a serem mais rápidos do que
qualquer outra pessoa conseguiria, alcançando coisas que não deveriam ter sido
possíveis, mas que de alguma forma tornou possíveis.
É por isso que, 30
anos depois, seu espírito e memória seguem tão fortes quanto sempre estiveram
nos corações e mentes de todos que sabem alguma coisa sobre Fórmula 1. E sempre
seguirão.
Fonte: BBC Sport
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