sexta-feira, 31 de maio de 2024

As vitórias vazias da oposição, o alarmismo fútil dos analistas de rede social, e os verdadeiros erros do governo

Enquanto fazia minha caminhada na direção do supermercado, ontem à noite, eu mandava áudios insistentes ao meu chatgpt 4.0, para que ele procurasse uma citação de Maquiavel, de preferência em minha obra preferida, Décadas de Tito Lívio, sobre exemplos de uma vitória vazia, que não significasse nenhuma conquista objetiva, embora fosse comemorada com grande estardalhaço.

Não se tratava de vitória de Pirro, que corresponde a uma vitória tão cara, em termos de custos e vidas, que mais enfraquece do que fortalece o vencedor. Estava mais para uma vitória fútil, puramente simbólica. Por fim, acabei arrancando de meu amigo artificial a seguinte citação:

“Vittorie ottenute solo per apparenza, senza cambiare realmente le sorti di chi le ha conseguite, sono nient’altro che illusioni vuote”.

“Vitórias obtidas apenas por aparência, sem realmente mudar a sorte de quem as conseguiu, não são nada além de ilusões vazias.”

Ele me disse que a citação seria “inspirada” em Maquiavel, que teria dito algo parecido na Década. Eu perguntei onde exatamente ele teria dito isso. Ele me indicou alguns capítulos, que fui reler. Mas não encontrei. Por fim, entendi que o ChatGPT tinha inventado uma citação de Maquiavel, em italiano (eu havia pedido uma citação no original).

Tudo bem, eu o perdôo, amigo, e até respondo com outra frase em italiano: “Se non è vero, è ben trovato”.

Se não é verdade, foi bem inventado.

As vitórias da oposição ontem foram assim. Barulhentas, festejadas. Analistas políticos encheram as redes com frases pomposas sobre a “surra” que o governo levou. Um deles chegou ao exagero de afirmar que “nunca um governo sofreu tantas derrotas, qualquer governo”.

Mas vazias. Vitórias vazias. O que foram elas? A oposição manteve o veto de Bolsonaro sobre um dispositivo legal que criminalizaria, com alguns anos de cadeia, o uso de fake news em período eleitoral. Os bolsonaristas estavam apavorados com isso e gastaram uma enorme quantidade de energia para manter esse veto. O que muda no Brasil? Nada. O veto estava valendo, e continua valendo. Isso significa impunidade ou autorização para uso de fake news em época de eleição? Não. O TSE trabalhou muito bem em 2022 mesmo com esse veto, e continuará trabalhando nas eleições municipais deste ano e na de 2026.

É perfeitamente compreensível que os bolsonaristas, ou a extrema-direita, como preferirem, tenham abraçado essa batalha como algo existencial. E guerras existenciais, como vemos na Ucrânia, onde a Rússia também trava uma luta que vê como existencial, são muito difíceis de serem perdidas. O TSE já goza de grande poder no Brasil. Provavelmente é a instituição eleitoral mais poderosa no mundo democrático. Não são apenas os bolsonaristas que se preocupam, porém, com os excessos do TSE. Ocorre que, nos últimos tempos, o radicalismo mentiroso da extrema-direita brasileira, especialmente sua vertente bolsonarista, se tornou tão despudoradamente golpista e violento, que a força do nosso judiciário eleitoral se tornou uma benção dos céus para a nossa democracia.

Mas o TSE continua hoje, no dia seguinte à “vitória” dos bolsonaristas, exatamente tão poderoso quanto ontem. Aqui entre nós, talvez fosse exagero mesmo autorizar-lhe a encarcerar gente por até cinco anos por conta de uma notícia.

É uma vitória da oposição de fato. Mas para isso existe oposição. Para mediar o debate no congresso.

As circunstâncias políticas, e a polarização, transformaram a esquerda numa grande defensora do judiciário. Mas nem sempre foi assim. Há poucos anos, as bolhas progressistas fervilhavam de críticas ao ativismo judicial, aos superpoderes do STF, à interferência excessiva do TSE no processo eleitoral. A extrema-direita parece esquecer, aliás, que o judiciário nacional é, em sua maioria, conservador, até por razões de classe, já que os juízes vêm sobretudo de famílias de classe média alta, sempre vulneráveis a esse ultraliberalismo tão caro às direitas latinas. A suposta “perseguição judicial” que eles estariam sofrendo – o que é uma fantasia deles, pois não há perseguição nenhuma – vem de setores conservadores. O seu delírio mais ridículo tem sido, portanto, vender a ideia de uma ditadura judicial da esquerda, quando o que vemos, em verdade, é uma briga da direita judicial contra a extrema-direita política.

As outras vitórias da oposição foram igualmente vazias. Derrubaram um veto de Lula, por exemplo, que garantia a “saidinha” para presos sem periculosidade. Importante esclarecer isso. Lula tinha adotado uma posição conservadora neste sentido, até por respeito à decisão do congresso. O presidente não tinha vetado a decisão, reacionária, populista, pouco inteligente, do congresso, de matar o direito dos brasileiros sob custódia no sistema prisional, de obterem saída temporária para visitar suas famílias, durante alguns feriados importantes, como o Natal. Apenas presos no semiaberto tinham o direito, aliás. Lula tinha vetado apenas que essa decisão fosse imposta até mesmo aos presos de pouca periculosidade, sem conexão com o crime organizado. Os especialistas em segurança pública concordaram com Lula, e até acharam que ele teria sido tímido, porque o correto, defendiam, seria um veto que restituísse integralmente o direito à saidinha. Mas todo mundo sabe que esse é um debate extremamente difícil de vencer, porque a extrema-direita apela ao populismo vulgar. Apenas os parlamentares da esquerda mais ideológica têm coragem de enfrentar o binarismo fácil de bandido versus homens de bem, e defender direitos também para as pessoas presas, inclusive por entender que esse tipo de populismo apenas fortalece as organizações criminosas, que operam dentro dos presídios, por se tratar de um rigor que deixa o preso individual mais vulnerável e, portanto, mais dependente dos chefes do crime.

Algumas das “vitórias” foram positivamente ridículas e, a bem da verdade, puramente simbólicas, ou semânticas, como proibir o governo de usar dinheiro público em projetos que incentivassem invasões de terra ou “sexualização” de crianças em escolas. Como o governo Lula nunca faria nada disso, não muda nada. Talvez até ajude o governo a controlar algum setor distraído da própria administração que tivesse intenção de promover ações bem-intencionadas mas ingênuas (e desastradas) do ponto de vista dos costumes. Ah, mas isso prejudica o MST! Bem, o MST sobreviveu a Collor, FHC, Temer, Bolsonaro, e certamente vai sobreviver a um veto insignificante da extrema-direita, até mesmo porque o MST hoje se tornou muito mais sofisticado. A organização hoje negocia títulos na bolsa, faz acordos na China para importação de maquinários, e investe na produção de alimentos orgânicos. A esquerda precisa proteger o MST, que é o movimento social mais importante do Brasil, mas o que houve ontem não faz sequer cócegas.

Que mais? Ah, tem o mais engraçado. A oposição aprovou, aparentemente sob a liderança decidida do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, a taxação de produtos importados de até 50 dólares, que tinham sido isentos de impostos pelo governo Lula no ano passado. A situação dos importados ficou assim:

(…) Após negociações nas últimas semanas, Átila Lira propôs no lugar uma taxação de 20% do Imposto de Importação sobre as mercadorias de até 50 dólares. Acima deste valor e até 3 mil dólares (cerca de R$ 16.500,00), o imposto será de 60%, com desconto de 20 dólares do tributo a pagar (cerca de R$ 110,00).

Para o deputado Gervásio Maia (PSB-PB), o texto traz uma alternativa para proteger empregos no Brasil. “A alíquota de 20% minimiza danos à indústria nacional, que não tem condições de competir com os preços da China”, afirmou.

Ora, isso cheira mais a uma vitória do governo, que assim conseguirá mais dinheiro em caixa, sem carregar o ônus de ter prejudicado os pequenos lojistas e distribuidores, que vivem de revender esses produtos. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que sempre quis taxar essas pequenas importações, deve ter recebido essa “derrota do governo” com um sorriso. Essa isenção fiscal era defendida pelo governo por razões justas, fundamentadas pela preocupação com a microeconomia do pequeno varejo nacional, mas também por motivos políticos, por ser impopular. Bem, sabemos que parte da culpa vai estourar nas costas do governo, mas ao menos agora ele e seus militantes poderão alegar que Lula tentou evitar essa taxação das pequenas compras, mas que foi derrotado por Arthur Lira e pelo congresso “reacionário”.

Os economistas ligados à pauta do desenvolvimento e reindustrialização nunca foram simpáticos, a propósito, à isenção tributária total para produtos importados chineses, mesmo aqueles baratos, por razões óbvias: eles concorrem com produtos nacionais. Nossa indústria de transformação ainda depende muito da manufatura desses pequenos artigos, cuja baixa densidade tecnológica os tornam mais fáceis para nós produzirmos.

De forma geral, nenhuma das “derrotas” do governo produzem qualquer impacto expressivo na administração. Alguns analistas mais nervosos de rede social usaram as “derrotas” de ontem para alimentar a fantasia de um governo acuado, com aprovação em declínio, e que está com os dias contados. Nada mais falso. A aprovação de Lula permanece exatamente a mesma do início de seu governo. É um país polarizado, mas é assim em quase toda democracia moderna. Lula tem apoio firme de seus próprios eleitores. O que mais importa, porém, é a economia. Ontem foi divulgada a taxa de inflação, que voltou a cair no acumulado de 12 meses, para menos de 3,7%. É uma taxa de país desenvolvido. As estimativas para o PIB seguem sendo ajustadas para cima. Desemprego em queda e renda em alta.

Ah, o governo não erra? Não há perigos à frente?

Sim, o governo Lula comete, a meu ver, alguns erros estratégicos, que podem ter consequências funestas no futuro, inclusive no futuro próximo. Falta, por exemplo, um plano muito ambicioso, barulhento, completo, no campo da segurança pública. Flavio Dino teve iniciativas boas neste campo, mas incompletas e burocráticas. É preciso engajar a sociedade civil. Se não criar um programa que mobilize a população, no dia a dia, não vai funcionar. Não se trata de melhorar a “comunicação”. Sempre que se fala, aliás, que o problema do governo é a comunicação, comete-se dois erros crassos: ignora-se o problema central, que está no campo da política e da administração, e se atribui à comunicação uma semântica vulgar. Comunicação não é propaganda. Comunicação é ouvir a sociedade, inclusive suas vanguardas científicas. Comunicação é mobilizar e engajar a sociedade.

Um outro erro do governo é ignorar a pauta da mobilidade urbana, ou tratá-la de forma fragmentada, ou ainda deixá-la para governadores e prefeitos. O governo federal precisa se debruçar sobre o tema, porque ele é sobretudo nacional. O governo precisa debater o futuro da mobilidade urbana do país, com urgência, sob o risco de debatê-lo somente após alguma grande crise política. O Brasil precisa ingressar, com ousadia, na era das ferrovias de alta velocidade, para o transporte interestadual e intermunicipal. Construir vastas redes de metrô, subterrâneos ou de superfície, nas cidades. Investir em ciclovias e caminhos pedonais. Isso não é mais nenhum “luxo” ou fantasia militante, mas uma necessidade existencial e econômica da sociedade moderna. O mundo inteiro está caminhando para isso, e se o Brasil não acompanhar, apenas irá trazer sofrimento e frustração para seu povo.

Por fim, tem a questão das universidades federais. O governo precisa fazer um esforço maior para atender as reinvidicações de professores e servidores e pôr fim à greve. Mas não só isso. As universidades federais precisam ser convocadas, mobilizadas, organizadas, para se engajarem na reconstrução do país. Mas isso fica para outro artigo.

 

Fonte: Por Miguel do Rosário, em O Cafezinho

 

Na capital da soja, agronegócio revela seu apartheid

Vista de cima, a cidade que se orgulha do título de Capital Nacional do Agronegócio evidencia um abrupto recorte social e econômico. A BR-163 funciona como se fosse uma fronteira que divide duas realidades opostas, tal qual o muro que separa Israel e Palestina.

Na margem oeste, uma economia pujante enfileira lojas de marcas de luxo, ocupa as ruas com caminhonetes que custam centenas de milhares de reais e erguem mais e mais casas e condomínios de alto padrão.

A leste da rodovia, carros fabricados há décadas circulam por ruas que foram asfaltadas pela primeira vez há menos de cinco anos, numa paisagem que se compõe de construções simples de tijolos à mostra e placas de excursões para o Maranhão – que levam e trazem de lá os trabalhadores anônimos que servem até a própria vida na cadeia de produção do ouro do Cerrado, a soja.

A geração de riqueza e de desigualdade no Centro-Oeste são faces do mesmo projeto de desenvolvimento colocado em prática a partir da década de 1970. Baseado numa lógica de ocupação de terras da Amazônia e Cerrado por colonos oriundos do Sul do país, este projeto foi turbinado pela globalização das commodities alimentares e consolidou a vocação brasileira de fazendão do mundo – e também sua incapacidade de alimentar a própria população.

“O projeto de colonização foi uma iniciativa do Governo Federal [nos anos de ditadura militar], que permitiu que empresas comprassem grandes quantidades de terra e organizassem comercialmente e estrategicamente a venda dessas terras”, contextualiza Vitale Joanoni Neto, professor pesquisador da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

A estratégia, em suma, foi criar grandes lotes rurais conectados a lotes urbanos. Assim, a empresa colonizadora tornava seu produto mais atraente com a promessa aos futuros fazendeiros do Cerrado de que criaria cidades planejadas. Era verdade: em Sorriso, que a colonizadora urbanizou, floresceram bairros que oferecem alta qualidade de vida. O problema ficou para quem não coube neste projeto de desenvolvimento. Os trabalhadores do agro chegaram depois, ficaram sem terras, sem casas e apartados das oportunidades de progresso.

·        Brasil, o país da soja

Hoje, o Brasil ocupa a liderança no ranking global de produção de soja, um total de 319,9 milhões de toneladas na safra de 2022/23 – Sorriso é o município que mais colaborou para isso, com 2,1 milhões de toneladas. De toda a soja que o país exporta, 75% vai para a China, onde serve principalmente como ração para porcos, proteína animal mais consumida pelos chineses.

Os 167 bilhões de dólares que entram na balança comercial brasileira para comprar tanta soja são fundamentais para a nossa economia: colaboram para o crescimento do PIB e para a estabilização do real diante do dólar.

Na perspectiva local, o dinheiro do agronegócio impôs uma revolução para os municípios do centro-norte do Mato Grosso. O PIB per capita de Sorriso, por exemplo, saltou de R$ 27.583,96 em 2010 para R$ 98.309,14 em 2020, e em 2021 chegou a R$ 131.899,11 – em um período no qual a população da cidade quase dobrou, de 66.521 para 110.635 no último censo, em 2022.

Em uma região do Brasil onde a riqueza vem do que a terra dá, quem não tem terra faz o quê? Essa é a pergunta que um enorme contingente de moradores de Sorriso se faz – de acordo com dados do Cadastro Único, cerca de 30% da população vive em situação de vulnerabilidade social. A região, de acordo com Atlas do Espaço Rural Brasileiro, é a de maior concentração de terras de todo o país. E quem luta por terra vive na pele uma outra face do apartheid social imposto pelo agro.

·        Assentamento Alvorecer: “Querem encurralar a gente”

Há mais de duas décadas, Milton e Eva Batista vivem de forma itinerante pelos municípios do centro-norte de Mato Grosso. A casa recém-construída dentro do Assentamento Alvorecer é a quinta moradia da família no período – todas as anteriores foram demolidas por caminhões e tratores em ações de reintegração de posse.

“Essa é a primeira casinha de madeira que eu construí. Foi sozinho, Deus e eu”, conta Milton, que é pai de seis filhos, três deles criados dentro de assentamentos de ocupação de terra. Antes dessa construção, ele e a família viveram anos debaixo de lona.

O casal, ambos de 65 anos, está desde dezembro de 2022 no Assentamento Alvorecer, quando recebeu o convite do líder comunitário Gerson Sousa Santana para voltar à zona rural. Antes, passaram pelo que chamam de “sofrimento” de morar na periferia urbana de Sorriso. “A gente foi pra cidade vestindo só a roupa do corpo”, se emociona Milton. Para trás, havia deixado três anos de trabalho investido numa ocupação que foi destruída e destinada ao cultivo de soja.

Além da terra na qual puderam se abrigar no Assentamento Alvorecer, eles encontraram também histórias semelhantes. A primeira ocupação, em 2014, foi totalmente revertida em menos de 7 meses. Após o despejo, se organizaram como associação e ocuparam de forma definitiva um território de 180 hectares pertencente à União – onde, à época, viviam 113 famílias.

Uma das mais influentes famílias sojeiras da cidade reivindica para si a posse dessas terras, e a pressão sobre o Judiciário surtiu efeito: em 2019, uma liminar reduziu em mais de 90% o tamanho do assentamento. “Nos disseram que queriam encurralar a gente no chiqueiro”, recorda Gerson, presidente da associação.

Os moradores relatam uma ação de despejo violentíssima. A começar por uma ilegalidade: Gerson afirma que nem ele, nem o advogado constituído pelo assentamento receberam notificação judicial. Tratores e helicópteros chegaram de surpresa e deram poucos minutos para que os assentados juntassem seus poucos pertences e se amontoassem no espaço de 16,9 hectares definidos pela decisão do Judiciário. A terra onde eles viviam e plantavam hoje cultiva apenas soja e milho para uma família.

A lógica do apartheid foi reproduzida no campo. No lugar do muro, os fazendeiros abriram uma valeta de 2 metros de altura entre os dois territórios – um buraco intransponível onde já caíram e morreram animais que ajudam no sustento das atuais 80 famílias que vivem no assentamento. Na Justiça, a associação pleiteia o seguinte acordo: 5 hectares para cada unidade familiar, com reserva nativa inclusa. “O pedido é de moradia digna e terra para trabalhar, só isso”, resume Gerson.

·        Assentamento Jonas Pinheiro: “O agro quer pegar de volta”

O Assentamento Alvorecer é vizinho do Assentamento Jonas Pinheiros – do qual, inclusive, os moradores dependem para o abastecimento de água e energia elétrica. Mais bem estruturado, o Jonas Pinheiro está em fase muito mais avançada de regularização fundiária, ainda que siga enfrentando questionamentos legais.

O assentamento foi regularizado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em 1999, ano em que as primeiras famílias se instalaram nos 7.300 hectares que compõem o projeto. O casal Marcio Manoel da Silva e Maria Boaventura de Sousa Silva (conhecida como Sula) chegou em 2002 e desde então sobrevive da agricultura familiar: “Tudo o que a gente sabe fazer é produzir alimentos”, afirma Marcio. Eles, assim como as mais de 400 famílias assentadas, correm também risco de despejo.

Em 2021, a Justiça anulou o processo de desapropriação de toda área. Um processo movido pela família que foi proprietária da fazenda reivindica reaver a terra, devido a falhas no processo de regularização por parte do Incra. A ameaça de despejo gerou reações diversas entre os moradores: alguns desistiram de vez da viver da terra e houve até quem passou mal. “Teve gente que desmaiou e foi parar no hospital”, relata Sula, que é presidente da Cooperativa dos Pequenos Produtores Rurais do Vale do Celeste (Coopercel).

“Quando viemos para cá, ninguém dava nada por essa terra. Era considerada quase improdutiva”, recorda Marcio. “Agora que provamos que dá pra produzir aqui, que a terra tem valor, o agronegócio quer pegar de volta”. A produção no Jonas Pinheiro se mostrou especialmente profícua durante a pandemia de covid-19: os agricultores receberam da Prefeitura – por tempo determinado – um bom kit de maquinários e tratores e responderam com safra recorde de hortifrutis e hortaliças, que foram distribuídos aos moradores da cidade.

O anúncio do Plano Safra, com foco em agricultura familiar, em meados de 2023 trouxe aos produtores a expectativa de levantar recursos para a compra de novos equipamentos e maquinários e, assim, repetir de forma sustentada o bom desempenho dos anos da pandemia. E então, novo balde de água fria: o assentamento teve suas solicitações negadas devido a um embargo ambiental. Isso porque a área destinada para reserva ambiental coletiva de todo o Jonas Pinheiro está invadida.

As invasões ao trecho definido como reserva ambiental ocorrem desde o início do Projeto de Assentamento. Começou com alguns assentados em busca de hectares a mais para plantar. Depois de duas décadas, não há praticamente mais vegetação nativa e o perfil de invasores se transformou: o espaço está quase todo ocupado por plantações de soja e por pasto tomado de gado branco.

Para Sula e Marcio, se trata de mais uma forma do agronegócio estrangular o crescimento da agricultura familiar. Um ciclo no qual, sem recursos, os produtores têm baixa produtividade e acabam por desistir da lida. E muitos arrendam suas terras dentro do próprio assentamento exatamente para que laranjas entrem na política interna das associações e convençam cada vez mais produtores a atenderem aos interesses dos grandes latifúndios: plantar mais soja.

Moradora de bairro pobre de Sorriso mostra a casa que sofre com as enchentes e com problemas de falta de saneamento básico. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

·        Agrotóxicos: doenças em humanos e extermínio entre animais

A invasão da soja dentro do Projeto de Assentamento Jonas Pinheiro traz novos problemas. Os relatos são vários de que aviões voam baixo sobre os lotes arrendados despejando agrotóxicos sobre a terra. No Assentamento Alvorecer, os produtores descrevem cenas parecidas. “No tempo da plantação da soja, eles vêm com o avião para passar veneno, mas eles não abrem só na parte deles, eles jogam veneno nas nossas terras. Faz uma chuva de veneno e destrói as nossas frutas”, conta Gerson. “Minha mãe passou mal por causa do agrotóxico, e tive que tirar ela daqui e pagar um aluguel na cidade”, conclui.

As mais recentes evidências científicas dão razão a Gerson. Publicado em 2023, o documento “Ambiente, saúde e agrotóxicos desafios e perspectivas na defesa da saúde humana, ambiental e do(a) trabalhador(a)”, produzido por pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso, consolida dados que relacionam uso de agrotóxicos e incidência de câncer no estado entre 2001 e 2016.

Neste espaço de 15 anos, a incidência média de casos de câncer em Mato Grosso cresceu 19,45%. Mas o que chama mais atenção é que o crescimento de notificações foi acentuado nos municípios do centro-norte mato-grossense, entre eles Sorriso – cujo consumo de agrotóxicos é destacado como o maior do estado, com mais de 2 milhões de litros apenas no ano base de 2019. Enquanto a incidência média de câncer no estado é de 166,97 casos por 100 mil habitantes, na capital do agronegócio é de 304,35 casos por 100 mil habitantes.

O documento conclui que há “forte correlação” entre consumo de agrotóxicos e casos de câncer e acrescenta “correlação positiva com as incidências de intoxicações agudas, mortes por intoxicações, cânceres infantojuvenis, malformações fetais, abortos e suicídios”.

O uso indiscriminado de pesticidas causa efeito ainda mais devastador entre as maiores polinizadoras do reino animal. O produtor Zauri José Biavatti, apelidado de Bispo, administra há 19 anos suas terras, localizadas entre o PA Jonas Pinheiro e uma das maiores fazendas de soja à margem da BR-163. Ele também observa que a frequência de voos para pulverização de agrotóxicos aumenta a cada ano. Assim como a taxa de letalidade de suas abelhas.

“Sempre morreu abelha, mas a média era de duas colmeias por ano, no máximo três. De 2020 para cá subiu muito e agora, em 2023, de 19 colmeias eu perdi 15”, relata Bispo. Não é um caso isolado.

A mais de 30 quilômetros de distância, o agricultor Oridio Queiroz testemunhou um extermínio dentro de sua propriedade. “Você não pode tirar todo o mel de uma vez, então eu tinha colhido o mel só de três caixas – e estava tudo bem”, conta. “Dois dias depois um amigo me ligou e disse que eu precisava ver minhas abelhas. Quando cheguei aqui, eu fiquei triste demais da vida. Não tinha mais abelha, elas estavam todas mortas”. Seu Queiroz perdeu cerca de 250 quilos de mel – o que representa, em termos financeiros, cerca de R$ 12 mil – e mais de 10 anos de criação de colmeias.

Diversas perícias em distintos pontos do município de Sorriso identificaram que a causa mortis das abelhas foi o uso excessivo de agrotóxicos. O caso mais emblemático foi a condenação de um fazendeiro produtor de algodão a pagar uma multa de R$ 225 mil, responsável pelo extermínio de mais de 100 milhões de abelhas entre Sorriso, Sinop e Ipiranga do Norte. As investigações feitas pelo Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso (Indea) constataram a presença do princípio ativo fipronil.

À reportagem, produtores denunciaram o uso ilegal de pesticidas contrabandeados do Paraguai, sem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

·        Mercado de luxo em expansão

No núcleo urbano de Sorriso, há bairros que não devem à paisagem de cidades ricas dos Estados Unidos. A pujança econômica tem símbolos evidentes nas ruas, o mais proeminente deles é a multiplicação de pick-ups e SUVs. As caminhonetes compõem mais de 10% da frota total de veículos da cidade, em especial as de grande porte, como as da linha RAM, que custam a partir de R$ 240 mil. Apenas em 2023 foram registrados mais de 12 mil emplacamentos de veículos desta categoria no município.

O mercado imobiliário também vive seu boom em Sorriso. Desde 2020, o preço médio do metro quadrado subiu 80% no município, hoje estimado em R$ 2772,35 – em São Paulo, cidade mais rica do país, o metro quadrado médio fechou 2023 em R$ 7.153, segundo o Relatório de Compra e Venda do Quinto Andar. Nos condomínios de alto padrão de Sorriso, como o Cidade Jardim e o Green Park, o valor das mansões subiu até 140% nos últimos quatro anos.

A inflação para os mais ricos – que chegam a pagar cerca de R$ 1 mil em peças de roupas nas lojas de luxo da Avenida João Brescansin – alcança também quem tem menores rendimentos. Na parte oeste da cidade, casas de padrão classe média (sala, cozinha, banheiro, lavabo, dois quartos e garagem para dois carros) podem custar mais de R$ 6 mil de aluguel. Na parte leste, a mais pobre, o aluguel de casas simples de três cômodos (sala/cozinha, um quarto e um banheiro) sai quase sempre por mais de R$ 2 mil.

Seu Milton e Dona Eva, no período entre o despejo e o reassentamento no Alvorecer, moraram meses no bairro de Nova Fraternidade, na periferia da cidade. Eles dividiam uma casa de quatro cômodos com outra família. Os R$ 1.500 pagos no aluguel de metade do imóvel comprometiam quase integralmente a renda familiar. “Tinha dia que eu trabalhava de manhã pra ter dinheiro para jantar à noite. Às vezes nem isso, e dependíamos da ajuda das pessoas”, se emociona Milton.

“A gente precisa plantar porque está tudo caro”, reclama Eva. Na terrinha que o casal mantém dentro do assentamento, ela mostra as plantações de mandioca, cana, melancia, laranja, banana, abacate, quiabo e maracujá. “É tudo para consumo nosso. A gente planta com nosso suor mesmo e, aí, não precisa comprar”.

Uma preocupação que se justifica nas gôndolas dos mercados: o preço da cesta básica em Mato Grosso é um dos cinco mais altos do país; em Sorriso, o valor é maior que a média do estado.

·        Risco de morte aos trabalhadores do agro

Quem não tem acesso à terra precisa trabalhar e, evidentemente, as vagas que se abrem são quase todas relacionadas ao agronegócio. Na média nacional, o rendimento médio do trabalhador do agro é R$ 2.381,00 (dados de dezembro de 2023 do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada – CEPEA Esalq/USP), cerca de 15% inferior ao rendimento médio do trabalhador de serviços.

Pressionados ao mesmo tempo pelo elevado custo de vida da cidade e por salários insuficientes, trabalhadores se submetem a empregos com carga horária elevada e condições de segurança insuficientes. Uma equação que muitas vezes resulta em tragédia.

O trabalho “Agronegócio e acidentes de trabalho letais em armazéns graneleiros do Mato Grosso”, realizado pelos pesquisadores Luciano Bomfim e Jacob Binsztok, da Universidade Federal Fluminense, agrupou informações de todo o país entre os anos de 2019 e 2021. A pesquisa constatou que as mortes estão concentradas no estado de Mato Grosso: foram 17 óbitos dos 37 registrados no Brasil. Revelou também o não cumprimento das normas de segurança como a principal causa das mortes – em 70% dos óbitos, os funcionários não faziam uso dos equipamentos de segurança necessários para a função.

O tipo de acidente predominante é o soterramento: foram 28 mortes de trabalhadores afogados a seco dentro de silos carregados de grãos – os demais tipos foram desabamento (3), queda (3) e inalação de gases (3). Foi desse modo, asfixiado em um silo de soja, que Francisco Neves da Silva perdeu a vida aos 36 anos, em maio de 2021 – um acidente que matou mais dois colegas dele: Francisco Carvalho dos Santos, de 32 anos, e Francisco das Chagas Abreu, de 21 anos.

era migrante maranhense. Desde jovem empregava os músculos na lida do armazenamento de grãos, de onde obtinha renda para se sustentar e para mandar algum valor para a mãe, no Maranhão. Casou-se com Beatriz Bandeira, cabeleireira, com quem mantinha há mais de dez anos uma família, composta ainda de mais três filhos dela.

Beatriz acompanhou in loco parte do trabalho de resgate do Corpo de Bombeiros, que durou mais de 10 horas. No fim daquela tarde, ela recebeu diversas ligações de um amigo do casal, perguntando por notícias do Rap – apelido de Francisco Neves. A insistência chamou a atenção, e Beatriz exigiu saber o que houve. E então recebeu a notícia: três homens estavam soterrados na fazenda onde seu marido trabalhava, em Nova Ubiratã, município vizinho, a aproximadamente 30 km de Sorriso.

“Peguei minhas coisas e fui direto pra lá. Toda vez que eu ligava pro meu marido e ele não atendia, tinha certeza de que ele estava envolvido”, conta. Às 3h15 daquela madrugada, o primeiro corpo foi retirado – o de Francisco Carvalho. Na sequência, um novo corpo aparecia. “Quando os bombeiros levantaram a maca lá no alto, mesmo de longe eu reconheci. Eu reconheci meu esposo pela bota dele. Quando desceram ele, eu e o meu cunhado chegamos perto, e a gente viu que ele tinha partido”, se emociona.

A terceira vítima, Francisco das Chagas, foi resgatado do silo com vida. Enquanto seus colegas foram soterrados por toneladas de soja, o corpo dele escorregou para uma área onde a entrada dos grãos foi bloqueada. Sem vaga na rede pública de saúde na cidade, ele foi levado ao Hospital Regional de Sinop, onde morreria três dias depois – óbito por envenenamento, decorrente das mais de 10 horas em que inalou o ar preso entre os grãos.

À época, o Sargento BM Moraes, do Corpo de Bombeiros, disse ao site MT Notícias: “Infelizmente nenhum dos trabalhadores estavam usando equipamento de segurança. Então foi uma negligência e será apurado posteriormente pelos órgãos competentes”. Até agora, não houve condenações.

·        Violência urbana explode: crime organizado coopta os jovens

Beatriz viveu duas tragédias que simbolizam as mazelas sofridas pela população de Sorriso que é apartada da riqueza promovida pelo agro. Além de perder seu companheiro, engolido pela soja, perdeu também seus filhos para o crime: o mais velho foi executado com tiro enquanto andava de moto e o mais novo, seis meses depois, sequestrado por bandidos encapuzados e fortemente armados dentro de casa – o jovem está desaparecido há quatro anos.

São crimes como esses que engordam as estatísticas de Sorriso. O ranking elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2023 coloca a cidade como a sexta maior taxa de assassinatos do país (70,5 casos por 100 mil habitantes) – é a primeira da lista fora da região Nordeste e a única da região Centro-Oeste a figurar na lista das 50 mais violentas. O índice de Sorriso é três vezes superior à média nacional (23,4 homicídios por 100 mil pessoas).

A onda de violência começou a se formar em 2013, mas tomou impulso nos últimos dois anos, de acordo com Naldson Ramos, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência e Cidadania da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Pouco mais de dez anos atrás, a facção criminosa paulista PCC começou a se posicionar em pontos estratégicos do Mato Grosso para tentar controlar rotas do tráfico de drogas da Bolívia para o Brasil. Durante muito tempo, o controle territorial do crime no estado esteve com a facção fluminense Comando Vermelho (CV).

A situação ficou especialmente crítica em 2022. Um racha interno do CV em Sorriso resultou no nascimento de uma nova facção, composta exclusivamente de criminosos da região. O grupo dissidente identificado como Tropa Castelar formou aliança com o PCC, que entrou pela primeira vez na cidade. A disputa por pontos de venda, domínio territorial e cooptação de agentes das forças de segurança deflagrou uma guerra que mata indefinidamente – integrantes ou não das facções.

Naldson Ramos, que estuda os dados de violência da cidade, afirma que é um erro a avaliação de que se trata apenas de “bandido matando bandido”, como foi dito pelo governador do estado, Mauro Mendes (União Brasil). Ao colocar uma lupa sobre os números de homicídios, ele identifica também crescimento de mortes que decorrem de violência policial e de conflitos corriqueiros entre homens armados.

“Há um mercado consumidor de drogas com muito dinheiro em Sorriso. Temos registros de que as festas dos jovens ricos são regadas a álcool com cocaína, skank e anfetaminas”, informa Nadson. “Então vira um território muito rentável para os traficantes e aumenta o risco de brigas que resultam em uso de arma de fogo”.

O aumento da criminalidade é, talvez, o efeito colateral da desigualdade social e econômica que mais chegue aos olhos de quem se beneficia dela. A concentração de renda e a baixa remuneração da força de trabalho do cidadão médio compõem a tempestade perfeita para que as facções criminosas cooptem jovens para o mundo do crime.

 

Fonte: Mongabay

 

Estudo do Inca indica desigualdades entre tipos de câncer e incidência de acordo com regiões do País

A mortalidade prematura por câncer no Brasil deve cair no período de 2026 até 2030. Essa é a previsão feita por pesquisadores do Instituto Nacional de Câncer (Inca), com base na mortalidade prematura observada no período anterior, de 2011 a 2015, para a faixa etária de 30 a 69 anos, a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Mortalidade (SIM). O estudo, intitulado Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para o câncer podem ser cumpridos no Brasil? e publicado no início de janeiro, indica desigualdades entre tipos de câncer e incidência de acordo com as regiões do País.  

Mesmo que a previsão seja de diminuição da mortalidade prematura, há ainda o aumento de casos de câncer e, em alguns casos, até mesmo o aumento da mortalidade. Isso ainda é piorado de acordo com o sexo e a região: mulheres são as mais afetadas, com uma redução geral de 4,6%, frente aos 12% dos homens, enquanto o Nordeste apresenta as maiores taxas de mortalidade. Esse aumento está diretamente relacionado às mudanças de hábitos alimentares, sedentarismo, envelhecimento da população e aos padrões de vida devido ao aumento da urbanização. 

O estudo foi motivado pela Meta 3.4 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), que visa a “até 2030 reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças crônicas não transmissíveis via prevenção e tratamento e promover a saúde mental e o bem-estar”. 

·        Expectativa de vida

As pessoas atingidas por essas mortes prematuras estão na faixa etária mais produtiva. Isso é também muito motivado graças ao aumento da expectativa de vida, nas quais há um aumento das doenças crônicas não transmissíveis. É esperado que essas pessoas estejam vivas até os 70 anos de idade. A redução prevista para o Brasil, porém, está muito aquém dessa meta de 30%. 

“Ela está longe dos 30% de redução. Acho que é um dado importante, é uma boa notícia nós pensarmos que pode haver uma redução, mas não vai ser possível 30% de redução. A expectativa é que alcance alguma coisa da ordem de grandeza de 12%”, explica Maria Del Pilar Estevez Diz, médica oncologista e diretora do Corpo Clínico do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. 

Entre a incidência de tipos de câncer, o de próstata ainda lidera entre os homens, enquanto os de colo do útero e mama lideram entre as mulheres. No cenário geral, os cânceres de pulmão, estômago e intestino são os mais diagnosticados na população geral. Este último, inclusive, é o que deve apresentar maior aumento de risco de óbitos prematuros, cerca de 10%. O estudo ainda estima que cerca de 46 mil novos casos de câncer de intestino sejam diagnosticados a cada ano entre 2023 e 2025. 

Em comparação, o câncer de pulmão apresenta dados alarmantes. Ele tem uma altíssima mortalidade por uma dificuldade de tratamento e diagnóstico. A redução esperada entre os homens é de quase 30%, enquanto para as mulheres há a previsão de um aumento da morte prematura de 1,1%. Isso evidencia o sucesso do trabalho – de décadas – feito para a redução do tabagismo, no qual os homens aderiram mais que as mulheres. 

“Isso mostra a necessidade de campanhas específicas para as mulheres. Para ver essa redução nas próximas décadas, nós vamos precisar desestimular o tabagismo entre as meninas e as mulheres”, diz Maria. Ela ainda complementa que é necessário “mudar um pouquinho a campanha, a gente tem que trabalhar para sensibilizar essa população para que ela não seja exposta ao cigarro”.

·        Prevenção

“Está prevista uma redução na ordem de grandeza de pelo menos 20% do câncer de próstata”, diz a médica. Na maior parte das regiões, essa redução é notada, o que é muito positivo. Isso se dá a partir de uma maior busca dos homens pelo diagnóstico e à procura pelo tratamento. O câncer de próstata, ainda o de maior incidência entre homens, é passível de cura desde que diagnosticado precocemente. 

Já no caso do câncer de mama, o cenário é bastante diverso.  As projeções indicam queda no Sudeste, estabilidade na região Sul e, na contramão, um aumento nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Esse aumento é decorrente do fato de as mulheres escolherem engravidar mais tarde e motivadas por hábitos alimentares e sedentarismo. “Nós temos uma quase estabilidade na mortalidade pelo câncer de mama nessas próximas décadas, uma redução de pouco mais de 10%. Nas regiões Norte e Nordeste, a gente não tem essa redução, enquanto na região Sudeste a gente tem uma redução de cerca de 20%”, explica a médica.

Esse tipo de câncer possui estratégias de prevenção. Como explica Maria, a detecção precoce do câncer de mama depende da adesão da população à mamografia, a ida regular ao ginecologista, mas também uma certa rapidez no diagnóstico. “Não basta a mulher ir ao médico, ela precisa ter acesso ao exame no momento certo, acesso ao médico quando tem alguma coisa, quando perceber algo anormal. A gente vê essa disparidade importante no Brasil”, explica. “Estimular a população a procurar o exame e, uma vez feito o diagnóstico, o acesso ao tratamento mais rápido possível”, complementa. 

A médica ainda chama atenção para o câncer de colo uterino. Esse tipo de câncer é totalmente prevenível, desde que descoberto precocemente. A ideia é ter esse câncer erradicado. Porém, ainda apresenta uma desigualdade muito grande entre as regiões: enquanto a redução nacional é esperada, a região Norte tem uma mortalidade muito elevada e fora da média nacional. Em 2015, morreram 28 pessoas por 100 mil, sendo que a previsão é de diminuição para 24 pessoas por 100 mil. A média nacional é de 11 óbitos por 100 mil.

·        Aumento dos casos

O câncer de intestino deve ter um aumento de cerca de 10%, em homens e mulheres, até 2030. A médica lembra que isso tem a ver com a transição epidemiológica pelo qual o País passa, ou seja, estamos assumindo um perfil de morte por câncer parecido com o dos países desenvolvidos. 

Uma dieta pobre em fibras influencia o aparecimento do câncer de intestino também. A má notícia é que a prevenção é menos estruturada no País. São necessários exame de fezes anualmente, ou exames menos acessíveis, como a retossigmoidoscopia e a colonoscopia. Maria lembra que não há uma rede estruturada nacionalmente para a realização desses exames, além de um preconceito em relação a eles.

“Infelizmente, a gente vê, sim, um aumento, tanto em homens quanto mulheres, da mortalidade pelo câncer colorretal. Na verdade, quando a gente vai olhar o Brasil como um todo, é o único câncer que está esperado um aumento até o final da década”, diz Maria. Novamente, o Nordeste lidera um aumento de 52% dos casos para os homens e 38% para as mulheres. Para efeito de comparação, o aumento é de 4,5% para os homens e 7,3% para as mulheres no Sudeste. “Aponta para a necessidade de uma de uma política muito específica e urgente”, diz a oncologista. Esse é um tipo de câncer prevenível, com mudanças de hábitos, mas também com exames e a retirada da lesão pré-maligna ou por meio do diagnóstico precoce. “A população precisa ser esclarecida sobre o risco e o Ministério da Saúde precisa estar desenvolvendo uma campanha específica para isso. Sabemos hoje que pelo menos 75% da população é atendida pela rede pública de saúde, então, para mudar esse quadro, são necessárias políticas públicas de saúde efetivas”, finaliza. 

 

¨      Pesquisa nos EUA revela medicamento capaz de reduzir mortes de pacientes com câncer de pulmão

Um estudo feito nos Estados Unidos mostra que um novo fármaco reduz pela metade o risco de morte de pacientes de câncer de pulmão já operados. Além disso, o medicamento, chamado Osimertinibe, permitiu sobrevida de cinco anos para cerca de 88% dos voluntários da pesquisa. O câncer de pulmão é o mais letal dos cânceres e mata cerca de 3 milhões de pessoas por ano, no mundo todo. A pesquisa foi divulgada em Chicago durante a maior conferência anual de especialistas em câncer, organizada pela Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco).

Gilberto Castro, oncologista e chefe do grupo de Oncologia Clínica de Tórax, Cabeça e Pescoço do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), explica as condições para ser tratado com o Osimertinibe: “Não é todo mundo que vai se beneficiar desse tipo de tratamento, são somente aqueles pacientes que têm esse tipo específico de câncer de pulmão que se chama adenocarcinoma e que apresenta a mutação do EGFR”.

EGFR é a sigla para Receptor do Fator de Crescimento Epidérmico, uma proteína presente num gene que sofre mutação durante o câncer de pulmão e é também um dos requisitos para o tratamento com o fármaco: “É um medicamento que já é utilizado há vários anos no tratamento de um tipo específico de câncer de pulmão, que é o câncer de pulmão que apresenta uma mutação, uma alteração lá no DNA do tumor, num gene que é responsável pela proteína EGFR; 25% dos pacientes com um tipo específico de câncer de pulmão, o adenocarcinoma, apresenta essa alteração molecular, a mutação do EGFR”. 

A descoberta do Osimertinibe não anula a necessidade de cirurgia nem da quimioterapia. “O que a gente já sabia anteriormente do tratamento dessa doença não deixou de ser válido. Ou seja, é preciso operar quando dá para operar, precisa fazer quimioterapia quando tem que fazer quimioterapia. A informação nova foi justamente esse ganho de sobrevida.” Nem todos os pacientes vão precisar desse tipo de tratamento. Apenas com a detecção da mutação do EGFR, via exame, é que o medicamento deve ser recomendado pelos médicos. 

·        Descobrindo o câncer de pulmão

O médico destaca que o câncer de pulmão normalmente demora a ser percebido por quem o tem e que isso prejudica as chances de cura. “Infelizmente, nos estágios iniciais, o paciente não apresenta sintomas que a gente observa naqueles pacientes que têm câncer de pulmão avançado. Os sintomas que os pacientes apresentam são sintomas gerais, como emagrecimento, perda de apetite e perda de energia para fazer as coisas. São sintomas muito discretos que as pessoas confundem com alguma pequena infecção, algum resfriado, uma gripe.” 

Por isso, a atenção e os cuidados com a saúde devem ser constantes. “Recomendações gerais de atenção à saúde, como ter uma dieta saudável, prática de exercício físico, evitar fazer sexo desprotegido são medidas de saúde que vão acabar prevenindo de outros cânceres. Além desses, deve-se evitar o tabagismo, que é o principal fator de risco para câncer de pulmão.

 

Fonte: Jornal da USP

 

O que é a 'polinização cruzada' na política, que faz extremistas usarem argumentos da direita e da esquerda

Uma imagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — um líder de esquerda — com elementos do nazismo passou a circular em redes sociais como o X (antigo Twitter) depois da comparação feita por Lula entre a guerra em Gaza e o holocausto.

As montagens de Lula com o bigode de Hitler e rodeado de suásticas, no entanto, não se tratavam de críticas ou ironia ao discurso do presidente brasileiro, e nem de usuários falsos que tentam prejudicar a imagem de Lula — mas sim de manifestações de apoio.

Elas foram publicadas por extremistas que abraçam ideias políticas de diferentes vertentes conforme elas sejam convenientes às suas visões pessoais.

"Usuários da rede, criaram, inclusive, o termo 'lulismo esotérico' [fazendo uma relação direta com o 'hitlerismo esotérico', interpretações místicas dadas ao nazismo no contexto do pós-guerra] e estão produzindo propaganda", afirma a pesquisadora Michele Prado, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP (Universidade de São Paulo) e fellow na organização Social Change Initiative em Belfast, Irlanda do Norte.

Embora as ideias sejam aparentemente antagônicas, de acordo com a pesquisadora, o episódio se trata de um exemplo claro do conceito de "polinização cruzada".

Na natureza, esse termo se refere a um processo em que o pólen é transferido entre flores de plantas diferentes para promover a fertilização e diversidade genética.

Já no contexto discurso político, é usado para ilustrar a troca ou mistura de ideias extremistas entre grupos de espectros políticos aparentemente antagônicos.

E o presidente de esquerda brasileiro associado ao nazismo não é o único exemplo, como mostraremos ao longo desta reportagem.

·        Mistura de ideologias

Em 2020, Christopher Way, diretor do FBI, usou o termo "salad bar ideology" (algo como "ideologia self-service"), para descrever essa mistura de ideias que culminam em um extremismo violento.

Segundo Way, para quem trabalha com antiterrorismo, tentar encaixar os discursos em categorias bem definidas é um desafio.

"Uma das coisas que vemos cada vez mais são pessoas fazendo misturas confusas, uma variedade de ideologias diferentes."

De acordo com David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita, um dos objetivos desses grupos extremistas é fazer oposição às ideologias dominantes.

"Temos um conjunto de ideias apoiadas por uma maioria e sustentadas em pilares liberais, como política parlamentar, tripartição de poder, respeito pelos direitos das minorias e a definição do papel do estado na economia. Grupos extremistas, sejam de direita ou de esquerda, buscarão desafiar essas bases no espectro ideológico."

Esses grupos, de acordo com os pesquisadores ouvidos na reportagem, escolhem partes de diferentes ideologias de forma a criar um conjunto que responda à crenças e queixas pessoais - que podem ser legítimas ou não.

"Comunidades de extrema direita, por exemplo, geralmente odeiam a ideia do Islã, mas ao mesmo tempo, algumas abraçam partes do islamismo radical. Temos comunidades de extrema direita antissemitas que estão apoiando o Hamas nos ataques de 7 de outubro como um meio de incentivar uma 'limpeza étnica'", exemplifica.

O pesquisador menciona, ainda, a existência de um grupo neonazista cultista [satanista] que usa elementos islâmicos para se descrever e apoia ataques terroristas que ocorreram no Ocidente.

Apesar da mistura de ideias aparentemente opostas, há também pontos de convergência entre os extremistas de diferentes "linhas". Entre eles, os pesquisadores citam: a crença em teorias da conspiração, posicionamentos anti-LGBTQIA+ e o antissemitismo.

Moustafa Ayad, diretor-executivo do ISD (Institute for Strategic Dialogue), explica as imagens de Lula associadas ao nazismo como uma oportunidade usada por extremistas para alcançar pessoas de grupos diferentes.

"Em certos casos, ao manifestar uma oposição a Israel, eles acentuam essa postura como uma declaração contra a fé judaica em sua totalidade."

"Hitler é considerado um reflexo desse pensamento. Se uma figura pública como Lula adota uma posição que pode provocar essa resposta, os extremistas veem isso como uma oportunidade estratégica para interseccionar e disseminar essas ideias de maneira mais ampla. É uma oportunidade de aproximá-los de uma audiência específica que eles não podiam alcançar antes."

Michele Prado menciona o grupo 'Nova Resistência' como mais um exemplo de polinização cruzada no cenário brasileiro.

"Trata-se de um grupo neo-fascista que incorpora uma variedade de conceitos provenientes de diversas ideologias extremistas, formando uma abordagem única. Essa estratégia, inclusive, visa ampliar sua base de apoio e recrutar mais adeptos."

Na avaliação de Prado, a Nova Resistência mistura conceitos de extrema esquerda, como o nacional-revolucionarismo (transformação radical da sociedade), terceiro-mundismo (cooperação entre países em desenvolvimento), nacional-bolchevismo (síntese entre ideias bolcheviques e nacionalismo), até extrema direita violenta, incorporando conceitos neo-fascistas (ressurgimento de ideias associadas ao fascismo).

"A Nova Resistência faz esse extremismo híbrido, e isso se reflete inclusive nos números, como eles conseguiram aumentar consideravelmente o número de seguidores no canal deles, no YouTube. E os discursos deles estão muito disseminados, inclusive, em veículos de mídia alternativa da esquerda. O grupo é um bom exemplo, um exemplo assim do extremismo híbrido, onde ocorre essa polinização cruzada de forma estrutural, inclusive."

Prado aponta que o o grupo também expressa discursos antissemitas, antiliberalismo político e se coloca contra pautas LGBTQIA+.

Uma das figuras públicas que já demonstrou afinidade com o grupo foi o deputado Robinson Farinazzo (PDT-SP), que em 2022 posou para uma foto na Avenida Paulista ao lado de militantes que seguravam uma bandeira com uma estrela verde e as letras "NR" ao centro.

O grupo, inclusive, apoiou campanhas de candidatos do PDT, como a o próprio Farinazzo, de Cabo Daciolo e Aldo Rebelo (que tentaram vagas no Senado por Rio de Janeiro e São Paulo).

A BBC News Brasil procurou o grupo e os políticos citados, mas não obteve resposta.

·        Como surgiu a polinização cruzada?

Michele Prado aponta que há indícios da chamada "polinização cruzada" desde os anos 90, quando a internet começou a ser democratizada.

"Na época, os ideais extremistas eram compartilhados em fóruns online de forma mais unilateral. Você tinha um produtor de conteúdo e um receptor passivo. E uns dos primeiros grupos a utilizar essa ferramenta da internet foram os neonazistas, que entenderam o quanto aquilo seria um instrumento para amplificar suas ideias além de fronteiras físicas."

O fenômeno tomou uma nova forma, de acordo com a pesquisadora, entre os anos 2000 e 2010, quando as pessoas começam a ser produtoras, mas ainda em um ritmo menor.

"A partir disso o Estado Islâmico, por exemplo, conseguiu radicalizar pessoas online, inclusive de países em paz."

Para Prado, o cenário atual é mais complexo, já que com as redes sociais, os indivíduos não são apenas consumidores passivos de conteúdo extremista, mas também produtores ativos.

·        As redes sociais como ferramenta de amplificação

"Hoje, enfrentamos um cenário chamado de extremismo pós-organizacional, onde não existem mais estruturas hierárquicas como antes, nos anos 2000. Para ser um extremista afiliado a um grupo não é mais necessário passar por processos de iniciação ou ter contato com um radicalizador."

É aí, aponta a pesquisadora, que surgem interações antes pouco prováveis entre extremistas que possuem ideologias que podem parecer opostas, mas que têm pontos convergentes.

A falta de um líder claro, analisa Moustafa Ayad, faz com que cada influenciador possa agir online isoladamente, sem a necessidade de um grupo por trás dele.

"Alguns deles estão vinculados a grupos formais, mas escolhem e selecionam entre os grupos aos quais estão afiliados, ou afirmam não ter filiação e estão apenas promovendo uma ideologia."

As redes sociais tornaram mais fácil o acesso a discursos extremistas.

Se antes uma pessoa precisava de muita pesquisa para chegar a comunidades extremistas — e poderia passar sua vida sem saber da existência delas — agora pode ser impactada facilmente por diferentes ideais violentos sem dificuldade.

Espaços não vigiados, como o Telegram, são câmaras de eco e muito propícios para a proliferação de ideias extremistas, aponta David Magalhães.

O pesquisador conta um exemplo de polinização cruzada que detectou ao acompanhar grupos dentro dessa rede social durante a pandemia.

"A direita criticava as ‘big pharmas' [grandes farmacêuticas], mas com uma visão populista, que acredita que o poder está sendo controlado por uma elite (corrupta) e há a necessidade de devolver o poder ao povo (puro). Em certa medida, essas ideias encontraram correspondência com discurso de parte da esquerda que tem um discurso anticapitalista, contra os grandes conglomerados econômicos."

Moustafa Ayad complementa dizendo que há uma dificuldade em barrar grupos com discursos criminosos.

"Lembro-me de uma repressão a grupos brasileiros no Telegram devido à promoção de ideologias neonazistas. Mas essas comunidades persistem, uma vez que é viável derrubar canais, mas eles se reconstituem rapidamente. Ao alterarem seus nomes ou se desvincularem de uma estrutura formalizada, conseguem recriar-se de maneira constante."

A falta de clareza também dificulta o monitoramento de pesquisadores e agentes de segurança pública que atuam no combate ao terrorismo e ataques violentos.

"Como as autoridades policiais, por exemplo, definiriam uma possível ameaça que mistura neo-nazismo, mostrando forte apoio ao Terceiro Reich, mas se identificam como pessoas de esquerda, propagando também ideias do nacional-socialismo? É complexo, e muitas vezes a confusão impede que sejam classificados como perigosos", diz Ayad.

·        Perigos da popularização do discurso extremista

Ainda que sejam grupos minoritários, Ayad aponta que esses extremistas podem influenciar outros a cometerem ataques.

"Esse extremismo composto, inclusive, foi notado nas evidências de investigações dos criminosos que cometeram alguns ataques a escolas no Brasil", afirma Michele Prado.

"É o caso de Cambé, no Paraná, onde o jovem que cometeu os crimes havia se radicalizado em mais de um tipo de ideologia."

Os ataques, conforme explicam os pesquisadores, não são necessariamente em massa, direcionados a grandes grupos como são os que focam em escolas.

Podem ser também direcionados a indivíduos, com motivação ideológica, de raça ou de gênero, conclui Prado.

 

Fonte: BBC News Brasil