Ato anti-judeu na região russa de Daguestão aponta riscos da relação de
Putin na guerra de Israel e o Hamas
O presidente russo, Vladimir Putin, orgulha-se de
ser o líder daquilo que chama de uma Rússia “multinacional e multiconfessional”.
E a república de Daguestão é, em muitos aspectos, um microcosmo da diversidade
da Rússia: a região montanhosa abriga mais de 30 grupos étnicos com línguas
distintas.
Mas imagens de manifestantes antissemitas invadindo
o aeroporto Makhachkala Uytash, em Daguestão, abalaram a comunidade judaica
russa, alimentaram a indignação internacional e levantaram sérias questões
sobre a repercussão da guerra de Putin na Ucrânia – agora, na opinião do líder
russo, diretamente ligada aos acontecimentos em Gaza.
Na segunda-feira (30), o líder do Kremlin realizou
uma extensa reunião para abordar a situação em Daguestão, onde manifestantes –
incitados por rumores de que judeus e israelenses estavam a bordo de um voo da
Red Wings Airlines que aterrissou no domingo (29) saindo de Tel Aviv –
invadiram o terminal e a pista do aeroporto.
Membros da multidão fora do aeroporto seguravam
cartazes que incluíam slogans como “somos contra os refugiados judeus” e “não
há lugar para assassinos de crianças em Daguestão”.
Segundo a agência de notícias estatal russa TASS,
“aqueles reunidos se opõem ao conflito palestino-israelense”.
As autoridades disseram que pelo menos 20 pessoas
ficaram feridas e 60 pessoas foram detidas. O porta-voz do Departamento de
Estado, Matthew Miller, disse que o incidente “parecia um pogrom” [perseguição
a grupo étnico ou religioso].
O gabinete do primeiro-ministro israelense e o
Ministério das Relações Exteriores divulgaram uma declaração conjunta no
domingo (29) após a notícia, dizendo que Israel espera que a aplicação da lei
russa “salvaguarde o bem-estar de todos os cidadãos israelenses e judeus onde
quer que estejam e tome medidas fortes contra o desordeiros e contra o
incitação de selvageria dirigida a judeus e israelenses”.
Nas suas observações de segunda-feira, Putin apelou
às autoridades para que tomem “ações firmes, oportunas e precisas para ajudar a
proteger a ordem constitucional da Rússia, os direitos e liberdades dos nossos
cidadãos, a harmonia interétnica e inter-religiosa”.
Mas o líder do Kremlin também desviou a culpa da
Rússia.
“Os acontecimentos de ontem à noite em Makhachkala
foram inspirados pelas redes sociais”, afirmou Putin, insinuando que a Ucrânia
e “as mãos das agências de inteligência ocidentais” exploraram as emoções que
existiam em Daguestão devido à incansável campanha militar de Israel contra o
Hamas em Gaza e ao aumento das baixas civis.
“Só podemos ajudar a Palestina na luta contra
aqueles que estão por trás desta tragédia”, disse Putin, acrescentando: “Nós, a
Rússia, estamos a combatê-los no âmbito da Operação Militar Especial”, o
eufemismo oficial que utiliza para a guerra em curso da Rússia na Ucrânia.
Tais observações exigem uma análise séria.
Desde os ataques do Hamas de 7 de outubro, Putin
tem desempenhado um delicado ato de equilíbrio internacional, apresentando-se
como um potencial mediador e apelando à contenção de ambos os lados – uma
posição que mereceu elogios do Hamas.
E nas suas observações de segunda-feira, Putin fez
a sua crítica mais contundente a Israel até à data, dizendo que “acontecimentos
horríveis” na Faixa de Gaza “não podem ser justificados” e que “os punhos se
fecham e que fica com lágrimas nos olhos” quando você vê fotos de “crianças
mortas e ensanguentadas”.
• Região
tensa da Rússia
Tais imagens provocaram a ira em Daguestão, uma república
majoritariamente muçulmana que tem sido historicamente o lar de uma variedade
de práticas religiosas islâmicas.
Tem uma população judaica minúscula – o judaísmo é
uma das religiões há muito estabelecidas em Daguestão, praticada por
comunidades de judeus da montanha, que falam uma forma de persa – mas depois de
séculos de coexistência com vizinhos muçulmanos, essa população diminuiu devido
à emigração.
Mas os apelos de Putin para conter a crise em Gaza
nos últimos dias irritaram Israel.
O embaixador da Rússia em Israel foi convocado ao
Ministério das Relações Exteriores em Jerusalém em protesto contra uma visita
na semana passada a Moscou de uma delegação do Hamas, de acordo com um
comunicado de imprensa do Ministério das Relações Exteriores de Israel no
domingo.
Putin, porém, está tocando para públicos
diferentes. A Rússia tem uma rede complexa de relações no Oriente Médio: Putin
apoia o presidente sírio, Bashar al-Assad (um inimigo de Israel); ele depende
do Irã (outro inimigo de Israel) para obter um estoque de drones para atacar a
Ucrânia; e ele é um amigo do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman,
outro ator poderoso na região.
Ele também manteve relações de trabalho cordiais
com homólogos israelenses, embora seu relacionamento com o primeiro-ministro
israelense, Benjamin Netanyahu, tenha esfriado.
Mas essas dinâmicas regionais ofuscam um panorama
mais amplo: Putin se apresentou como estando envolvido numa luta existencial
contra os Estados Unidos e o Ocidente, sendo a Ucrânia o principal campo de
batalha.
A sua retórica – dirigida contra “aqueles que estão
por detrás desta tragédia” – parece agora traçar uma linha direta entre a
Ucrânia e Gaza.
Nas suas observações de segunda-feira, Putin acusou
os EUA de alimentar o conflito do Oriente Médio, afirmando que “os Estados
Unidos precisam de um caos constante no Médio Oriente, por isso desacreditam os
países que insistem no cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza”.
Em resposta a Moscou, o Coordenador do Conselho de
Segurança Nacional para Comunicações Estratégicas, John Kirby, disse: “Ouvimos
grilos vindos do Kremlin”, sobre a multidão do aeroporto.
“Nada, nenhuma condenação, nenhum apelo à cessação
do ódio, da discriminação e da intolerância”, disse Kirby, acrescentando: “É a
retórica clássica russa que quando algo corre mal no seu país… culpe outra
pessoa, culpe as influências externas”.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse
que o motim em Daguestão sinaliza que a Rússia está “perdendo o controle”.
Os observadores também foram rápidos em notar que a
preocupação expressa por Putin sobre as vítimas civis em Gaza soa vazia.
Os seus militares continuam uma guerra implacável
contra a Ucrânia, uma campanha que tem como alvo infra-estruturas civis e
arrasou cidades. O Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de
prisão para o presidente russo pela conduta do seu país durante a guerra.
Mas Putin conta com uma estratégia que já rendeu
dividendos: a nível internacional, os diplomatas de Moscou têm pressionado uma
ofensiva global de relações públicas que apresenta a Rússia como uma potência
anticolonial convicta, ganhando apoio no Sul Global – mesmo enquanto dá continuidade a uma guerra de conquista na
Ucrânia.
• Retórica
anti-Israel
A mídia estatal russa repetiu essa narrativa em
casa. Desde os ataques do Hamas a Israel, em 7 de outubro, alguns comentaristas
e políticos da televisão estatal russa aumentaram suas críticas a Israel, à
medida que a guerra em Gaza desvia convenientemente a atenção internacional da
Ucrânia.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores
da Ucrânia, Oleh Nikolenko, acusou Moscou de tentar transferir a
responsabilidade. “As ameaças de exterminar os judeus são o resultado do
trabalho da propaganda estatal russa, que durante décadas cultivou sentimentos
de ódio contra outros povos entre os russos”, observou ele.
Mas, como demonstraram os tumultos em Daguestão, a
retórica anti-Israel pode rapidamente desviar-se do roteiro.
No início deste mês, Ramzan Kadyrov, o senhor da
guerra pró-Kremlin que governa a vizinha república russa da Chechénia,
expressou “apoio total” à Palestina e apresentou a ideia de mobilizar as suas
forças “pacificadoras” para resolver o conflito entre Israel e o Hamas.
Esta pode parecer uma ideia absurda – Kadyrov tem
um péssimo histórico em matéria de direitos humanos – mas durante quase duas
décadas, o homem forte checheno ajudou Putin a manter uma paz brutal e
inquietante no norte do Cáucaso da Rússia, uma região que inclui Daguestão.
Kadyrov também forneceu soldados para a guerra da Rússia na Ucrânia.
Portanto, manter a paz em Daguestão é provavelmente
concentrar as mentes do Kremlin. Os protestos eclodiram no ano passado na
república em resposta às ordens de mobilização do governo russo, com alguns
ativistas se queixando de que as minorias étnicas estavam sendo recrutadas
injustamente para o serviço na Ucrânia. A guerra de Gaza acrescenta mais um
fósforo ao fogo.
Num comentário atentamente observado sobre os
acontecimentos de domingo, Harold Chambers, do site independente de observação
da Rússia Riddle Russia, apontou a situação económica sombria de Daguestão e a
guerra na Ucrânia como fatores que alimentam o descontentamento local.
“A tentativa de pogrom não está apenas enraizada em
mensagens antissemitas, mas na dinâmica sistêmica da região”, escreveu ele.
“As condições socioeconômicas gerais continuam a se
deteriorar. As necessidades básicas de vida, como eletricidade, água e gás, são
fornecidas irregularmente, o que levou a pequenos protestos há alguns meses.
Além disso, a guerra da Rússia na Ucrânia teve um forte impacto em Daguestão,
com baixas significativas. Os apelos públicos e as pequenas ações normalmente
não são bem sucedidos, sendo as autoridades rejeitadas”.
A jornalista investigativa russa Yevgenia Albats
foi igualmente contundente em sua análise.
“Existem antissemitas em Makhachkala?”, ela
escreveu no X. “Sim, claro. Eles já estiveram lá antes? Sim, claro. O que
aconteceu agora? Vinte meses de guerra, preços crescentes, centenas, senão
milhares de homens mortos, a pressão está se acumulando e exige uma
libertação”.
A campanha de informação da Rússia, acrescentou
ela, é uma ferramenta conveniente, apresentando “uma imagem para o Oriente
Médio, o Irã, para o Sul Global: a Rússia está com vocês, Putin é o líder do
mundo antiamericano”.
Putin tem jogado durante meses um jogo geopolítico
arriscado, apostando na desconfiança antiocidental para reforçar o apoio à sua
guerra contra a Ucrânia. Mas um motim anti-judeu na região sul de Daguestão
mostra quão rapidamente esse modelo pode sair pela culatra, especialmente para
aqueles que estão presos no eco da propaganda estatal russa.
Ø Homo sapiens sapiens: Gaza, o fracasso da espécie, afirma Marcos
Roitman Rosenmann
Não posso deixar de me espantar. O que ouço e vejo
é a razão da irracionalidade. O Egito abre
um corredor humanitário em sua fronteira com Gaza para que entrem 20 caminhões com alimentos,
água e medicamentos na Palestina,
cuja população está bloqueada por decisão de Israel. A comunidade internacional, Nações Unidas, União Europeia, OTAN, demonstra satisfação. Os meios de comunicação
comentam tal ato como um triunfo humanitário. Aplaudem e pedem mais trailers
autorizados.
Enquanto isso, Israel convida para que a zona norte de Gaza seja abandonada, prolongando
seus bombardeios. É o mundo de cabeça para baixo. Membros da espécie humana praticam o
extermínio de seus semelhantes, com a anuência de outros seres humanos. Suas
razões, sejam quais forem, demonstram o desprezo pela vida. A esta altura,
alguém deve estar se perguntando, se já não fez isto, como chegamos até aqui?
Em vez de promover a paz, líderes mundiais
estimulam a guerra,
exigindo que suas regras sejam respeitadas. É preciso matar sem exagerar. Com
argumentos canalhas, clamam que Israel tem
o direito de se defender, concedendo uma licença para cometer o genocídio do povo palestino.
O que se diz de Israel serve para o genocídio dos povos originários e para as
mais de 30 guerras ativas que sacodem o planeta. Não importa se você é um
conservador, liberal, progressista ou da autodenominada esquerda democrática,
todos confluem: é preciso salvar o capitalismo a
qualquer preço, mesmo que isso signifique o fim da nossa espécie.
Para não cair em duplas ou triplas morais, falo do
humano que nos faz humanos. Os milhares de migrantes mortos no Mediterrâneo deveriam
ser um exemplo suficiente da desumanização que nos afeta.
Não se conhece espécie social que pratique a
guerra, a competitividade, a exploração, estimule o ódio, a inveja e a
desigualdade como parte de sua organização social. Também não há evidências de
espécies cuja existência resulte no colapso de seu nicho ecológico. As crises de extinção são alheias à
vontade dos seres vivos que habitam o planeta.
Agora, se nos atermos ao Homo sapiens sapiens, essa máxima não se aplica.
Um ser que sabe que sabe, reflete e tem consciência de seus atos, acaba se
esquivando de suas responsabilidades. O humano, a relação ética que une a
natureza biológica e social, é negado em prol de justificar seus holocaustos.
Refiro-me aos fatos.
Nos últimos 100 anos, o ser humano provocou
duas guerras mundiais,
lançou bombas atômicas sobre a população civil, desenvolveu armas químicas e biológicas com o
objetivo de impor uma vontade, seja a favor de uma raça, de um deus ou uma
razão cultural. Aviões, drones, submarinos, porta-aviões, tanques de guerra.
Tecnologias de morte criadas para gerar terror, medo e submissão.
Os cidadãos do mundo protestam, levantam a voz,
saem às ruas, pedem o fim das guerras, desnudando as vergonhas de seus
dirigentes. No entanto, nada muda. Ouvidos surdos. A desumanização avança em ritmo
acelerado. O verdadeiro vencedor do processo de desumanização é o complexo
financeiro-industrial-militar. Na página
digital Estrategias de
Inversión, a jornalista Raquel
Jiménez publica o atual artigo As empresas armamentistas, as grandes beneficiadas do conflito entre
Israel e Hamas na bolsa.
Desde a escalada do conflito palestino-israelense, dirá, quatro empresas estadunidenses viram
subir os seus valores na bolsa e aumentar seus lucros. A Lockheed Martin recebeu mais de
5,7 bilhões de dólares em contratos com Israel. As ações da Raytheon
Technologies sobem desde o dia 7 de outubro, 5,5%. A General Dynamics obtém um lucro
de 9,3% e a Northrop Grumman,
a quinta maior fabricante de armas do mundo, tem uma rentabilidade de 15,5%, em
10 dias.
Junto a isso, deve-se somar os altos retornos da
companhia francesa Dassaut Aviation,
com 8,3%; a britânica BAE Systems,
a segunda maior contratista militar do mundo, com lucros de 9,6%, e as
alemãs MTU Aero Engines e Rheinmetall AG, cujas ações demonstram
uma alta de 4 e 15%, desde o dia 7 de outubro. Sem nos esquecer do grupo
italiano Leonardo, que está
com lucros anuais máximos.
A espécie
humana fracassou. O que nos torna humanos, o reconhecimento do
outro, a empatia diante do sofrimento, enclausurou-se em nome dos
poderosos. Primo Levi, em sua Trilogia de Auschwitz, define a desumanização. É assim que o povo palestino deve se sentir hoje:
“Pela primeira vez, então, percebemos que a nossa
língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem.
Em um instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada:
chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível: uma condição humana mais
miserável não existe, não dá para imaginar. Não temos nada nosso. (…) Vão nos
tirar até o nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar dentro de nós
a força para tanto, para que, além do nome, algo nosso, algo do que somos,
permaneça (…). Na história e na vida, parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei
feroz que soa: a quem já tem, será dado, de quem não tem, será tirado”. Esse
algo é a dignidade. Por isso, luta-se.
Fonte: CNN Brasil/La Jornada
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