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dentro da KK Park, a fábrica de fraude online que explorava brasileiros
Aaron mal podia acreditar na própria sorte: uma
companhia de tecnologia da Tailândia lhe oferecera o emprego de seus sonhos – salário alto, benefícios
generosos, uma via para escapar de um futuro desolador no sul da África.
"Eu torcia para ir trabalhar em outro continente, e um dia me contataram.
Eu achava que tudo era legítimo – até que cheguei a Bangcoc."
A Organização das Nações Unidas calcula que mais de
100 mil indivíduos estão confinados nos centros de fraude online de Mianmar, num regime praticamente de escravidão.
A equipe investigativa da DW encontrou-se com
diversos sobreviventes de uma dessas "fábricas", o KK Park, que
descreveram vigilância rigorosa, tortura e até assassinatos.
No aeroporto, Aaron teve uma recepção calorosa e
foi convidado a entrar num carro, junto com dois outros jovens da África
Oriental. "Achávamos que iríamos para um hotel que fica talvez a uns dez
minutos do aeroporto. Mas o motorista tomou outra direção."
Depois de quase oito horas de viagem, o grupo
chegou à cidade fronteiriça de Mae Sot, no norte tailandês, onde foi
transportado através do rio Moei até o estado de Kayin, região de Mianmar
devastada por uma guerra pela independência.
"Tinha gente com armas. Eles disseram que era
para entrarmos no barco. E nós atravessamos", relata Aaron.
Dali, ele e seus companheiros foram levados para o
KK Park, uma central onde milhares são forçados a ações criminosas, enganando
internautas dos Estados Unidos, Europa e China. Imagens de satélite mostram um complexo semelhante a um presídio, que
foi construído em 2020. Desde então, sua área quadruplicou.
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'Abate de porcos' e maus-tratos sistemáticos
"A gente trabalhava 17 horas por dia, nada de
reclamações, sem feriados, sem descanso", conta o jovem Leon, da África
Oriental, que foi mantido à força 12 meses na central de fraudes online.
"E se a gente dizia que queria ir embora, eles
ameaçam que iam vender a gente – ou matar."
Chegando ao KK Park, Aaron, Leon e os demais
receberam instruções sobre como praticar os golpes. Sua tarefa era convencer os
"clientes" – como são denominadas internamente as vítimas – a
investirem em criptomoedas.
Estes pensavam ter depositado suas economias em
investimentos lucrativos, mas ao invés disso o dinheiro entrava numa conta
controlada pelos criminosos. Assim que se alcançava uma determinada soma, as
contas eram zeradas.
Esse tipo de golpe online é apelidado pig
butchering (abate de porcos): os trapaceiros engordam suas vítimas e em seguida
as levam para o matadouro.
Os manuais distribuídos à chegada no centro
descreviam em detalhes como estabelecer confiança e se aproveitar dos pontos
fracos dos alvos. Por exemplo: "Seja engraçado. Os clientes devem se
apaixonar por você ao ponto de esquecer tudo".
Havia metas semanais: uma soma determinada que os
"agentes de venda" à revelia deviam arrecadar ou um número de
"clientes" para entrar em contato. Quem não alcançava essas metas,
era punido.
"Quem até o meio-dia não conseguisse nenhum
novo cliente, ficava sem almoço. Se alguém reparasse que deixou de responder a
um chamado, você era espancado, ou forçado a ficar horas de pé", conta
Leon.
Vídeos e os relatos de prisioneiros anteriores da
fábrica de fraudes confirmam torturas psíquicas e físicas sistemáticas.
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Conexões com a máfia internacional chinesa
Confrontados com imagens exclusivas tiradas do
interior do complexo, todos os entrevistados reconheceram os crachás nos
uniformes dos guardas: trata-se das insígnias da Força de Guarda de Fronteira,
um grupo de ex-rebeldes que deixou de combater a junta militar birmanesa uma
década atrás, em troca do controle total sobre seus territórios.
Os soldados policiam o KK Park, mas os chefes da
operação são chineses, de acordo com diversas fontes.
A trilha de pagamentos de diversas vítimas de
fraude leva até as carteiras de criptomoedas usadas pelo KK Park para coletar
as economias dos defraudados. De lá, o dinheiro é distribuído por outras
carteiras que funcionam como contas digitais para armazenar criptos.
Uma delas foi aberta por Wang Yi Cheng, um
empresário chinês residente na Tailândia. Ele recebeu dezenas de milhares de
dólares em criptomoedas de carteiras usadas pelo KK Park, e integra uma rede
maior, de empresários chineses no exterior, que inclui um notório chefão da
máfia chinesa.
No período em que recebia transferências diretas de
carteiras geridas pela fábrica de fraudes tailandesa, Wang era vice-presidente
da Thai-Asia Economic Exchange Association, uma associação sediada em Bangcoc
que promove relações entre a Tailândia e a China.
A Thai-Asia partilha seu edifício-sede com o
Overseas Hongmen Culture Exchange Center, que em 2023 foi alvo de uma batida
policial, juntamente com outros centros da Hogmen, por operar ilegalmente e
servir como fachada para o crime organizado chinês.
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A serviço da Nova Rota da Seda da China?
Essas organizações têm conexões estreitas com Wan
Kuok Koi, conhecido como "Broken Tooth".
Ex-líder da tríade 14K, depois de passar mais de
dez anos na prisão por atividades criminosas em Macau, ele fundou em 2018 a
World Hongmen History and Culture Association. Nesse ínterim ela foi submetida
a sanções pelos Estados Unidos, devido a seu envolvimento com o crime
organizado.
Jason Tower, especialista em crime organizado do
americano Institute for Peace, menciona que Wan Kuok Koi gosta de repetir que
costumava lutar pelos cartéis, mas agora luta pelo Partido Comunista da China.
De fato, sua organização Hongmen também promove a
ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), um projeto
de infraestrutura trilionário, também conhecido como Um Cinturão, Uma Rota ou
Nova Rota da Seda, visando integrar a China ainda mais à economia global.
O terreno em que foi construído o KK Park é uma
área-alvo dos investimentos da China na BRI: relatórios do governo saudavam
projetos de construção em suas proximidades, embora mais tarde Pequim tenha se
distanciado, devido a alegações de fraude em ampla escala.
O complexo em si não é mencionado nos comunicados
oficiais da China, nem foi palco de cerimônias pioneiras, como as realizadas em
outros projetos de construção na área.
Em vez disso, o KK Park foi construído sob medida
para a aplicação de golpes online. Soldados armados vigiam todas as entradas, e
há câmeras de vigilância por toda parte.
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De volta a casa: o fim do pesadelo
As relações de poder nebulosas na região de
conflito de Kayin, na fronteira birmanesa, proporcionam solo fértil a
atividades criminosas. O KK Park é apenas uma de pelo menos dez fábricas de
golpes online da área.
Suas operações ilícitas remontam a uma complexa
rede de firmas e associações usadas por criminosos para legitimar seus crimes e
"lavar" milhões em capital originário de fraudes. As ações estão se
expandindo continuamente do sudeste da Ásia para a África, Europa e América do
Norte.
"Estamos realmente vendo que essas redes
criminosas se tornam cada vez mais poderosas, mais influentes, e mais
ramificadas em países de todo o mundo", comenta Tower. "E os esforços
de aplicar a lei só estão tocando a ponta do iceberg."
Aaron e Leon tiveram sorte. Depois de o salário
lhes ser negado diversas vezes, eles e outros prisioneiros se recusaram a
continuar trabalhando, e receberam ordem de arrumar seus pertences.
"Escutei eles dizendo que iam nos vender para uma outra organização",
recorda Leon.
Os jovens africanos reagiram rápido e conseguiram
contatar o ativista australiano Judah Tana, conhecido por auxiliar refugiados
na fronteira Mianmar-Tailândia. E assim, Aaron e Leon escaparam, escondidos no
banco de trás de seu jipe.
Algumas semanas depois, ambos puderam retornar a
seu país de origem: seu pesadelo de tráfico humano e escravidão chegava ao fim.
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Brasileiros estão entre as vítimas do KK Park
É de lá que dois brasileiros escaparam no último
domingo (9), ao lado de dezenas de outros imigrantes explorados. A operação foi
viabilizada com a ajuda da ONG internacional "The Exodus Road",
segundo informado por parentes das vítimas à imprensa brasileira.
Luckas Viana dos Santos, 31, e Phelipe de Moura
Ferreira, 26, foram atraídos por promessas falsas de emprego e terminaram
vítimas de tráfico humano. Segundo familiares, eles eram mantidos em cárcere
privado no local e foram obrigados a aplicar golpes financeiros por mais de
três meses.
Após negociações com autoridades locais, a dupla
conseguiu ser transferida para a Tailândia. De lá, devem ser repatriados ao
Brasil.
Em entrevista ao jornal O Globo, a
coordenadora da Exodus Road Brasil, Cintia Meirelles, informou que outros oito
brasileiros seguem sendo explorados pela máfia de golpes.
¨
'Perna e braço vermelhos de tanto choque e paulada',
diz pai de brasileiro vítima de tráfico humano em Mianmar
O pai do brasileiro
Phelipe de Moura Ferreira, de 26 anos e que foi resgatado depois
de fugir da área onde era mantido refém por uma máfia de golpes cibernéticos em
Mianmar, no Sudeste Asiático, contou ao g1 que
fez videochamada com o filho na manhã desta
quinta-feira (13) e viu as marcas das agressões que ele sofreu.
"Ele ligou para mim e mostrou o machucado
dele. Está com perna toda vermelha, braço todo vermelho, de tanto choque e
paulada que levava lá. Aqueles malditos", afirmou Antônio Carlos Ferreira.
Além de Phelipe, o brasileiro Luckas Viana dos
Santos, de 31 anos, também foi resgatado com
a ajuda da ONG internacional "The Exodus Road" após fugir do local. Na operação de resgate, os dois foram levados para um centro de
detenção em Mianmar, e foram transferidos para a Tailândia (veja mais abaixo).
Conforme Antônio, ele foi avisado que neste sábado
(15) a embaixada brasileira irá retirar Phelipe e Luckas da base militar onde
estão em Mae Sot, Tailândia, e irá levá-los para Bangkok.
"Ainda não temos previsão de quando vai vir
pro Brasil, mas o que já sabemos é que logo serão retirados da base de onde
estão pela embaixada. Depois vai ser feito o processo de repatrição",
afirmou.
A mãe de Luckas também foi informada sobre essa
retirada que será feita pela embaixada e se diz aliviada. "Ele me ligou na
madrugada e está bem, graças a Deus. E agora eu estou bem", afirmou Cleide
Viana.
·
Brasileiro avisou fuga à família
Phelipe de Moura Ferreira chegou a avisar o pai que
tentaria a fuga no último sábado (8). Nas
mensagens, às quais o g1 teve
acesso, ele contou que ia cruzar um rio com outras 85 pessoas e correr por dois
quilômetros.
Phelipe pediu orações e ainda se despediu caso algo
acontecesse com ele (leia
prints abaixo).
"Ora por mim e pede para minha vó, Iorrana e
todo mundo orar por nós para que tudo dê certo. São 85 pessoas. Eu só quero que
tudo dê certo. Eu te amo, pai. Se acontecer algo comigo, saiba que eu tentei ao
máximo", escreveu.
O pai de Phelipe, Antônio Carlos Ferreira, contou
ao g1 que o filho
conseguiu enviar mensagens por um número desconhecido em um momento em que
ninguém da máfia o monitorava.
"Ele me avisou sobre a fuga e à ONG também.
Estávamos só na expectativa e, graças a Deus, o meu filho foi resgatado. Estou
muito feliz, muito feliz mesmo. Você não sabe o que estou sentindo neste
momento", disse Antônio.
Como foram a fuga e o resgate
O Fantástico mostrou o caso de Luckas
e Phelipe, que são da capital paulista, em dezembro do ano passado. Os dois aceitaram promessas falsas de emprego e acabaram sendo
vítimas de tráfico humano em KK Park, em Mianmar. O local é considerado uma
"fábrica de golpes online" e ambos foram escravizados para aplicarem
golpes.
Phelipe e Luckas conseguiram fugir entre a noite de
sábado (8) e a madrugada de domingo (9) ao lado de centenas de imigrantes e
foram detidos por agentes do DKBA (Exército Democrático Karen Budista).
Na sequência, eles foram levados para um centro de
detenção da DKB, que fica em Mianmar, onde esperaram pela transferência para
Tailândia.
Ao g1,
Cíntia Meirelles, diretora da ONG The Exodus Road, explicou que a fuga foi
combinada pelos reféns, que conseguiram avisar familiares e ativistas sem que
fossem descobertos pelos mafiosos.
Como a ONG estava em diálogo com representantes do
governo da Tailândia para que 361 imigrantes fossem libertados de Mianmar,
Phelipe e Luckas acabaram incluídos nessa lista.
Segundo ela, ao chegarem na Tailândia, os
brasileiros ainda ficarão em um centro de detenção como parte de um
procedimento legal e serão liberados em seguida.
"No caso deles, a gente já tem toda a
documentação. É um procedimento legal e, em 15 dias, eles serão liberados.
Tendo a liberação, vão ser encaminhados para a embaixada que deve, aí sim,
cumprir o repatriamento", ressaltou.
Em nota, o Itamaraty informou que tomou
conhecimento do caso "com grande satisfação, da liberação de dois
brasileiros vítimas de tráfico de pessoas na fronteira entre Myanmar e
Tailândia".
"O Itamaraty, por meio de suas Embaixadas em
Yangon, no Myanmar, e em Bangkok, na Tailândia, vinha solicitando os esforços
das autoridades competentes, desde outubro do ano passado, para a liberação dos
nacionais. O tema foi também tratado pela Embaixadora Maria Laura da Rocha, na
ocasião na qualidade de Ministra substituta, durante a IV Sessão de Consultas
Políticas Brasil-Myanmar, realizada em Brasília, em 28 de janeiro último. Em
suas gestões, a Embaixadora Maria Laura da Rocha reforçou a necessidade de
esforços contínuos para localizá-los e resgatá-los", afirmou.
O Itamaraty também afirmou que o setor consular
manteve contato permanente com as famílias.
<><> Entenda o caso
Em entrevista ao Fantástico em
dezembro de 2024, Cleide Viana contou que o filho Luckas, que tem conhecidos na
Ásia, recebeu uma proposta para trabalhar em um cassino nas Filipinas.
Contudo, quando o cassino fechou, ele não tinha
dinheiro para voltar ao Brasil. Então, recebeu pelo Telegram o convite para
trabalhar num hostel (albergue) na Tailândia, mas se tornou refém de uma máfia.
"Ele falou que ia para Tailândia que lá era
mais barato e que o dinheiro que tinha dava para ir para lá. Estranhei o
primeiro telefonema porque ele disse que não estava bem", afirmou.
Também pelo Telegram, Phelipe de Moura Ferreira
recebeu uma proposta de trabalho numa central telefônica na Tailândia e topou.
Após aceitar a oferta, ele desapareceu.
Dias depois, conseguiu entrar em contato com a
família rapidamente pelo computador da empresa quando não tinha ninguém por
perto o monitorando. Passaportes e celulares foram apreendidos.
O jovem relatou à família que tinha sido
aprisionado por uma máfia de golpes cibernéticos. "Um dos chefes disse que
eu precisava trazer resultado para a empresa. Senão, eu iria ser agredido até
sexta-feira, que é amanhã. A gente tá fazendo tudo para tentar se manter
vivo", disse Phelipe, em mensagem enviada para o pai no ano passado.
*A DW alterou o nome das
vítimas do KK Park por razões de segurança.
Fonte: DW Brasil/g1
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