Rodrigo
Nunes: “Milei é um ideólogo, Bolsonaro é um oportunista político”
O
livro Bolsonarismo y extrema derecha global (Tinta Limón) do
doutor em filosofia e professor da Universidade de Essex, Rodrigo Nunes, é uma contribuição ao debate atual acerca das novas direitas
radicais que merece ser celebrada. Fazendo uma clara distinção entre Jair
Bolsonaro e o bolsonarismo como movimento social que extrapola o
ex-presidente do Brasil, Nunes faz
um tour pelos diferentes elementos que constituem esta
gramática da desintegração, assentada na polarização política, no conservadorismo reacionário e no negacionismo científico. O
autor brasileiro, em visita à Argentina para apresentar o seu livro, conversou
com a revista Ñ a respeito das semelhanças e diferenças entre o bolsonarismo e o mileísmo, as condições sociais que deram origem à extrema-direita no Brasil e o papel do “batalhas culturais” no cenário político atual.
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Eis a entrevista.
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Considero interessante a distinção que você
faz entre Bolsonaro como político e o bolsonarismo como fenômeno social que
extrapola o próprio Bolsonaro. Qual é o processo que dá origem ao bolsonarismo?
A
primeira coisa que é necessário distinguir, a partir da campanha presidencial
de 2018, é o voto em Bolsonaro da
adesão profunda, mais enraizada no tipo de política que ele propunha. Havia um
tipo de voto simplesmente de protesto ou por uma mudança que se apresentava
como algo novo na política brasileira. Além da crise econômica, lembremos
que tínhamos um escândalo de corrupção que envolvia todos os
partidos, da esquerda à direita, e a candidatura de Bolsonaro se
apresentava como razoável e lógica naquele momento. No entanto, em 2013, já
iniciava um movimento social de fortalecimento e crescimento de uma nova direita
diferente da tradicional, que reunia um conjunto de matrizes discursivas
disseminadas na sociedade, cujos elementos convergem na campanha
presidencial de 2018. É quando adquirem uma identidade e uma liderança política
sob a candidatura de Bolsonaro, em condições de representar esta formação
social. Penso que aqui, na Argentina, também é possível diferenciar entre
um “mileísmo”
e o voto em Milei.
·
Nesta configuração do bolsonarismo, o meu
interesse é diferenciá-lo do mileísmo, ao qual você faz menção, por exemplo, no
tocante à influência das igrejas evangélicas que aqui, na Argentina, não é tão
evidente. Tenho a impressão de que as novas direitas estão unificadas pelo
antiprogressismo, mas cada uma tem as suas particularidades. Milei é
ultraliberal, mas Trump é mais protecionista. Como você diferenciaria o
bolsonarismo de outras extremas-direitas globais?
Milei é
mais claramente um ideólogo. Penso que de todos os líderes da nova
direita, Milei está mais próximo de Thatcher em termos de
fervor ideológico. Bolsonaro é muito mais um oportunista político,
por muito tempo foi um protecionista e estadocêntrico, que se tornou
ultraliberal porque este é um dos elementos que desempenha um papel importante
na construção desta nova identidade coletiva, quando se apresenta como
candidato. Além disso, tenho a impressão de que o elemento ultraliberal é mais
forte na identificação com Milei do que com Bolsonaro, ao passo
que o conservadorismo social era mais influente no bolsonarismo do que
no mileísmo. E nisto, sim, as igrejas evangélicas e também
os católicos tiveram um papel muito importante no Brasil. O
conceito de “neoliberalismo desde baixo”, de Verónica Gago, me fez pensar nisto porque ela não se refere ao peso da
religião que no Brasil, sim, é central na relação com a teologia da
prosperidade de muitas igrejas pentecostais. Aqui, este elemento é
menos forte do que no Brasil.
·
O apelo ao popular está muito presente
nessas novas direitas. Em sua avaliação, por que houve uma mutação da direita
clássica aristocrática, elitista, que desprezava o povo, para esta direita que,
ao contrário, fala ao trabalhador?
Um
tema com o qual se lida é a longa duração do neoliberalismo em termos
de mudança subjetiva, ponto em que o neoliberalismo consegue
uma reprogramação da subjetividade muito além do que talvez imaginássemos no período de
hegemonia progressista. Quando se falava em “empreendedorismo popular”, parecia
haver um sentido mais progressista, mas quando as condições econômicas do boom das
commodities desapareceram, restou o empreendedorismo sem o popular, sem a
ideia de favorecer o crescimento de um mercado interno. No Brasil,
os trabalhadores precários chamam o conjunto de atividades que
consiste em um movimento constante entre trabalho formal e informal, entre
legal e ilegal de viração, é
muito mais um empreendedorismo de sobrevivência.
·
O modelo arquétipo do eleitor de Milei foi
o entregador de aplicativos, o trabalhador “uberizado”. Não sei se no Brasil
aconteceu o mesmo com Bolsonaro. A esquerda está incomodada com este novo
trabalhador que, inclusive, é crítico aos sindicatos. Qual seria o lugar do
progressismo nesse novo contexto, depois do que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista” da terceira via até
Obama e o presente?
Em
2008, temos uma crise no final deste período de neoliberalismo
progressista e é uma pergunta que curiosamente não me fazem
no Brasil. Estou dizendo que o governo Lula foi um
“neoliberalismo progressista”? Minha resposta é sim. A diferença é que um neoliberalismo progressista teria que ser mais radical nos países periféricos. A crise
do modelo neoliberal surge justamente no momento de hegemonia desta
vertente do neoliberalismo progressista e a guinada que
a extrema-direita consegue dar, de forma muito hábil, é apresentar
esta tendência como a culpada por um processo que vem desde o final dos anos
1970. Às novas gerações que entraram no mercado de trabalho sem
nenhuma perspectiva de trabalho formal é dito que não possuem direitos porque
foram concedidos novos direitos às minorias (negros, mulheres, indígenas, gays etc.)
e a extrema-direita sabe jogar muito bem com essa confusão entre
direitos e privilégios. Os direitos concedidos a outros são privilégios, são um
tratamento especial, ao passo que os direitos que nós perdemos não se deve
às mudanças estruturais, mas porque foram transferidos para as minorias, o
que supõe uma lógica que envolve disputar as migalhas que serão cada vez menos.
É uma ideia que supõe uma guerra de todos contra todos, em uma economia que tem
menos probabilidades de oferecer a perspectiva de uma vida boa para a maioria.
·
O que você descreve supõe um estado de
guerra, algo que Milei ressalta o tempo todo em seu discurso, que chama de
“batalha cultural”. Como a “batalha cultural” funcionava no bolsonarismo?
Embora
fosse um político marginal, Bolsonaro começa a ganhar projeção com
uma postura parecida com a de Milei, como um clown. É o tipo
que tem a coragem de dizer o que ninguém mais diz, que é convidado para
programas de televisão, polêmico e controvertido. A partir
daí, Bolsonaro começa um processo de feedback em que
descobre o seu nicho político. Uma parte importante disto está no
tema LGBT, no pânico moral sobre a educação sexual. O primeiro grande
momento em que é possível ver o início da reorganização da
direita (religiosa, evangélica e católica) foi em 2010 com a polêmica do
chamado “kit gay”.
Foi a primeira vez que Bolsonaro ocupou uma posição de líder no
Congresso, montando uma campanha de desinformação sobre o programa de educação
sexual que era proposto pelo governo, que ainda não entendia a força política
da direita, nem a capilaridade que essas campanhas de fake news atinge
através das igrejas. O governo decide recuar e não brigar com a direita,
permite a sua vitória neste assunto.
·
Hoje, qual é o futuro do bolsonarismo, com
Lula no poder? É possível que prossiga com outra liderança que não seja o
próprio Bolsonaro?
O
governo de Lula é de normalização, o que é bem-vindo porque desde
2013 o Brasil vive sob turbulência econômica. Lula é hoje
uma das poucas figuras com influência suficiente para normalizar o establishment político
e institucional, mas um governo de normalização não me parece
suficiente. Lula tem um grande triunfo que é a reforma
tributária, mas não sei se é um legado importante para convencer as pessoas de
que houve mudanças suficientes que justificam a continuação de Lula e
o PT. Ainda não há um líder evidente que o substitua. Resumo as últimas
eleições no Brasil dizendo que o melhor presidente da história
do Brasil concorreu contra o pior e venceu por uma margem muito
pequena e possivelmente ninguém mais teria vencido. Lula é um líder
único, mas não está claro se sairá fortalecido deste governo. Em relação
a Bolsonaro, parece-me que não poderá concorrer e, inevitavelmente,
acabará na prisão de uma forma ou de outra.
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“O mileísmo começou
com Milei, mas não vai acabar com Milei”, diz Esther Solano
“Viemos
para tudo.” Uma frase curta e contundente que se repete desde a noite de 19 de
novembro, quando A Liberdade Avança obteve 55,6% dos votos e se tornou Governo.
Mas, o que é esse “tudo” para o qual “vieram”? A batalha econômica, por um
lado, que envolve um reordenamento da economia baseada em um ajuste brutal e
para cuja análise – em termos de “vencer” essa batalha – é necessário tempo. E
por outro, a batalha cultural. Não é mais possível saber do que se trata esta
última batalha mileísta. Pistas: o controle (mas não a eliminação) de direitos,
o messiânico como bem de troca, o libidinal e o poder do leão, a “nova
autoridade” e uma reelaboração dos feminismos e o feminino.
Javier
Milei mantém o apoio popular que lhe deu o empurrão para chegar à Presidência.
Sua base mais sólida continua sendo os 30% que votaram nele nas PASO, no ano
passado. Contudo, há também “os moderados” de Milei, ou seja, aquelas pessoas
que, em última análise, confiaram o seu voto nele e que hoje estão divididas
entre a esperança e as dúvidas. Esta foi uma das conclusões de um monitoramento
realizado pelos pesquisadores Esther Solano, Pablo Romá e Thais Pavez. O
resultado foi publicado no início deste mês pela Fundação Friedrich Ebert
Stiftung.
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Eis a entrevista.
• Por que você afirma que se o programa
econômico de Milei não funcionar, o mileísmo permanecerá?
Não
é típico apenas de (Javier) Milei. Vemos que esses movimentos, e aí reside a
sua força, disputam as formas de entender a realidade. Disputam imaginários,
disputam valores, disputam sentido. Se você os reduz a uma mera expressão
eleitoral, está apequenando-os. Não são apenas isso, são muito mais do que
isso.
Quando
se juntam, buscam uma refundação. No último encontro que realizaram na Hungria,
o lema foi “Salvar o Ocidente”. Esta é uma reinterpretação da realidade. Então,
o que acontece? Mesmo que percam eleitoralmente, não significa que vão parar em
sua disputa simbólica e do imaginário. Isto pode ser observado de forma muito
clara. Em outros países que estão mais avançados, vemos claramente dois
movimentos. Não é mais o líder, é o campo. Este campo vai ganhando autonomia em
relação ao líder porque já existe uma sedimentação de valores. No Brasil, já
falamos de bolsonarismo sem (Jair) Bolsonaro. O líder não é mais necessário
porque já há uma consolidação de valores. E o eleitor moderado é essencial. O
radical é quem dinamiza o campo, mas é o moderado que o naturaliza e sedimenta.
• E o segundo?
Uma
vez sedimentado todo esse campo, o ecossistema se amplia e há muitos
personagens que vão aderindo a esse campo. Então, por exemplo, e que acontece
com (Donald) Trump ou Bolsonaro que estão operando na França? Os líderes que
começaram são importantes sim, mas tem muito mais gente que já vai assumindo
lideranças. Então, se preferir pensar assim, o mileísmo começou com Milei, mas
não vai acabar com Milei.
• Qual é o papel do componente
messiânico neste movimento? Esta questão de se apresentar como “o salvador” e
recorrer à epopeia bíblica de Moisés.
Várias
coisas. Milei precisa oferecer alguma entrega concreta. A Lei de Bases, por
exemplo, para estabilizar um pouco o cenário econômico. Se consegue isso e já
conseguiu uma elaboração discursiva e simbólica, as duas coisas mantêm o
vínculo, o engajamento. Isto é o mais poderoso. Por quê? Porque o ser humano
precisa de duas coisas que são muito básicas para mim. Precisa ser visto, mas
visto a partir do lugar do reconhecimento pessoal: “Vejo você e entendo o seu
poder”. E depois o pertencimento mútuo. E o que Milei diz para você é isso:
“diante daqueles que te usavam para se reeleger, diante dos parasitas ou
daqueles que te vitimizavam, eu te vejo e, além disso, te proponho um chamado
coletivo. Proponho que o seu sacrifício seja um sacrifício individual, porque
você pode fazê-lo, eu te empodero”. É um chamado aos “homens de bem”. Preste
atenção nesse conceito, é muito forte. Reúne a dimensão individual, a coletiva
e a transcendência.
• Você também diz que esses movimentos
são muito libidinais. Por quê?
A
esquerda também teve isso em determinado momento, a ideia de rebelião. E a
rebelião te chama para uma coisa libidinal. Contudo, a esquerda se transformou
em burocracia e nada mais antissexual do que o burocrata. Então, essas direitas
reconectam com essa libido que está muito sufocada e, ao mesmo tempo, te
conecta com o poder do leão.
É
transgressor, mas tem um propósito, que é a inauguração de uma nova ordem.
Aparece como alguém que não é político, mas que tem a coragem de entrar na lama
da política. Como alguém que inicialmente também não é um superstar, mas que
acaba envolvido em toda essa parafernália, e que tem essa coragem e essa
energia que te conecta com esta libido. E o leão que rompe, mas para que
realmente formemos algo muito maior.
• O que há de libidinal na linguagem,
no tom, da autoridade?
É
uma autoridade diferente. Isso é muito importante porque, sim, é uma
autoridade, mas... O que mais impacta nesses outsiders é que promovem e colocam
no centro do espaço público valores diferentes daqueles da política
tradicional. Então, como é a autoridade tradicional? É uma autoridade distante,
desconexa, muito vertical, hierárquica: a autoridade casta, digamos. O que
acontece com Milei? Ele é o mito do homem comum que chega ao poder, não porque
queira o poder, mas porque é um Robin Hood. É quem tem a coragem de lutar por
você. É uma autoridade por você, não do partido, não da plataforma. É uma
autoridade, mas é alguém do povo. É uma autoridade sem protocolo, sem
intermediários: vai e começa a cantar. É autoridade, sim, mas de um lugar
diferente. Mão dura a partir de outro lugar.
• E o que acontece com os direitos?
Refiro-me aos direitos adquiridos nos últimos anos e às políticas públicas que
estavam dispostos a eliminar. A assistência social, por exemplo, em vez de ser
eliminada, aumentou com A Liberdade Avança. É aniquilação de direitos ou é ter
o controle dos direitos?
Exato.
Aqui, também falo um pouco de modo geral. Foi um grande equívoco no campo da
esquerda insistir em que vão acabar com tudo. Porque, de fato, os moderados que
votaram em Milei não veem as coisas assim. O que observamos não é uma
“aniquilação de direitos”, mas uma reorganização. Quanto ao financiamento das
universidades públicas, A Liberdade Avança propõe auditorias. Muito sagaz. No
fundo, o Governo está dizendo para você: “Eu compreendo que você quer o direito
à educação, a ter saúde. A única coisa que quero é que os fundos sejam
controlados para que ofereçam algo melhor para você”. E quem vai ser contra
isso [?]! Contra a desordem econômica, organização. Não é ausência de direitos,
é controle.
• No entanto, o Ministério da Mulher,
Gênero e Diversidade foi, finalmente, desmantelado.
Já
faz algum tempo que estamos fazendo pesquisas só com mulheres, pois o que vemos
aí? Que as mulheres constituem um eleitorado favorável a uma visão um pouco
mais humanizada da política e, como dizia antes, esses grupos são muito
masculinos. Então, existe uma visão de que o programa feminino pode ser uma via
de entrada. Contudo, por outro lado, e é algo global, a extrema-direita está
claramente disputando o público feminino de uma forma interessantíssima. Duas
coisas. Em primeiro lugar, as mulheres, não digo todas, também começam a ser
seduzidas por esse discurso de empoderamento individual. O que começa a ecoar é
que o Estado não vai resolver os seus problemas, que serão outras instâncias ou
outras formas. Assim, a única coisa que o Estado gostaria é do “trabalho das
feministas”. Nessa narrativa, o aparente auxílio era um Estado se beneficiando.
Há uma reelaboração nesse sentido. Depois, o que estamos vendo, que para mim é
como uma fronteira muito forte, é que esses grupos também disputam muito os
sentidos do feminismo. Então, há alguns anos, esses outsiders que se diziam
antifeministas, agora, não agem mais assim. Agora, disputam o feminismo. Então,
agora, você ouve mulheres que votam neles dizendo “eu sou a verdadeira
feminista”.
• Como seria, nesse sentido, ser “uma
verdadeira feminista”?
Em
sua elaboração, primeiro, ser uma trabalhadora que paga impostos, que labuta, a
meritocracia, o empreendedorismo, todo esse rolo. E em segundo lugar, pensam
que o feminismo tradicional é “muito radical, muito agressivo, muito
arrogante”. Esta série de políticas também não cria grandes revoltas entre
grupos de mulheres, pois já existe uma reelaboração do feminino e do feminismo.
Por exemplo, elas costumam dizer “sou feminista, mas não sou uma feminista
militante” ou “uma feminista de esquerda” ou “não sou da batalha feminista”,
mas se percebem como feministas porque querem se sentir empoderadas, ganhar o
mesmo salário que os homens, querem um reconhecimento da maternidade, da sua
esfera privada, do lar, da família. E que não sejam vitimizadas. Oportunidades
sim, que sejam vitimizadas, não.
Fonte:
IHU
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