segunda-feira, 1 de julho de 2024

Rodrigo Nunes: “Milei é um ideólogo, Bolsonaro é um oportunista político”

O livro Bolsonarismo y extrema derecha global (Tinta Limón) do doutor em filosofia e professor da Universidade de Essex, Rodrigo Nunes, é uma contribuição ao debate atual acerca das novas direitas radicais que merece ser celebrada. Fazendo uma clara distinção entre Jair Bolsonaro e o bolsonarismo como movimento social que extrapola o ex-presidente do Brasil, Nunes faz um tour pelos diferentes elementos que constituem esta gramática da desintegração, assentada na polarização política, no conservadorismo reacionário e no negacionismo científico. O autor brasileiro, em visita à Argentina para apresentar o seu livro, conversou com a revista Ñ a respeito das semelhanças e diferenças entre o bolsonarismo e o mileísmo, as condições sociais que deram origem à extrema-direita no Brasil e o papel do “batalhas culturais” no cenário político atual.

<><> Eis a entrevista.

·        Considero interessante a distinção que você faz entre Bolsonaro como político e o bolsonarismo como fenômeno social que extrapola o próprio Bolsonaro. Qual é o processo que dá origem ao bolsonarismo?

A primeira coisa que é necessário distinguir, a partir da campanha presidencial de 2018, é o voto em Bolsonaro da adesão profunda, mais enraizada no tipo de política que ele propunha. Havia um tipo de voto simplesmente de protesto ou por uma mudança que se apresentava como algo novo na política brasileira. Além da crise econômica, lembremos que tínhamos um escândalo de corrupção que envolvia todos os partidos, da esquerda à direita, e a candidatura de Bolsonaro se apresentava como razoável e lógica naquele momento. No entanto, em 2013, já iniciava um movimento social de fortalecimento e crescimento de uma nova direita diferente da tradicional, que reunia um conjunto de matrizes discursivas disseminadas na sociedade, cujos elementos convergem na campanha presidencial de 2018. É quando adquirem uma identidade e uma liderança política sob a candidatura de Bolsonaro, em condições de representar esta formação social. Penso que aqui, na Argentina, também é possível diferenciar entre um “mileísmo” e o voto em Milei.

·        Nesta configuração do bolsonarismo, o meu interesse é diferenciá-lo do mileísmo, ao qual você faz menção, por exemplo, no tocante à influência das igrejas evangélicas que aqui, na Argentina, não é tão evidente. Tenho a impressão de que as novas direitas estão unificadas pelo antiprogressismo, mas cada uma tem as suas particularidades. Milei é ultraliberal, mas Trump é mais protecionista. Como você diferenciaria o bolsonarismo de outras extremas-direitas globais?

Milei é mais claramente um ideólogo. Penso que de todos os líderes da nova direita, Milei está mais próximo de Thatcher em termos de fervor ideológico. Bolsonaro é muito mais um oportunista político, por muito tempo foi um protecionista e estadocêntrico, que se tornou ultraliberal porque este é um dos elementos que desempenha um papel importante na construção desta nova identidade coletiva, quando se apresenta como candidato. Além disso, tenho a impressão de que o elemento ultraliberal é mais forte na identificação com Milei do que com Bolsonaro, ao passo que o conservadorismo social era mais influente no bolsonarismo do que no mileísmo. E nisto, sim, as igrejas evangélicas e também os católicos tiveram um papel muito importante no Brasil. O conceito de “neoliberalismo desde baixo”, de Verónica Gago, me fez pensar nisto porque ela não se refere ao peso da religião que no Brasil, sim, é central na relação com a teologia da prosperidade de muitas igrejas pentecostais. Aqui, este elemento é menos forte do que no Brasil.

·        O apelo ao popular está muito presente nessas novas direitas. Em sua avaliação, por que houve uma mutação da direita clássica aristocrática, elitista, que desprezava o povo, para esta direita que, ao contrário, fala ao trabalhador?

Um tema com o qual se lida é a longa duração do neoliberalismo em termos de mudança subjetiva, ponto em que o neoliberalismo consegue uma reprogramação da subjetividade muito além do que talvez imaginássemos no período de hegemonia progressista. Quando se falava em “empreendedorismo popular”, parecia haver um sentido mais progressista, mas quando as condições econômicas do boom das commodities desapareceram, restou o empreendedorismo sem o popular, sem a ideia de favorecer o crescimento de um mercado interno. No Brasil, os trabalhadores precários chamam o conjunto de atividades que consiste em um movimento constante entre trabalho formal e informal, entre legal e ilegal de viração, é muito mais um empreendedorismo de sobrevivência.

·        O modelo arquétipo do eleitor de Milei foi o entregador de aplicativos, o trabalhador “uberizado”. Não sei se no Brasil aconteceu o mesmo com Bolsonaro. A esquerda está incomodada com este novo trabalhador que, inclusive, é crítico aos sindicatos. Qual seria o lugar do progressismo nesse novo contexto, depois do que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista” da terceira via até Obama e o presente?

Em 2008, temos uma crise no final deste período de neoliberalismo progressista e é uma pergunta que curiosamente não me fazem no Brasil. Estou dizendo que o governo Lula foi um “neoliberalismo progressista”? Minha resposta é sim. A diferença é que um neoliberalismo progressista teria que ser mais radical nos países periféricos. A crise do modelo neoliberal surge justamente no momento de hegemonia desta vertente do neoliberalismo progressista e a guinada que a extrema-direita consegue dar, de forma muito hábil, é apresentar esta tendência como a culpada por um processo que vem desde o final dos anos 1970. Às novas gerações que entraram no mercado de trabalho sem nenhuma perspectiva de trabalho formal é dito que não possuem direitos porque foram concedidos novos direitos às minorias (negros, mulheres, indígenas, gays etc.) e a extrema-direita sabe jogar muito bem com essa confusão entre direitos e privilégios. Os direitos concedidos a outros são privilégios, são um tratamento especial, ao passo que os direitos que nós perdemos não se deve às mudanças estruturais, mas porque foram transferidos para as minorias, o que supõe uma lógica que envolve disputar as migalhas que serão cada vez menos. É uma ideia que supõe uma guerra de todos contra todos, em uma economia que tem menos probabilidades de oferecer a perspectiva de uma vida boa para a maioria.

·        O que você descreve supõe um estado de guerra, algo que Milei ressalta o tempo todo em seu discurso, que chama de “batalha cultural”. Como a “batalha cultural” funcionava no bolsonarismo?

Embora fosse um político marginal, Bolsonaro começa a ganhar projeção com uma postura parecida com a de Milei, como um clown. É o tipo que tem a coragem de dizer o que ninguém mais diz, que é convidado para programas de televisão, polêmico e controvertido. A partir daí, Bolsonaro começa um processo de feedback em que descobre o seu nicho político. Uma parte importante disto está no tema LGBT, no pânico moral sobre a educação sexual. O primeiro grande momento em que é possível ver o início da reorganização da direita (religiosa, evangélica e católica) foi em 2010 com a polêmica do chamado “kit gay”. Foi a primeira vez que Bolsonaro ocupou uma posição de líder no Congresso, montando uma campanha de desinformação sobre o programa de educação sexual que era proposto pelo governo, que ainda não entendia a força política da direita, nem a capilaridade que essas campanhas de fake news atinge através das igrejas. O governo decide recuar e não brigar com a direita, permite a sua vitória neste assunto.

·        Hoje, qual é o futuro do bolsonarismo, com Lula no poder? É possível que prossiga com outra liderança que não seja o próprio Bolsonaro?

O governo de Lula é de normalização, o que é bem-vindo porque desde 2013 o Brasil vive sob turbulência econômica. Lula é hoje uma das poucas figuras com influência suficiente para normalizar o establishment político e institucional, mas um governo de normalização não me parece suficiente. Lula tem um grande triunfo que é a reforma tributária, mas não sei se é um legado importante para convencer as pessoas de que houve mudanças suficientes que justificam a continuação de Lula e o PT. Ainda não há um líder evidente que o substitua. Resumo as últimas eleições no Brasil dizendo que o melhor presidente da história do Brasil concorreu contra o pior e venceu por uma margem muito pequena e possivelmente ninguém mais teria vencido. Lula é um líder único, mas não está claro se sairá fortalecido deste governo. Em relação a Bolsonaro, parece-me que não poderá concorrer e, inevitavelmente, acabará na prisão de uma forma ou de outra.

 

¨      “O mileísmo começou com Milei, mas não vai acabar com Milei”, diz Esther Solano

“Viemos para tudo.” Uma frase curta e contundente que se repete desde a noite de 19 de novembro, quando A Liberdade Avança obteve 55,6% dos votos e se tornou Governo. Mas, o que é esse “tudo” para o qual “vieram”? A batalha econômica, por um lado, que envolve um reordenamento da economia baseada em um ajuste brutal e para cuja análise – em termos de “vencer” essa batalha – é necessário tempo. E por outro, a batalha cultural. Não é mais possível saber do que se trata esta última batalha mileísta. Pistas: o controle (mas não a eliminação) de direitos, o messiânico como bem de troca, o libidinal e o poder do leão, a “nova autoridade” e uma reelaboração dos feminismos e o feminino.

Javier Milei mantém o apoio popular que lhe deu o empurrão para chegar à Presidência. Sua base mais sólida continua sendo os 30% que votaram nele nas PASO, no ano passado. Contudo, há também “os moderados” de Milei, ou seja, aquelas pessoas que, em última análise, confiaram o seu voto nele e que hoje estão divididas entre a esperança e as dúvidas. Esta foi uma das conclusões de um monitoramento realizado pelos pesquisadores Esther Solano, Pablo Romá e Thais Pavez. O resultado foi publicado no início deste mês pela Fundação Friedrich Ebert Stiftung.

<><> Eis a entrevista.

•           Por que você afirma que se o programa econômico de Milei não funcionar, o mileísmo permanecerá?

Não é típico apenas de (Javier) Milei. Vemos que esses movimentos, e aí reside a sua força, disputam as formas de entender a realidade. Disputam imaginários, disputam valores, disputam sentido. Se você os reduz a uma mera expressão eleitoral, está apequenando-os. Não são apenas isso, são muito mais do que isso.

Quando se juntam, buscam uma refundação. No último encontro que realizaram na Hungria, o lema foi “Salvar o Ocidente”. Esta é uma reinterpretação da realidade. Então, o que acontece? Mesmo que percam eleitoralmente, não significa que vão parar em sua disputa simbólica e do imaginário. Isto pode ser observado de forma muito clara. Em outros países que estão mais avançados, vemos claramente dois movimentos. Não é mais o líder, é o campo. Este campo vai ganhando autonomia em relação ao líder porque já existe uma sedimentação de valores. No Brasil, já falamos de bolsonarismo sem (Jair) Bolsonaro. O líder não é mais necessário porque já há uma consolidação de valores. E o eleitor moderado é essencial. O radical é quem dinamiza o campo, mas é o moderado que o naturaliza e sedimenta.

•           E o segundo?

Uma vez sedimentado todo esse campo, o ecossistema se amplia e há muitos personagens que vão aderindo a esse campo. Então, por exemplo, e que acontece com (Donald) Trump ou Bolsonaro que estão operando na França? Os líderes que começaram são importantes sim, mas tem muito mais gente que já vai assumindo lideranças. Então, se preferir pensar assim, o mileísmo começou com Milei, mas não vai acabar com Milei.

•           Qual é o papel do componente messiânico neste movimento? Esta questão de se apresentar como “o salvador” e recorrer à epopeia bíblica de Moisés.

Várias coisas. Milei precisa oferecer alguma entrega concreta. A Lei de Bases, por exemplo, para estabilizar um pouco o cenário econômico. Se consegue isso e já conseguiu uma elaboração discursiva e simbólica, as duas coisas mantêm o vínculo, o engajamento. Isto é o mais poderoso. Por quê? Porque o ser humano precisa de duas coisas que são muito básicas para mim. Precisa ser visto, mas visto a partir do lugar do reconhecimento pessoal: “Vejo você e entendo o seu poder”. E depois o pertencimento mútuo. E o que Milei diz para você é isso: “diante daqueles que te usavam para se reeleger, diante dos parasitas ou daqueles que te vitimizavam, eu te vejo e, além disso, te proponho um chamado coletivo. Proponho que o seu sacrifício seja um sacrifício individual, porque você pode fazê-lo, eu te empodero”. É um chamado aos “homens de bem”. Preste atenção nesse conceito, é muito forte. Reúne a dimensão individual, a coletiva e a transcendência.

•           Você também diz que esses movimentos são muito libidinais. Por quê?

A esquerda também teve isso em determinado momento, a ideia de rebelião. E a rebelião te chama para uma coisa libidinal. Contudo, a esquerda se transformou em burocracia e nada mais antissexual do que o burocrata. Então, essas direitas reconectam com essa libido que está muito sufocada e, ao mesmo tempo, te conecta com o poder do leão.

É transgressor, mas tem um propósito, que é a inauguração de uma nova ordem. Aparece como alguém que não é político, mas que tem a coragem de entrar na lama da política. Como alguém que inicialmente também não é um superstar, mas que acaba envolvido em toda essa parafernália, e que tem essa coragem e essa energia que te conecta com esta libido. E o leão que rompe, mas para que realmente formemos algo muito maior.

•           O que há de libidinal na linguagem, no tom, da autoridade?

É uma autoridade diferente. Isso é muito importante porque, sim, é uma autoridade, mas... O que mais impacta nesses outsiders é que promovem e colocam no centro do espaço público valores diferentes daqueles da política tradicional. Então, como é a autoridade tradicional? É uma autoridade distante, desconexa, muito vertical, hierárquica: a autoridade casta, digamos. O que acontece com Milei? Ele é o mito do homem comum que chega ao poder, não porque queira o poder, mas porque é um Robin Hood. É quem tem a coragem de lutar por você. É uma autoridade por você, não do partido, não da plataforma. É uma autoridade, mas é alguém do povo. É uma autoridade sem protocolo, sem intermediários: vai e começa a cantar. É autoridade, sim, mas de um lugar diferente. Mão dura a partir de outro lugar.

•           E o que acontece com os direitos? Refiro-me aos direitos adquiridos nos últimos anos e às políticas públicas que estavam dispostos a eliminar. A assistência social, por exemplo, em vez de ser eliminada, aumentou com A Liberdade Avança. É aniquilação de direitos ou é ter o controle dos direitos?

Exato. Aqui, também falo um pouco de modo geral. Foi um grande equívoco no campo da esquerda insistir em que vão acabar com tudo. Porque, de fato, os moderados que votaram em Milei não veem as coisas assim. O que observamos não é uma “aniquilação de direitos”, mas uma reorganização. Quanto ao financiamento das universidades públicas, A Liberdade Avança propõe auditorias. Muito sagaz. No fundo, o Governo está dizendo para você: “Eu compreendo que você quer o direito à educação, a ter saúde. A única coisa que quero é que os fundos sejam controlados para que ofereçam algo melhor para você”. E quem vai ser contra isso [?]! Contra a desordem econômica, organização. Não é ausência de direitos, é controle.

•           No entanto, o Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade foi, finalmente, desmantelado.

Já faz algum tempo que estamos fazendo pesquisas só com mulheres, pois o que vemos aí? Que as mulheres constituem um eleitorado favorável a uma visão um pouco mais humanizada da política e, como dizia antes, esses grupos são muito masculinos. Então, existe uma visão de que o programa feminino pode ser uma via de entrada. Contudo, por outro lado, e é algo global, a extrema-direita está claramente disputando o público feminino de uma forma interessantíssima. Duas coisas. Em primeiro lugar, as mulheres, não digo todas, também começam a ser seduzidas por esse discurso de empoderamento individual. O que começa a ecoar é que o Estado não vai resolver os seus problemas, que serão outras instâncias ou outras formas. Assim, a única coisa que o Estado gostaria é do “trabalho das feministas”. Nessa narrativa, o aparente auxílio era um Estado se beneficiando. Há uma reelaboração nesse sentido. Depois, o que estamos vendo, que para mim é como uma fronteira muito forte, é que esses grupos também disputam muito os sentidos do feminismo. Então, há alguns anos, esses outsiders que se diziam antifeministas, agora, não agem mais assim. Agora, disputam o feminismo. Então, agora, você ouve mulheres que votam neles dizendo “eu sou a verdadeira feminista”.

•           Como seria, nesse sentido, ser “uma verdadeira feminista”?

Em sua elaboração, primeiro, ser uma trabalhadora que paga impostos, que labuta, a meritocracia, o empreendedorismo, todo esse rolo. E em segundo lugar, pensam que o feminismo tradicional é “muito radical, muito agressivo, muito arrogante”. Esta série de políticas também não cria grandes revoltas entre grupos de mulheres, pois já existe uma reelaboração do feminino e do feminismo. Por exemplo, elas costumam dizer “sou feminista, mas não sou uma feminista militante” ou “uma feminista de esquerda” ou “não sou da batalha feminista”, mas se percebem como feministas porque querem se sentir empoderadas, ganhar o mesmo salário que os homens, querem um reconhecimento da maternidade, da sua esfera privada, do lar, da família. E que não sejam vitimizadas. Oportunidades sim, que sejam vitimizadas, não.

 

Fonte: IHU

 

Nenhum comentário: