“Os
movimentos mais críticos e anticapitalistas não nascem da relação salarial”,
diz pesquisador
“Diante
da decomposição do sistema-mundo e a crise de legitimidade dos estados, pode
ser a hora dos movimentos e dos povos”, conclui o jornalista e pesquisador Raúl
Zibechi (Montevidéu, 1952), em um dos artigos publicados no jornal La Jornada.
O
escritor militante apresentou o ensaio de 252 páginas, Mundos otros, pueblos en
movimento: Debates sobre anti-colonialismo y transición en América Latina -
publicado em maio por Zambra-Baladre -, na Feira Alternativa de Valência (8 de
junho). Outros livros recentes de Zibechi, junto com Décio Machado, são: El
Estado realmente existente: Del Estado de Bienestar al Estado para el despojo
(2023) e Navegar nuestras geografías (2023).
LEIA
A ENTREVISTA:
• Em novembro de 1983, foi fundado o
Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que se levantou em 1º de
janeiro de 1994, em Chiapas. Você dedica um artigo do livro ao zapatismo
(Semear sem colher). Quais são as principais contribuições do movimento?
Muitas.
Talvez a principal delas é a de que é possível, mesmo neste período tão
difícil, continuar transformando o mundo. Não se renderam, não claudicaram, nem
se venderam. A dignidade continua sendo a direção do zapatismo, segundo o que
posso compreender. Penso que é muito para esta época.
Contudo,
o que mais surpreende e entusiasma no EZLN é a sua capacidade de mudar a si
mesmo, não apenas de mudar o mundo. Criaram os municípios autônomos e a juntas
de bom governo, e agora as fecham porque acreditam que não são adequados para
as situações que se avizinham. Fizeram uma autocrítica muito profunda, algo que
a esquerda deixou no esquecimento, ao dizer que essas estruturas funcionavam de
forma piramidal, separando as autoridades dos povos, e decidiram cortar a ponta
da pirâmide ou invertê-la.
• Nos últimos tempos, você constata
novidades nas práticas do EZLN?
As
iniciativas zapatistas sempre vão além. Agora, nestes novos 20 comunicados,
apostam no “comum”, superando o conceito de propriedade, mesmo o de propriedade
comunal ou comunitária. Convidam as pessoas que concordarem a ir até essas
terras comuns para trabalhá-las, algo que nenhum movimento anticapitalista é
capaz de fazer hoje, porque encarnam uma rejeição concreta ao capitalismo, não
só discursiva como estamos acostumados em outros lugares.
Se
eu tivesse que resumir, diria que a sua maior contribuição é a ética. Eles nos
mostram que é possível fazer política a partir da ética de fazer o que dizem e
de dizer o que fazem, e toda uma série de “princípios” que vêm divulgando
nestes 30 anos, como o “mandar obedecendo”. E se propõem a lutar desde já para
que as meninas e os meninos que nascerem dentro de sete gerações, 120 anos,
sejam livres. No meu modo de ver, este semear sem eles próprios colher supõe
uma mudança de fundo na cultura revolucionária.
• Que análise geral você faz dos seis
anos na presidência de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), após a vitória
eleitoral - em 2 de junho - da candidata progressista Claudia Sheinbaum?
Militarizou
o país, os desaparecimentos e os crimes continuaram, mas, além disso, as
fronteiras, os aeroportos e as obras de infraestrutura foram entregues às
forças armadas que agora impedem o protesto com a aplicação em massa da força.
Aprofundou
o capitalismo no México. Fragilizou os movimentos e as resistências com
programas sociais que concretamente agridem o tecido comunitário. Desempenha o
papel de atenuar as migrações para impedir que mais pessoas cheguem aos Estados
Unidos.
Em
absoluto, não foi um governo popular. O seu apoio em massa se deve ao enorme
desprestígio dos partidos da direita tradicional, como o PRI e o PAN, e às
transferências monetárias para os setores populares.
• Por outro lado, para os movimentos
populares na Argentina, quais são as consequências da presidência, desde
dezembro de 2023, do ultraliberal Javier Milei?
Agora,
há mais repressão e mais pobreza. O alinhamento com os Estados Unidos e Israel
mostra a cara geopolítica regressiva que também impede a integração regional,
que já vinha em franca decadência. No entanto, não conseguiu romper com a
China, como disse durante a campanha, porque o país asiático é o principal
mercado das exportações agropecuárias argentinas.
Apesar
da sua política profundamente antipopular, Milei mantém um amplo apoio em todos
os setores da sociedade, o que se explica em grande medida pelo desprestígio da
oposição, pois o governo progressista de Alberto Fernández deixou o país muito
mal, com 100% de inflação anual e metade da população na pobreza.
Milei
é o produto de uma sociedade em decomposição, um processo de longa data que
teve um salto qualitativo na ditadura militar (1976-1983). Uma sociedade
polarizada em que os jovens não têm futuro e cada parte considera a outra como
se fossem estranhos ou estrangeiros. Uma sociedade que não reconhece as e os
outros como parte do mesmo conglomerado humano.
• Quais consequências prevê em relação
às possibilidades de organização e mobilização dos coletivos sociais?
Há
muita raiva acumulada e um grande desgaste nos movimentos, que passam por um
período de acentuada fragilidade organizacional e falta de horizontes próprios.
No curto prazo, não vejo alguma chance de recuperação dos movimentos, pois a
deterioração ocorreu ao longo de mais de uma década em que as políticas sociais
desempenharam um papel determinante na conversão dos movimentos em meros
administradores desses programas e em colaboradores dos governos.
No
entanto, existem pequenos núcleos que permanecem autônomos, mas não possuem
mais a projeção que o movimento piquetero alcançou em torno do Argentinazo de
dezembro de 2001. A minha perspectiva é que a reconstrução e a refundação dos
movimentos devem superar a dependência das políticas sociais.
Em
que sentido?
Em
um primeiro momento, após 2001, fazia certo sentido utilizar os programas
sociais para gerar organização, mas ao longo de duas décadas os movimentos se
tornaram aparelhos de gestão com doses de corrupção interna e de controle da
população receptora dos planos sociais.
Algumas
organizações mapuches, alguns núcleos territoriais nas periferias urbanas e um
pouco mais, seguem resistindo. Contudo, a maioria se mobiliza contra Milei para
restaurar algum tipo de governabilidade progressista em que voltem a ter um
papel de intermediários entre o governo e os movimentos. Será um processo longo
e doloroso, porque há necessidades urgentes que ninguém cobre e uma repressão
preocupante.
• Em ‘Mundos otros y pueblos en
movimiento’, você não se concentra apenas na América Latina. Que lições
destacaria da resistência das mulheres no Curdistão?
As
mulheres curdas e o pensamento crítico de Abdullah Öcalan são referências
imprescindíveis para as lutas anticapitalistas e antipatriarcais.
As
mulheres desenvolveram o seu próprio pensamento feminista (a Jineolojî) que não
deve nada ao Ocidente, mas, sim, à sua própria experiência. São muito críticas
ao feminismo acadêmico que busca somente um lugar melhor para as mulheres com
formação universitária e exclui os homens.
Elas
ergueram o Instituto Andrea Wolf, onde as mulheres do movimento trabalham com
os homens em seu processo de despatriarcalização. Penso que é uma proposta
muito interessante, muito complexa para ser implementada, mas necessária porque
não se pode almejar a emancipação de apenas metade da humanidade.
• Você mencionava o líder do Partido
dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), Abdullah Öcalan, fechado nas prisões do
Estado da Turquia há mais de duas décadas...
Quanto
ao pensamento de Öcalan, penso que a sua crítica profunda ao marxismo
economicista é tão necessária quanto pertinente. Öcalan diz que o capitalismo
não é economia, mas poder, o tipo de poder que os estados-nação encarnam. Por
isso, o movimento curdo não luta pela criação de um Estado curdo, o que seria o
mesmo que reproduzir a opressão que já sofrem.
Ao
longo de seus livros, o líder curdo desenvolve um conjunto de análises que
enriquece o pensamento crítico, muito estagnado e em retrocesso no Ocidente,
onde a esquerda fez do pragmatismo a sua principal marca. Sinto que o EZLN e o
PKK são os movimentos mais interessantes para nós que seguimos empenhados em
superar o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo.
• Quais são as últimas ações
protagonizadas na Colômbia pelo Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC):
cerca de 200.000 pessoas de oito grupos étnicos?
O
CRIC está passando por situações muito complexas. Por um lado, há uma presença
cada vez mais forte de paramilitares e traficantes de drogas, em seus
territórios do Cauca, assassinando homens e mulheres que se destacam na defesa
das comunidades. Por outro, há um cerco político do progressismo de Gustavo
Petro, que com suas políticas de apoio aos grandes proprietários de terra,
combinadas com discursos que dizem defender os povos, geram confusão entre os
indígenas nasa, misak e outros grupos.
Apesar
da tendência à cooptação e à desorganização, considero que a Guarda Indígena
continua sendo uma instância autônoma, capaz de assumir a defesa do território
e avançar em ações muito fortes, como a que aconteceu durante a paralisação de
três meses em Cali.
• O que aconteceu durante a revolta
social de 2021, na capital do Valle del Cauca?
Cali
é uma cidade de dois milhões de pessoas, a maioria afrodescendentes que são a
parcela mais pobre da população. Durante a paralisação, foram criados 25 pontos
de resistência onde as juventudes ensaiaram as formas de vida que desejam, com
muita confraternização e criatividade. No entanto, houve uma repressão brutal
que deixou 40 mortos na cidade e também um grande número de desaparecidos.
Nessa
situação, cerca de 10.000 guardas foram até Cali, com mais de uma hora e meia
de estrada, para apoiar jovens que não conheciam, que têm uma cor de pele
diferente, outros modos e costumes. Permaneceram por semanas em Cali,
contribuindo com os seus conhecimentos de autodefesa. Penso que este gesto fala
por si da capacidade dos povos originários do Cauca e, concretamente, da Guarda
Indígena, em agir de forma solidária, generosa e autônoma.
• Na coletânea de artigos, você destaca
as análises do filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis acerca do marxismo,
bem como as interpretações do sociólogo peruano Aníbal Quijano. Por quais
motivos você se interessa por estes dois autores?
Castoriadis
porque compreendeu a fundo os problemas da herança revolucionária comunista, os
seus limites e os aspectos que reproduzem o sistema. Compreendeu em especial as
amarras daqueles que militam em um partido hierárquico no momento de formular
críticas ou abandoná-lo, os problemas que uma atitude independente traz para os
militantes formados em uma cultura opressiva e hierárquica.
O
pensamento de Quijano é muito importante para nós que vivemos na América
Latina. Seu trabalho posterior à queda do socialismo real demonstra
criatividade e compreensão da realidade. Analisa em detalhes as particulares
relações sociais existentes, que sintetiza na “heterogeneidade
histórico-estrutural”.
Pela
primeira, entende as diversas origens e trajetórias dos povos que habitam este
continente, pertencentes às duas civilizações que povoam o planeta, um caso
único no mundo. A segunda supõe compreender que existem cinco relações com o
trabalho: salário, escravidão, servidão, reciprocidade e iniciativa mercantil e
produtiva familiar, ou seja, a chamada informalidade. Todas elas controladas
pelo capitalismo, mas com espaço-tempos próprios.
• Por que considera que essa
conceituação é relevante?
Isto
é muito importante porque os movimentos mais críticos e anticapitalistas não
nascem da relação salarial (como os sindicatos), mas de espaços em que
predominam a reciprocidade, a servidão e a informalidade. O zapatismo, os nasa
e misak, os mapuche, nascem em propriedades onde existiam relações de servidão,
mas também em comunidades onde a reciprocidade é uma prática crucial, para dar
um exemplo.
Estamos
acostumados a pensar a política de esquerda ancorada nos assalariados
organizados, mas não sabemos como se faz política em chave comunitária,
partindo dos mercados populares e dos bairros periféricos.
• Qual é a diferença?
Quando
se faz política a partir da comunidade, da produção de valores de uso e não de
mercadorias, os lugares e os modos dessa política vão ser muito diferentes
daquela que se funda na representação diante do Estado.
Então,
Quijano nos abre uma porta para compreender melhor as resistências em nosso
continente. É profundamente anti-eurocêntrico, mas não a partir de um
teoricismo abstrato, mas da realidade concreta dos povos que lutam.
• Por último, quais movimentos sociais
emergentes – e quais setores – você destacaria na América Latina?
Há
povos e lutas que já são patrimônio dos que resistem: o zapatismo e o povo
mapuche, no Chile e na Argentina, pelo menos. No entanto, vejo que os povos
amazônicos no Brasil e no Peru estão transitando caminhos de autonomia e
autogoverno como a melhor forma de defender seus territórios frente ao
extrativismo e a violência do capitalismo.
No
Peru, existem nove governos territoriais autônomos, na região fronteiriça com o
Equador, e no Brasil 64 povos indígenas, em 48 territórios, estão criando
protocolos autônomos de demarcação de seus territórios. Também no Brasil existe
a Teia dos Povos (Rede de Povos) onde convergem povos indígenas, quilombolas
(comunidades negras) e assentamentos sem terra (não o MST), em uma nova e
combativa coordenação não hierárquica que está se expandindo de forma notável.
Vejo
como as comunidades garífunas de Honduras e as maias da Guatemala se adiantam
em resistências muito importantes à expansão do modelo de espoliação e que as
comunidades aymaras do sul do Peru estão debatendo como seguir a luta contra o
governo de Dina Boluarte e a oligarquia.
• Em conclusão…
Há
muito mais e acredito que surgirão novas resistências da decomposição da
sociedade argentina, menos centralizadas do que aquelas que já conhecemos, que
entraram em colapso frente ao progressismo. E os feminismos continuarão nos
surpreendendo positivamente, em particular os populares, negros e indígenas.
Enfim,
assim como existe um regime cada vez mais repressivo e opressivo, também há
poderosas resistências e renovação, o nascimento de novos coletivos e
confluências aos quais devemos estar atentos.
Fonte.
Entrevista com Raúl Zibech para Enric
Llopis, em Rebelión, - tradução do
Cepat, para IHU
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