Por que
tanta gente odeia pombos?
Estou
em um pátio, observando Lisa Davies retirar um conjunto de manicure rosa bebê
de sua mochila e abri-lo no colo. O kit conta com uma variedade de pinças e
lixas de unha, entre outros elementos.
Como
um cirurgião arrumando seus instrumentos antes de uma operação, ela passa as
mãos sobre os instrumentos e pega uma tesoura de unha.
É
uma tarde quente e úmida de domingo em um cemitério no bairro londrino do Soho.
Grupos de adolescentes descansam na
grama, enquanto homens sem camisa jogam tênis de mesa ao fundo.
Mas
mais adiante no parque, uma cena de verão menos típica se desenrola. Um grupo
de voluntários está reunido em torno de um bando de 50 pombos, observando atentamente suas patas. Um está mancando.
Os
pés do jovem pombo estão inchados, presos em um emaranhado de longos e escuros
cabelos humanos e fios de algodão – os detritos da vida na cidade, recolhidos
ao longo de muitos meses de caminhada ao lado dos pedestres.
Este
é um caso clássico de string foot (ou corda nos pés, em tradução
livre) que, sem ajuda humana, irá gradualmente cortar o fornecimento de sangue
aos pés e aos dedos dos pés, até que caiam completamente. Mas esse pombo é um
dos sortudos.
Com
impressionante confiança e precisão, Davies – uma estudante que tem trabalhado
como voluntária com pombos nos últimos 18 meses – estende os braços para a
frente e gentilmente tira a ave da multidão.
Ela
o prende sob a camiseta que, apropriadamente, tem uma estampa de pombo. Demora
cerca de meia hora puxando e cortando cuidadosamente antes que os pelos sejam
removidos, e o pássaro possa ser solto em uma enxurrada de penas.
Davies
faz parte do grupo London Pigeon String Foot and Rescuec (Resgate
de pombos com cordas nos pés em Londres, em tradução literal), uma organização
que visa ajudar os aproximadamente três milhões de pombos da cidade.
Os
voluntários se reúnem todos os domingos, durante todo o ano, para cuidar dos
pés mutilados dos pombos espalhados pela cidade. Enquanto pondero sobre essa
nobre tarefa, sou arrancada do meu devaneio por uma comoção – na rua abaixo, um
homem está perseguindo um pombo "por brincadeira", lançando no ar uma
tempestade de pássaros em pânico.
Os
pombos urbanos estão entre os animais mais detestados do planeta.
Depois
de uma série de mal-entendidos que remontam a décadas, eles se tornaram
amplamente considerados sujos, fontes de doenças e semelhantes a "ratos
voadores".
As
lesões horríveis deles muitas vezes são consequências da existência desesperada
e oprimida, e a propensão deles para viver perto dos humanos é por vezes
considerada irritante ou anti-higiênica.
Mas
nem sempre foi assim. Durante milênios, os pombos foram vistos com respeito e
até reverência. Um imperador mongol era
um grande fã e transportava cerca de 20 mil pássaros aonde quer que fosse,
enquanto o cientista britânico Charles Darwin – que a certa altura tinha um
grupo de 90 – era supostamente obcecado por eles.
Mas,
afinal, como nosso relacionamento com essas criaturas deu tão errado?
·
Existência paralela
Ao
longo da costa rochosa das Hébridas Exteriores (ou Ilhas Ocidentais), um grupo
de ilhas no Reino Unido, empoleirados no topo de falésias e edifícios
abandonados, encontram-se rostos familiares: cabeças cinzentas com grandes
olhos laranja, à espreita dos transeuntes. São os pombos-das-rochas, Columba
livia.
Embora
estas aves pareçam quase idênticas aos pombos encontrados nas cidades, não são
iguais. Este remoto posto avançado escocês tem uma das populações mais
selvagens desses pombos do planeta – é um dos últimos lugares onde se agarraram
a uma proporção substancial da sua genética ancestral original.
Os
pombos vistos nas cidades, por outro lado, são um caso totalmente diferente.
Eles pertencem à subespécie Columba livia domestica e são
quase exclusivamente descendentes de aves domesticadas, que forneceram um fluxo
constante de fugitivos para perambular pelos assentamentos humanos nos últimos
4.000 anos.
Existem
variações sutis na ancestralidade das populações de uma região para outra,
dependendo das raças específicas tradicionalmente mantidas naquela parte do
mundo – em algum momento, no entanto, a árvore genealógica da grande maioria
dos pombos leva de volta à mesma origem das aves que convivem com humanos.
Os
pombos domésticos confiam extraordinariamente nos humanos e são atraídos para
ambientes com alta densidade de pessoas.
Paul
Themis, conhecido na comunidade de resgate de vida selvagem como Paul Leous
Pigeon, é um reabilitador de pombos de Londres.
Ele
ajuda pombos na cidade há 17 anos e foi cofundador do grupo London
Pigeon String Foot and Rescue há cinco anos. Até agora, ele estima ter
resgatado mais de 1.000 pombos e agora vive com pelo menos 20 ex-pacientes –
ele não me diz exatamente quantos – que vagam livremente pela sua casa.
Themis
reabilitou pombos ao longo dos anos e explica que há uma diferença marcante no
seu comportamento.
Veja
o exemplo do pombo-torcaz comum - um pássaro grande e bonito com manchas verdes
brancas e iridescentes no pescoço, que habita parques, jardins e bordas de
florestas no Reino Unido.
A
espécie é distinta dos pombos selvagens, mas são primos próximos – e mostram
como os pombos verdadeiramente selvagens veem as pessoas.
"Quando
você pega os pombos, eles quase podem ter um ataque cardíaco de tanto
medo", diz Themis. "Eles são como qualquer outro pássaro
selvagem."
Por
outro lado, diz, "os pombos domésticos estão tão acostumados com os
humanos que alguns deles nem se incomodam se você os pegar".
Os
pombos domésticos têm até uma biologia diferente. Assim como as galinhas, essas
aves domesticadas se reproduzem com mais frequência do que as versões selvagens
e produzem mais ovos por ninhada.
Na
verdade, a vida dos pombos domésticos está intimamente ligada à das pessoas.
Caminham pelas ruas humanas – preferem viajar a pé –, abrigam-se nos recantos
aconchegantes criados pela arquitetura humana e comem restos de comida humana.
Um
estudo descobriu que eles tendem a ser atraídos por estruturas artificiais e
locais com atividade humana, enquanto evitam habitats mais tradicionalmente
associados à vida selvagem, como áreas de floresta densa.
Como
comedores de sementes que ganham a vida num mundo urbano de concreto e aço,
pode ser um desafio para os pombos domésticos encontrarem comida suficiente,
diz Themis.
Depois
de uma série de proibições à alimentação de pombos na Trafalgar Square, em
Londres, a partir de 2007, cientistas de agências governamentais confirmaram ao
jornal Evening Standard que várias aves tinham morrido de fome.
Os
pombos selvagens que andam e balançam a cabeça pelas ruas de São Paulo,
Londres, Nova Iorque, Singapura, Cidade do Cabo e outras grandes cidades
globais foram criados por humanos. Eles são totalmente dependentes de nós. E
ainda assim, nós os rejeitamos.
À
medida que minha tarde de domingo com o grupo London Pigeon String Foot
and Rescue avança, suas atividades recebem reações dos espectadores
que vão desde uma curiosidade confusa – "o que você está fazendo com
aquele pombo?" – à hostilidade total.
Os
voluntários estão constantemente em alerta para a próxima onda de abusos
verbais, especialmente quando alimentam pombos, algo a que muitas pessoas se
opõem.
Há
inúmeros exemplos de indiferença ou mesmo de crueldade. Os pedestres esbarram
nos pombos como se eles não estivessem ali, forçando bandos inteiros a fugirem
do caminho. As crianças os perseguem, criando um pânico leve que alguns adultos
parecem considerar um esporte aceitável.
Themis,
que também foi cofundador da organização de bem-estar animal London
Wildlife Protection em 2011, explica que, dado o preconceito
generalizado contra os pombos, os voluntários são extremamente cuidadosos com
quem pede ajuda.
Muitos
veterinários sacrificam pombos feridos como algo natural, diz ele, embora as
aves sejam notavelmente resistentes; é comum ver pombos saudáveis que perderam totalmente os dois pés.
E
embora os bombeiros muitas vezes concordem em ajudar quando as aves ficam
presas em redes, Themis explica que obter permissão dos proprietários dos
edifícios para retirar as vítimas pode ser um campo minado diplomático.
·
Um erro social
Em
2016, o ódio irracional que muitas pessoas sentem pelos pombos fez Verônica
Sevillano pensar sobre o tema. Hoje Sevillano trabalha como professora
assistente de Psicologia Social e Ambiental na Universidade Autônoma de Madrid.
Mas na época ela trabalhava com Susan Fiske, professora de Psicologia da
Universidade de Princeton, em Nova Jersey, que estuda como as pessoas formam
preconceitos contra determinados grupos sociais.
Os
pesquisadores se perguntaram: assim como temos uma imagem clara, e geralmente
falha, das características típicas de, digamos, povos ingleses ou americanos,
poderíamos ter preconceitos semelhantes sobre certas espécies de animais?
Juntos,
Sevillano e Fiske descobriram que este era realmente o caso.
Tal
como as nossas opiniões sobre as diferentes demografias das pessoas, a forma
como as espécies animais são percebidas se baseia em duas características: quão
competentes elas parecem (ou seja, quais são as suas capacidades) e quão
cordiais elas pensavam ser (ou seja, quão favoráveis consideramos as suas intenções em relação a nós). Em essência, aplicamos aos pombos as mesmas regras de julgamento social
que aplicamos às pessoas.
Infelizmente
para os pombos, eles tendem a ser vistos como extremamente baixos em ambos
aspectos. "Não nos importamos de matar ou perseguir estes animais porque
as dimensões de cordialidade e competência neste caso são bastante
negativas", diz Sevillano.
Sevillano
explica que é importante estarmos cientes de que essas crenças enviesada estão
sendo aplicadas automaticamente e contribuindo para nossos sentimentos de
desprezo.
Isso
é especialmente verdade porque, tal como os estereótipos negativos sobre outros
grupos marginalizados, a percepção recorrente dos pombos não se baseia na
realidade.
Como
explica Themis, quase todas as suposições desfavoráveis que temos sobre os pombos são um mito.
Considere a
ideia de que os pombos não são inteligentes.
Isto é particularmente fácil de refutar, porque eles têm sido amplamente
utilizados em estudos comportamentais, que revelaram algumas capacidades
notáveis.
Para
começar, os pombos têm boa memória: conseguem identificar seres humanos
individuais pelas suas características faciais e são capazes de recordar as
direções para uma determinada viagem durante anos depois de terem voltado para
casa.
Os
pombos têm vidas interiores complexas e experimentos revelaram que eles são até
capazes de entender conceitos como espaço e tempo – um feito surpreendente, visto que eles não têm córtex
cerebral, a camada mais externa e enrugada do cérebro que os humanos usam para
compreender tais ideias abstratas.
Mais
recentemente, os cientistas descobriram que os pombos domésticos resolvem
certos problemas de forma semelhante aos algoritmos de inteligência artificial, usando tentativa e erro para aprender a reconhecer padrões e
prever a melhor solução para um determinado problema.
No
entanto, se essas elevadas atividades intelectuais fazem os pombos parecerem
intimidadores ou preocupantes, podemos ter certeza de que eles têm algumas
falhas.
Um
estudo descobriu que as aves agem de forma semelhante aos humanos, caindo na
conhecida armadilha psicológica de,
em diferentes contextos, apostar em uma chance remota de ganhar muito, em vez
de uma chance garantida de ganho médio.
Themis
diz que os pombos muitas vezes o lembram de cães - eles são inteligentes,
sociáveis e podem ser muito afetuosos com as pessoas.
Em
2020, a organização sem fins lucrativos Peta, que defende os direitos dos
animais, lançou uma campanha para rebatizar os pombos como "filhotes do
céu", uma vez que eles "fazem cocô em público, imploram por comida e
reconhecem as pessoas que são legais com eles".
Talvez
a acusação mais prejudicial contra os pombos seja a de que estão infestados de
doenças – mas mesmo aqui as provas não se confirmam. Por um lado, são altamente
resistentes à gripe aviária. Raramente contraem o vírus e, quando o fazem,
tendem a ter quantidades baixas no corpo.
Os
pombos podem transmitir algumas doenças com potencial de se espalharem para os
humanos, embora as infecções sejam relativamente raras. Um estudo descobriu
que, entre 1941 e 2004, houve
apenas 207 relatos de patógenos transmitidos de pombos para humanos – em
qualquer lugar do mundo.
Ao
todo, foram 13 mortes registradas. O número real pode ser mais elevado, mas
teria de ser maior em várias ordens de grandeza para competir com a escala de
infecções de outros animais domesticados – especialmente alguns daqueles com
reputações mais favoráveis.
Segundo
a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrem cerca de 59 mil casos de raiva em
humanos todos os anos, 99% dos quais são transmitidos por meio de cães – e 100%
dos quais são fatais.
Mesmo
em países sem o vírus, acredita-se que muitos outros agentes patogênicos podem
ser adquiridos de cães e gatos, incluindo a superbactéria MRSA.
Dadas
essas comparações, Themis acredita que nosso julgamento em relação aos pombos é
equivocado.
·
Uma reviravolta
inesperada
Uma
das coisas mais estranhas sobre a tendência de vilanizar os pombos é que ela é
relativamente nova.
Nadira
Faber, professora de psicologia na Universidade de Bremen e pesquisadora em
filosofia na Universidade de Oxford, explica como atitudes desfavoráveis em relação aos
pombos podem ser interpretadas como especismo – uma forma de discriminação baseada na ideia de que algumas espécies são moralmente superiores a outras.
Esse
preconceito psicológico geralmente está ligado às categorias em que
classificamos os diferentes animais, como "animal de estimação",
"alimento" ou "praga". No entanto, Faber sugere que os
pombos são um caso interessante.
Os
pombos há muito tempo são associados ao amor, à fertilidade e à beleza
celestial, por culturas que vão desde os babilônios até os antigos gregos.
No
século 16, o imperador mogol Akbar, o Grande, elevou os pombos a um novo nível,
com uma vasta população que aprendeu truques de voo elaborados, como
cambalhotas e arcos dramáticos.
Na
Grã-Bretanha vitoriana, as criaturas ganharam novamente destaque, e clubes de
pombos surgiram em todo o país - lugares onde orgulhosos aquaristas podiam
exibir raças estranhas e "chiques", como a raça English
short-faced tumbler, com seu rosto achatado e aparência de constante
surpresa.
Durante
a Segunda Guerra Mundial, os pombos conquistaram ainda mais apreço do público.
No Reino Unido, 32 dos mais valentes pombos-oficiais foram premiados com a
Medalha Dickin, uma premiação para animais semelhante à Victoria Cross, a mais
alta homenagem oferecida a militares britânicos.
Um
pombo americano, GI Joe, se tornou famoso em todo o mundo por ter salvado uma
vila [ao transportar uma mensagem durante a Segunda Guerra Mundial].
Ainda
hoje, as pombas brancas são símbolos de paz e amor em todo o mundo – enquanto
os seus primos próximos são vistos como um animal que causa danos.
"É
fascinante que a mesma espécie possa, dependendo do momento e da cultura que
observamos, ser vista como pertencente a categorias diferentes", diz
Faber.
À
medida que a minha tarde com o grupo de resgate de pombos de Londres termina,
viramos para uma rua lateral onde pessoas sem teto fazem fila para uma refeição
gratuita em um carro que está distribuindo comida.
Ao
longo do dia, os voluntários ajudaram pelo menos 11 aves, incluindo uma cujo
dedo escuro caiu enquanto era examinado – levando a alguma confusão sobre o que
deveria ser feito com esse elemento macabro (no fim, alguém reivindicou para
sua coleção).
Nos
sentamos no meio-fio enquanto um pombo que se arrastava com os dois pés
amarrados era cuidado.
O
sol estava forte, todos estavam cansados e parece
que o trabalho vai demorar pelo menos uma hora. Mas aqui os pombos – e o grupo de resgate – recebem a sua melhor reação durante todo o dia, das pessoas que vivem
nas proximidades deles, nas ruas de Londres.
"Vocês
são anjos", um morador de rua sorri para nós, enquanto outro compartilha
seu jantar com uma multidão de pássaros.
Fonte:
BBC Future
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