segunda-feira, 1 de julho de 2024

Manfred Back & Luiz Gonzaga Beluzzo: ‘As mãos divinas do mercado’

Na última reunião do comitê de política monetária do Banco Central do Brasil (Copom), por unanimidade foi ratificada a manutenção da Taxa Selic em 10,5% ao ano e a suspensão temporária de cortes na taxa básica. No Templo dos Milagres do Financismo, localizada na Faria Lima, o pastor J. P. Morgan no final do culto bradou em êxtase: Amém, Irmãos! A credibilidade voltou! Nossas preces foram ouvidas, somos o povo escolhido para ganhar dinheiro, nossa verdade, é a nossa fé! Os fiéis gestores do dinheiro alheio fizeram o coro: Oh a credibilidade voltou, oh oh…

O Deus Mercado sempre está certo, amém irmãos! Quem melhor entende do vil metal? Nós ou o Banco Central? Nossa autoridade monetária voltou ao caminho da fé financista, viu a luz no caminho de Damasco…Faria Lima! Amém…

O dilúvio da desancoragem das expectativas inflacionárias foi salvo pelas mãos divinas do mercado. Contra a fé e o dogma metamorfoseados em Ciência, ninguém pode! Nem o Bacen! Amém, duas vezes, irmãos!

No livro Poder e progresso Daron Acemoglu e Simon Johnson relembram Edmund Burke, contemporâneo de Jeremy Bentham e Adam Smith. Edmund Burke referia-se às leis do comércio como “as leis da natureza e, consequentemente, as leis de Deus. Como alguém poderia se opor às leis divinas?”

Assim, vamos excomungar os infiéis do Federal Reserve, sempre dispostos a renegar nossas crenças. Eles dizem: “Desde o final de 2008 até outubro de 2014, a Reserva Federal expandiu grandemente a sua detenção de títulos de longo prazo através de compras no mercado aberto com o objetivo de exercer pressão descendente sobre as taxas de juro de longo prazo e, assim, apoiar a atividade económica e a criação de emprego, tornando as condições financeiras mais acomodativo”. (site do FED).

“O dinheiro que utilizámos para comprar obrigações quando estávamos a realizar a flexibilização quantitativa não provinha de impostos nem de empréstimos governamentais. Em vez disso, tal como outros bancos centrais, podemos criar dinheiro digitalmente sob a forma de “reservas do banco central”.

“Usamos essas reservas para comprar títulos. Os títulos são essencialmente notas promissórias emitidas pelo governo e pelas empresas como forma de pedir dinheiro emprestado”.

“Agora que estamos a reverter a flexibilização quantitativa, alguns desses títulos vencerão e estaremos vendendo outros aos investidores. Quando isso acontecer, o dinheiro que criamos para comprar os títulos desaparecerá e a quantidade total de dinheiro na economia diminuirá”. (site do Banco da Inglaterra)

Felizmente, dizem os Sacerdotes da Seita Faria Lima, o Banco Central do Brasil, está impedido de fazer esse tipo de operação amaldiçoada, praticada sem pejo por nossos irmãos anglo-saxões, tão admirados aqui. No Brasil a autoridade máxima monetária não pode determinar, intervir ou ancorar a estrutura a termo da taxa de juros. Nossa crença exige que a autonomia operacional seja contida nos limites da fé imposta pelo sacramento das Metas de Inflação.

Segundo os mandamentos da Seita Faria Lima, o Banco Central só pode definir a taxa Selic a cada 45 dias, em conformidade com o Boletim Focus, o santo graal das expectativas.  Só eles falam com Deus Dinheiro! Os mortais das fábricas de parafusos não entendem de âncoras, só de parafusos! Amém, duas vezes irmãos!

Reza a legislação dos crentes Brazucas: “O objetivo fundamental do BC é assegurar a estabilidade de preços, além de, acessoriamente, zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”. (site do BACEN).

Para apaziguar o espírito dos crentes, graças às prescrições do Velho Testamento do Senhor Dinheiro, a autoridade monetária não deve fazer política monetária e escapa do objetivo enganoso de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Por quê? Porque negar os mandamentos do Deus Mercado é pecado sem remissão!

Nos cultos aos domingos, os mais concorridos, o cântico final é o mais esperado, onde o pastor J. P. Morgan puxa a reza final: fiscal, fiscal, fiscal! A oração mais esperada: o dinheiro nosso que estás no céu. Contra satã: a dívida pública explosiva e o estado esbanjador!

As ditas operações compromissadas, são um instrumento comum dos bancos centrais para controlar a taxa básica fixada no mercado interbancário. No nosso caso, diferente de nossos irmãos do Norte, a autoridade monetária usa título público federal com clausula de recompra, para manter a taxa básica. Muito lucrativa aos bancos, e risco zero. Cabe uma observação importante, instituições financeiras existem para ganhar dinheiro. O que podem ou não podem fazer, cabe a autoridade monetária definir. Aqui podem quase tudo, afinal, são elas que garantem a credibilidade do Banco Central.

As operações compromissadas são registradas como dívida pública federal. Estimam-se entre 20 a 30% do total, seria na ordem de quase dois trilhões de reais. São operações de política monetária, nada a ver com o financiamento do déficit público. Mas serve ao mantra da congregação da faria lima: fiscal, fiscal…

Para barrar as incursões de Galileu Galilei o Cardeal Belarmino escreveu para outro clérigo: “… querer afirmar que realmente o Sol está no centro do mundo e gira apenas sobre si mesmo sem correr do oriente ao ocidente e que a Terra está no 3º céu e gira com suma velocidade em volta do Sol, é coisa muito perigosa não só de irritar todos os filósofos e teólogos escolásticos, mas também de prejudicar a Santa Fé ao tornar falsas as Sagradas Escrituras”.

Voltamos aos heréticos do Federal Reserve: Durante o processo de normalização da política que começou em dezembro de 2015, a Reserva Federal utilizou pela primeira vez acordos de recompra reversa overnight (ON RRPs) – um tipo de OMO – como uma ferramenta de política suplementar, conforme necessário, para ajudar a controlar a taxa de fundos federais e manter dentro da faixa-alvo definida pelo FOMC.

Em setembro de 2019, a Reserva Federal utilizou acordos de recompra (repo) a prazo e overnight para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla, mesmo durante períodos de aumentos acentuados nos passivos não relacionados com reservas, e para mitigar o risco de pressões do mercado monetário que poderiam afetar negativamente política de implementação.

A Reserva Federal continuou a oferecer acordos de recompra overnight e, no contexto do stress relacionado com a COVID por volta de março de 2020, os acordos de recompra a prazo e overnight desempenharam um papel importante para garantir que a oferta de reservas permanecesse ampla e apoiar o bom funcionamento dos mercados de financiamento de curto prazo em dólares dos EUA.

Na Declaração sobre acordos de acordo de recompra divulgada em 28 de julho de 2021, o Federal Reserve anunciou o estabelecimento de um mecanismo de recompra permanente (SRF) nacional. Ao abrigo do SRF, a Reserva Federal realiza diariamente operações de recompra overnight contra títulos elegíveis. “O FUR serve de apoio nos mercados monetários para apoiar a implementação eficaz da política monetária e o bom funcionamento do mercado”. (site do FED)

Nosso irmão do Norte, faz o mesmo tipo de operação, e não é contabilizado como dívida pública! Indagam os hereges: “Cadê nossa autonomia operacional? Por que não implementar os depósitos voluntários, e acabar de vez com as compromissadas, como a grande maioria dos bancos centrais no mundo?”

A Seita Faria Lima não deixa. Amém irmãos!

Prosseguem os malditos hereges: “A taxa de juros sobre os saldos de reservas (taxa IORB) é determinada pelo Conselho e é uma ferramenta importante para a condução da política monetária do Federal Reserve. Para a configuração atual da taxa IORB, consulte a nota de implementação mais recente emitida pelo FOMC. Esta nota fornece as configurações operacionais para as ferramentas de política que apoiam a meta do FOMC para a taxa de fundos federais”.

“Os depósitos a prazo facilitam a implementação da política monetária, proporcionando uma ferramenta adicional através da qual a Reserva Federal pode gerir a quantidade agregada de saldos de reservas detidos pelas instituições depositárias. Os fundos colocados em depósitos a prazo são retirados das contas de reserva das instituições participantes durante a vigência do depósito a prazo e, assim, drenam os saldos de reserva do sistema”. (site do FED).

Alô, Cardeal Belarmino, é hora de convocar a Inquisição!!!

 

¨      Com calma e expertise. Por Antonio Machado

No baticumbum da política nacional, todo mundo fala, todo mundo grita e… todo mundo tem razão e ninguém se põe de acordo.

Assim é aqui. E é, sobretudo, no mundo das redes sociais, onde, impulsionados por algoritmos programados para prender a atenção de incautos para gerar tráfego que remunera as plataformas, bilhões de palpiteiros defendem obviedades para o que pouco sabem e quem deveria saber ou não sabe ou põe fogo no parquinho digital.

Ao menos está se discutindo, o que é bom. Discussões em geral dão chance às soluções, sobretudo as interditadas por lobbies diversos representados no Congresso. Do projeto de lei para embaraçar ainda mais as exceções permitidas para o aborto ao inchaço das taxas de juros, tudo está em debate. Duvidoso é que as discussões ajudem a formar consensos para questões que vem de longe, como a dos juros.

A do aborto já começou a refluir tamanha a reação contrária, mas serviu para expor as divisões entre as bancadas do fundamentalismo e as dos partidos de centro-direita, majoritárias no Congresso. É menos certo que a polêmica dos juros tenha um desfecho produtivo.

O tema é permanente, tão antigo quanto o mistério sobre se Capitu traiu Bentinho como relatado por Machado de Assis em Dom Casmurro. É como um desafio aos formuladores da reforma monetária de 1994 de que algo ficou inacabado e reclama providência intelectual, não de retórica. Questões sobre dinheiro não se resolvem no berro.

O presidente Lula reintroduziu o assunto, reclamando com razão de o Banco Central interromper o ciclo de desengorda da taxa de juro básica da economia, Selic, no nível de 10,50%, com a inflação que a orienta avançando 4,06% em 12 meses até junho ou 3,50% 12 meses à frente conforme o último boletim Focus. Isto implica taxa real, abatendo a inflação, de 6,2% a 6,8%, um despropósito.

Duvidosa é a expectativa manifestada por Lula na sexta-feira de que “isso vai melhorar” quando ele puder indicar o presidente do BC. Roberto Campos Neto, indicado por Bolsonaro e aprovado pelo Senado em 2019, é o presidente até fim do ano. O otimismo do presidente tem gerado críticas dos que ele nomeou como “cretinos”.

·        Onde começa o juro sideral

A liturgia da autarquia é regida em lei, de forma que algo muito diferente do que está em curso ou exigirá reformas profundas mais de âmbito fiscal que monetário ou sugere uma diretoria submissa a desígnios políticos, o oposto do fundamento da autonomia a que desfruta, por voto do Congresso, para resistir a qualquer pressão.

Lula sabe que o BC segue diretrizes definidas pelo CMN, Conselho Monetário Nacional, liderado pelo ministro da Fazenda. A autonomia do BC existe para cumprir a missão recebida do governo, via CMN, sem interferências alheias, como do mercado e dos políticos.

Nestes termos, não deveria fazer diferença se fulano ou beltrano esteja à frente do BC, até porque seus nove diretores votam o que lhes cabe decidir, como a Selic, sem subordinação hierárquica.

Não menos importante é entender que a política monetária envolve um movimento coletivo que começa no CMN, portanto, no gabinete do presidente da República, passa pelo BC e se completa com os bancos e gestores de fundos que carregam os títulos de dívida do Tesouro Nacional. A Selic é o fio condutor da curva de juros das emissões do Tesouro em diferentes prazos, curtos e longos.

Os recursos aplicados por meio de bancos e fundos vem de empresas e de pessoas, daqui e do exterior, de modo que o equilíbrio entre essa miríade de interesses deve ser buscado pelo BC, pilotando sua mesa de títulos e moedas, e do Tesouro, o ente executor do que o governo indica e o Congresso aprova ou não na lei orçamentária.

E o que ambos têm feito? Criam gastos e expandem os existentes, o que obriga o Tesouro a se endividar, e o ministro da Fazenda a ir buscar na Receita Federal algo mais para fechar a conta. Difícil.

·        Só com impostos não resolve

A ideia subjacente ao entrevero da Selic é o muro encontrado pelo ministro Fernando Haddad no Congresso para continuar tributando os dinheiros aplicados em fundos e aparando desonerações tributárias.

O empresariado atingido por tais ações também indicou disposição de partir para a briga, levando o Congresso, e possivelmente mais à frente o Judiciário, a tirar o apoio ao ajuste com aumento de impostos, preservando as colunas de despesas do orçamento federal. O ministro tentou levar essa agenda ao presidente. A resposta veio no ataque aos juros altos, que também enfezam o empresariado.

Só que, como de hábito, faz-se calor sem luz, simplifica-se o que é complexo, como se troca de guarda no BC fosse resolver a parada.

Não vai. A realidade é mais complicada. Desde 1987, um anos antes da Constituição ser promulgada, até os últimos quatro anos, o naco da previdência, assistência social e folha do funcionalismo saltou de 45% do total do orçamento federal para 80%, e crescendo. Na outra ponta, o dinheiro para infraestrutura, educação, saúde e custeios do setor público desabou de 55% para menos de 20%.

Na primeira parte, previdência pulou de 19,2% para mais de 52% da lei orçamentária. Na segunda parte, o investimento público cedeu de 16% do orçamento, ou seja, dos impostos arrecadados, para 2%. Não pode dar certo. E não se resolve só expandindo carga tributária.

·        Falta balanço para crescer

Os números dos balanços público e privado indicam que não há mais espaço para repetir o status quo da governança da economia. Nem se vai desinflar o dólar, que fechou a semana em irreais R$ 5,59 (R$ 1 acima da taxa mais compatível com a saúde das contas externas), metendo bronca nos bancos, nos especuladores, no passado etc.

Fato é que a trajetória do déficit da previdência pública e INSS é insustentável no tempo, os pisos da saúde e educação indexados à evolução da receita também distorcem a prioridade ditada hoje pela demografia (cuja tendencia é de redução relativa de jovens).

O BC é peça passiva nestas tendências, mas será ativa se procurar meios menos onerosos de conduzir a inflação à meta, além do giro da dívida e de sua tendência (função de menos gastos), através de uma ação pactuada com os carregadores do papelório do Tesouro.

Esses são caminhos mais eficientes. É de interesse das empresas, dos bancos e investidores resolver as prioridades. O endividamento privado é enorme. Há mais de R$ 600 bilhões de papeis a vencer de devedores já em segunda repactuação. As construtoras e fundos que investem em infra estão sem balanço para novas investidas, razão de as licitações estarem atraindo de um a dois concorrentes.

Para tudo há solução, mas com calma e expertise. Na boca dura é que não funciona.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Jornal GGN

 

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