Daniela Costanzo: ‘Por que não deveríamos
privatizar nossa água’
O Governo do Estado de
São Paulo (GESP) acabou de concluir a privatização da Sabesp com base em um
estudo de viabilidade feito pela International Finance Corporation (IFC). A IFC
é um braço do Banco Mundial que tem como objetivo reduzir o risco de investidores
privados em mercados emergentes. Esta instituição faz isso por meio de
consultorias, estudos, empréstimos, investimentos etc. Ao fim e ao cabo, a IFC
é bastante utilizada para atrair investidores privados nas parcerias
público-privadas, sendo que o seu papel é ajudar na modelagem e garantir o retorno dos
investimentos.
Mas, nós, que bebemos
a água que passa pela purificação da Sabesp e que dependemos de seus serviços,
em geral, não deveríamos confiar em uma privatização feita com base em um
estudo do IFC principalmente pelos motivos que seguem abaixo.
• O estudo é um não estudo
O Relatório Fase 0,
que abarca o estudo e a recomendação de privatização para o GESP, não tem
nenhuma referência bibliográfica, é redigido de forma totalmente enviezada,
trazendo, apenas, supostas evidências que jogam a favor da privatização. É, no
final das contas, pouco nuançado e complexificado.
É justamente nele que
podemos encontrar as duas maiores fake news ou falácias da propaganda dessa
privatização. Em primeiro lugar, anuciou-se que as tarifas, com a privatização,
baixariam imediatamente e devem continuar baixando no longo prazo. Em segundo
lugar, com tal processo, a iniciativa privada deve alcançar a universalização
do saneamento antes do que o previsto pela Sabesp pré-privatização. Ao ler o
relatório, contudo, percebemos que tais previsões se baseiam única e
exclusivamente na expectativa de uma maior eficiência da companhia sob
administração privada. Não há estudos, regras ou leis que garantam que a tarifa
não vai subir ou que a cobertura será universal. É apenas uma mera especulação
baseada em algo não comprovado por nenhuma métrica segura ou por qualquer dado
empírico relativamente robusto. O trecho a seguir ilustra bem isso: “Por mais
que a gestão privada seja eficiente com os investimentos e custos operacionais
a serem realizados, isso somente não garantiria uma redução das atuais tarifas
da Sabesp, em especial dado o robusto plano de investimentos para os próximos
anos. Deste modo, com intuito de baixar a tarifa de imediato, o GESP poderia
usar parte dos recursos recebidos na transação pela venda de parte de suas
ações para reduzir tarifas de imediato.” (p. 24).
O trecho afirma que só
a gestão privada não garante a redução das tarifas e ainda encaminha a solução
do estado investir parte do dinheiro recebido na venda para a redução imediata
da tarifa. Tal redução imediata não é justificada no relatório, mas não é
difícil imaginar que tenha servido para aumentar o apoio à privatização.
• A tarifa pode subir
O estudo do IFC traz
alguns casos internacionais em que a privatização foi cancelada por alta das
tarifas como aprendizados do que não fazer no caso da Sabesp. Na Argentina, a
tarifa era ajustada em dólar, o que elevou muito os preços em momentos de variação
do câmbio, gerando crise política. Na França, a tarifa subiu acima da inflação,
o que também despertou uma reação da população que levou à reestatização.
A IFC garante,
entretanto, que aumentos não suportados pelos usuários não existiriam no caso
da Sabesp porque o reajuste não seria em dólar e poderia seguir a inflação por
meio dos índices brasileiros como o IPCA. O problema é que a inflação europeia
é muito menor do que costuma ser a inflação no Brasil e alguns serviços
públicos já tomam prejuízo por pagar à concessionária tarifas ajustadas pela
inflação e não repassar o valor ao usuário, visto que isto seria muito caro,
como é o caso do transporte metropolitano em São Paulo.
Portanto, não há
nenhum mecanismo efetivo, para além de expectativas não muito bem
fundadas, que garanta que a tarifa não
vá subir e não vá ficar cara. Aqui é importante lembrarmos que a tarifa subiu
em abril deste ano, portanto ela subiu antes de cair.
A IFC já mostrou que
não é boa para nós no caso da primeira PPP do Brasil
A primeira PPP do
Brasil foi feita também no GESP com a Linha Amarela do Metrô. A IFC foi
responsável por tornar a parceria atrativa aos investidores privados. Entre
suas recomendações estava mudar a ordem de prioridade de construção das
estações, de forma a construir primeiro as de maior arrecadação tarifária, pois
elas trariam mais retorno com menos investimentos em trens e em funcionários.
Isso, na prática, deixou a linha cheia
de “buracos” em seu trajeto, com estações não utilizáveis ao longo deste.
Ademais, a corporação
ligada ao Banco Mundial recomendou que a integração tarifária entre as outras
linhas (operadas pelo Metrô) e a linha amarela fosse feita de forma que o Metrô
pagasse 50% da tarifa do usuário que integrou com a linha amarela para a concessionária,
mas o contrário, todavia, não deveria ocorrer. Isto é, só o Metrô paga por
usuário integrado, e essa conta de quantos usuários do Metrô integram foi
contestada desde o início da operação pela Via Quatro, a concessionária da
Linha Amarela.
Com essas decisões, a
entrega da linha completa atrasou porque as obras não poderiam ser feitas
normalmente enquanto circulavam trens pela linha “esburacada”. O atraso gerou
multas, as quais foram pagas exclusivamente pelo GESP. Outro ponto digno de
nota, é o fato de a solução tarifária gerar prejuízos anuais para o Metrô – que
tem que pagar pela integração do usuário, mas não recebe no caso de um usuário
da Linha Amarela entrar em uma estação sob sua administração, ainda, tem que
arcar com a diferença de preço entre a tarifa ajustada pela inflação, que deve
pagar a concessionária e as gratuidades e preços pagos pelo usuário. Como se
todo o relatado não bastasse, o Metrô deve, ainda, lidar sozinho com o risco de
queda de demanda, o qual é todo arcado pelo GESP, como estabelecido em
contrato, e que teve o seu momento mais drástico na queda de uso do transporte
urbano durante a pandemia da covid-19.
Este breve texto
procurou evidenciar como, apenas de um ponto de vista de administração pública,
a privatização da Sabesp é danosa e nem falamos
em outros elementos cruciais deste processo, como a qualidade da água e
outros aspectos da privatização que estão sendo destacados na imprensa, como a
falta de concorrência e a venda abaixo do preço de mercado.
• Sabesp: Após a privatização, o engodo da
tarifa barata. Por Amauri Pollach e Cláudio Gabarrone
Anunciada como o marco
inicial da gestão privada da Sabesp, maior empresa de saneamento das Américas,
a redução em suas tarifas após finalização do processo de desestatização da
empresa parece uma promoção duvidosa em período de black friday.
O governo estadual
paulista anunciou ter cumprido seu compromisso de redução de tarifas, após
fechar o negócio de venda de 15% de suas ações na Sabesp para a Equatorial
Energia, que será a acionista de referência e de comando, e de outra parcela de
17,3% de suas ações para fundos de investimento selecionados e um punhado de
pequenos investidores.
A partir de 23/07,
houve redução de 1% para a tarifa residencial, 10% para as tarifas residenciais
social e vulnerável, e 0,5% para outras tarifas, aplicáveis somente à primeira
classe de consumo.
Qual será o impacto
desse benefício para a empresa, agora sob comando privado? Qual será o impacto
para o bolso de mais de 30 milhões de pessoas atendidas pela empresa?
Para responder às
questões, é preciso melhor compreender como funcionam os cálculos dessas
tarifas.
Desde 2008, a Agência
Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) regula,
controla e fiscaliza a Sabesp e – mais importante para o bolso do consumidor –
estabelece as tarifas praticadas pela empresa. Anualmente, em maio, a Arsesp
autoriza um reajuste que considera a inflação e o eventual aumento em alguns
insumos com forte impacto em suas despesas, como energia elétrica.
A cada período de
quatro anos há um processo de revisão tarifária com ampla discussão pública,
atualizando-se a base de ativos e a projeção dos investimentos previstos para
os quatro anos seguintes. Dentro desse período se faz apenas uma revisão anual
das tarifas, mais simples que considera índices de inflação e eventuais
impactos significativos em custos específicos, como energia elétrica.
Em 8 de abril de 2024,
com o processo de privatização em marcha acelerada, a Arsesp, por meio da
Deliberação nº 1.514, autorizou a Sabesp reajustar as tarifas em 6,4469%, a
partir de 10 de maio. No período dos doze meses anteriores a inflação foi de
4,4964%, medida pelo IPCA, isto é, o reajuste anual foi praticamente 2% acima
da inflação, apesar da empresa ter obtido um lucro recorde superior a 3,5
bilhões de reais. Um número considerável e incomum de ajustes compensatórios
foi proposto pela Sabesp e admitido pela Arsesp sem qualquer discussão pública.
Considerando as
tarifas reajustadas acima da inflação desde maio/2024 e a redução tarifária
atrelada à privatização, como ficará a receita da empresa?
Com base em uma
proporção para as categorias de consumidores no faturamento da empresa e
considerando que o benefício anunciado é aplicável somente à primeira classe de
consumo, isto é, para o consumo mínimo de 10 m³/mês, o quadro a seguir mostra o
impacto por categoria de consumidor sobre a receita da empresa.
O “descontão” da
privatização causará uma perda da ordem de 0,16% na receita da empresa. Isto é,
a redução de tarifas “reduz” o recente reajuste de 6,45% para 6,29%, um valor
praticamente insignificante e que fica muito bem acomodado na “gordura” de 2,0%
acima da inflação obtida. Praticamente não há arranhão para o excepcional
negócio dos investidores que adquiriram ações da Sabesp na black friday
paulista.
Vá lá! Ao menos ficará
mais cheio o bolso dos consumidores, principalmente daqueles mais vulneráveis.
Então, vamos avaliar o real impacto para as categorias residenciais
Deixamos de lado as
demais categorias (comercial, industrial, assistencial e pública) em que a
redução de 0,5% no consumo mínimo tem impacto irrelevante, tanto na receita da
Sabesp quanto nas despesas das empresas.
Consideremos o valor
da conta mensal de água e esgoto para uma família que resida no município de
São Paulo, em que a Sabesp arrecada mais de 45% de sua receita e o CadÚnico
registrava 1.025.006 famílias em situação de vulnerabilidade, em janeiro 2024.
Em São Paulo, o
consumo médio mensal por domicilio é cerca de 15m³, volume de água que atende
as necessidades de uma família de três pessoas.
Como se aplica a
cobrança pelos serviços de água e esgoto prestados para essa família?
A tabela de tarifas
está organizada por classes de consumo. A primeira classe é de 0 a 10 m³ por mês
e corresponde a um valor fixo, cobrado mesmo que o consumo tenha sido abaixo de
10 m³. A partir da segunda classe, de 11 a 20 m³ por mês, o valor da tarifa é
estabelecido por metro cúbico consumido.
A família paulistana
do nosso exemplo, ao consumir 15m³ no mês tem a conta calculada pela soma de
duas parcelas, tanto em água como em esgoto: a primeira com o valor fixo da
primeira classe, e a segunda com o valor unitário da segunda classe
multiplicado por 5 (cinco).
Há três categorias de
tarifas residenciais aplicáveis:
(i) vulnerável, se a(o) chefe de família
estiver cadastrada(o) no CadÚnico e a renda familiar por pessoa está abaixo de
R$218,00;
(ii) social, se estiver no CadÚnico e a renda
por pessoa está entre R$ 218,00 e ½ salário mínimo; e
(iii) comum, quando não se aplicam as condições
anteriores.
Ofertada pelo governo
Tarcísio imediatamente após a privatização da Sabesp, a benevolente redução, em
reais, sequer possibilita a uma família com tarifa social comprar um cafezinho
coado na padaria!
Para uma família que
tenha vulnerável não dá para comprar dois pãezinhos por mês!
Para quem tem renda
acima de um salário mínimo, os 76 centavos de desconto chegam a ser um
escárnio!
Portanto, é
inconcebível festejar e fazer alarde sobre um não-benefício, totalmente
distante da realidade e das necessidades cotidianas das pessoas.
O governo paulista
poderia ter eliminado há quase um ano um prejudicial e injustificável prejuízo
para o bolso das pessoas de baixa renda atendidas pela Sabesp. Mais de 1,5
milhão de famílias mais vulneráveis no estado de São Paulo sofrem com o descaso
(ou sonegação) de acesso ao benefício de tarifas reduzidas da Sabesp. Por que
isso acontece e o que tem a ver com a privatização da Sabesp?
SILVA e POLLACHI
(2024)1 mostram que, em 2021, a Deliberação nº 1.150 da Arsesp determinou que a
Sabesp incluísse todos usuários inscritos no CadÚnico nas categorias de tarifas
vulnerável ou social2 até setembro de 2023. Mediante dados obtidos na Sabesp e
no CadÚnico, o estudo demonstra que 964.720 moradias estavam enquadradas nas
categorias social e vulnerável em dezembro de 2023. No entanto, vencido o prazo
estipulado pela Arsesp, 1.698.112 famílias não estavam atendidas com tarifas
reduzidas. Na cidade de São Paulo, há 462.466 famílias que não foram
“agraciadas” com esse direito.
A data limite para que
todas os potenciais beneficiários fossem atendidos com redução de tarifas era
setembro de 2023. Entretanto, a partir de janeiro de 2023, quando se iniciou a
atual gestão estadual, houve um freio no enquadramento de famílias levando a
esse gigantesco “estoque” à espera do benefício, 75% superior à quantidade
atendida.
O impacto no orçamento
familiar é enorme. Para um consumo de 15m³ por mês, o valor da conta
residencial comum de água e esgoto é de R$ 136,02. Com a tarifa vulnerável a
conta cai para R$ 26,72 uma economia de R$ 109,30, que equivale a mais de 20 kg
de arroz.
O cadastramento em
tarifas reduzidas para mais de 1,6 milhão de famílias (ou 4 milhões de
paulistas) está injustificavelmente atrasado há quase um ano!
A redução de tarifas
trombeteada pelo governo Tarcísio é mais uma camada de vergonha nesse processo
de privatização da Sabesp a preço vil.
Enquanto isso, as
pessoas mais pobres são tratadas como massa de manobra e descaso com o seu
direito de pagar muito menos pela conta d’água. Quiçá serão atendidos mediante
um conveniente casamento de datas a partir da privatização da Sabesp, que
ocorreu, como desejava o governo, antes do período das campanhas eleitorais
municipais.
Fonte: Blog da
Boitempo/Outras Palavras
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