Polarização e disputa eleitoral acirrada
elevam chance de guerra civil nos EUA, dizem especialistas
O tenso processo
eleitoral que os Estados Unidos atravessam alimentou a polarização em uma nação
onde democratas e republicanos têm se atacado cada vez mais, demonstrando a
grande falta de unidade da sociedade norte-americana atual.
A recente tentativa de
assassinato do candidato presidencial republicano Donald Trump alimentou ainda
mais o clima de tensão, a tal ponto que Robert F. Kennedy Jr., candidato
independente à presidência, chamou a atenção para uma possível "revolução".
"Haverá uma
revolução neste país. A questão é se ela será impulsionada pelo idealismo ou se
será sequestrada por forças obscuras e regressivas. A escolha é nossa",
disse o sobrinho do ex-presidente John F. Kennedy.
Segundo o candidato, a
luta pelo poder em Washington tornou-se uma luta de classes entre as elites e o
povo, uma vez que já ultrapassou o confronto entre democratas e republicanos.
De acordo com Juan
Daniel Garay Saldaña, professor de estudos México-Estados Unidos na
Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), "declarações [como as de
Kennedy] referem-se à polarização da sociedade americana e à divisão que existe
neste momento. A origem desta divisão remonta a muitos anos", afirmou
Saldaña ouvido pela Sputnik.
Recentemente, duas
pesquisas perguntaram aos cidadãos se eles consideravam viável a eclosão de uma
guerra civil nos Estados Unidos. Resultado: quase metade dos inquiridos
acredita que um evento desta magnitude é viável.
De acordo com uma
pesquisa de maio de 2024 da Marist National Poll, 47% dos norte-americanos
acreditam que outra guerra civil provavelmente ocorrerá no país, já 52%
consideram que esta hipótese é improvável ou nada provável.
"Acho que é muito
difícil que isso aconteça [neste momento]. No entanto, a polarização social, a
violência e todo esse tipo de cultura levaram a um aumento dos sinais de alerta
em termos de tensão social nos Estados Unidos", disse Irving Rico, mestre
em Estudos de Relações Internacionais pela UNAM, à Sputnik.
Outra pesquisa, do
Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade de
Delaware, publicada em 2022 e intitulada "Os Estados Unidos estão
caminhando para uma guerra civil?", sustenta que o principal cenário em
que um conflito interno poderia ocorrer nos Estados Unidos é um resultado
contestado nas eleições presidenciais de 2024.
"Há neste momento
uma grande divisão social e política, há uma crise de instituições e uma
violência generalizada devido ao surgimento de grupos radicais, não só da
direita, mas da própria esquerda americana", comentou Saldaña.
Os meses de conflito
na Faixa de Gaza, os múltiplos julgamentos do ex-presidente Donald Trump e o
início da temporada de eleições presidenciais levaram a um declínio na unidade
entre os estadunidenses, de acordo com o Índice de Unidade Vanderbilt, que mostra
que o país continua a sua tendência rumo a uma maior polarização, encerrando
2023 com uma queda de cerca de 10 pontos percentuais em relação ao início do
ano.
Uma hipotética eclosão
de um conflito interno nos Estados Unidos não afetaria apenas os habitantes
daquele país, mas, segundo os especialistas, poderia perturbar os aliados de
Washington em todo o mundo e os seus vizinhos geográficos.
"Os Estados
Unidos continuam a ser o principal arquiteto da ordem geopolítica global tal
como a conhecemos. Se surgir uma crise desta natureza interna, significaria um
terremoto muito forte em toda a ordem liberal que, também deve ser dito, é em
crise", observou Rico.
No caso específico do
México, o especialista acredita que seria um dos países mais afetados porque
compartilha milhares de quilômetros de fronteira e porque há muitos mexicanos
vivendo nos Estados Unidos.
¨ Harris vai defender dogma russofóbico dos EUA enquanto o mundo
busca uma ordem multipolar
Muita especulação
surgiu sobre a abordagem da vice-presidente Kamala Harris em relação à política
externa dos EUA nos dias desde que a ex-procuradora-geral da Califórnia foi
anunciada como sucessora escolhida de Joe Biden no último domingo (21). A
Sputnik ouviu o comentarista Michael Maloof sobre a questão.
Uma formidável
confluência de interesses militares, de inteligência e financeiros,
alternativamente referida como "o Estado Profundo" ou "a
Bolha", tem permanecido historicamente hostil à potência mundial
eurasiana, independentemente de qual presidente ocupe o Salão Oval.
Harris, que serviu no
Senado dos EUA de 2017 a 2021, assumiu um perfil relativamente discreto. Os
observadores especularam que ela foi deliberadamente encarregada de vender
políticas controversas ao público durante o seu tempo como segunda em comando
de Biden, como quando foi enviada para a Guatemala em 2021 para alertar
potenciais imigrantes contra a ida para os Estados Unidos.
"Francamente, não
sabemos o que ela fará no cenário internacional. Não há nada que ela tenha dito
ou feito que nos dê qualquer indicação de qual é a sua posição sobre qualquer
coisa", afirmou o ex-analista sênior de segurança do Departamento de
Defesa dos EUA, Michael Maloof. Mas o analista acredita que a postura de Harris
diante da visita do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu aos EUA é
um indicador importante a ser observado. A vice-presidente se recusou a
assistir ao discurso de Netanyahu no Congresso dos EUA, mas concordou em se
reunir com ele em outra ocasião, durante sua estada em solo norte-americano.
"Ela não quer ser
associada a ele publicamente [...]. É por isso que ela não aparece na sessão
conjunta."
Para o analista,
Harris, que é cerca de 22 anos mais jovem que o presidente Biden, pode estar
naturalmente inclinada à simpatia dos jovens norte-americanos pela causa
palestina, mas seria restringida pelas ações do seu antecessor. Maloof sugeriu
que seria especialmente difícil para a candidata democrata traçar um novo rumo
nas relações com a Rússia, que continua envolvida em uma guerra por procuração
apoiada pelos EUA com a Ucrânia.
"Temo que se
continuarem a política em relação à Rússia, como estão agora, quando [Anatoly]
Antonov, o atual embaixador russo, partir, ele não será substituído. Acho que
[a Rússia] degradará as relações", disse Maloof. "Estamos tornando muito
mais difícil renovar quaisquer relações."
"Estamos quase à
beira de uma guerra por causa de uma farsa", acrescentou Maloof,
referindo-se à teoria da conspiração de que Trump conspirou com a Rússia
durante as eleições presidenciais dos EUA em 2016. "É basicamente isso que
significa e, como consequência, as nossas relações no mundo estão complicadas
agora."
"Nunca vi, em
três anos e meio, como poderíamos [os EUA] ter estragado tanto as coisas no
cenário internacional quando temos todas essas pessoas muito inteligentes e
educadas no comando, supostamente, e estamos indo na direção que estamos. É
inacreditável."
Na década de 1990, os
Estados Unidos emergiram como a única superpotência mundial após a queda da
União Soviética, possuindo maior influência política, cultural e econômica do
que qualquer outra nação. Mas à medida que o militarismo dos EUA no século XXI
levou à morte de cerca de 4,5 milhões de pessoas, os países do Sul Global têm
se unido cada vez mais em apoio a Moscou e Pequim para procurar alternativas à
hegemonia ocidental, demonstrado pela emergência de instituições como a
Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e o bloco econômico BRICS.
"Devido a este
conceito de ordem multipolar, estamos assistindo a uma maior mudança por parte
dos países que têm sido historicamente sujeitos à colonização", afirmou
Maloof. "Eles estão se rebelando e [entre] os poucos países que não estiveram
envolvidos na colonização foram a Rússia e a China. É por isso que vemos o Sul
Global — África, América Latina, Ásia — geralmente gravitando em torno deste
conceito eurasiano, em direção ao BRICS, à OCX."
"[Os países do
BRICS] estão se tornando, aliás, não apenas uma instituição econômica, mas
podem se tornar a instituição de defesa contra a Organização do Tratado do
Atlântico Norte [OTAN] porque a Aliança Atlântica quer se expandir para o
Pacífico", acrescentou. A controversa aliança militar reforçou os laços
com aliados ocidentais tradicionais como a Colômbia, o Japão e a Austrália, à
medida que os líderes da OTAN pintam Moscou e Pequim como as principais ameaças
à ordem mundial liderada pelos EUA.
Maloof disse que é
improvável que Harris supere a influência do establishment da política externa
dos Estados Unidos se tentar renovar os laços com a Rússia.
"Independentemente
de qual seja o presidente, haverá esta relação controversa que temos com a
Rússia", afirmou o analista. "Acho que Kamala [Harris] será uma
extensão e, como ela não tem essa pegada de política externa, acho que é muito
mais provável que ela siga a tradicional linha democrata ou republicana dos
EUA."
¨ Biden está 'fazendo testamento em vida' para asfixiar políticas
de Trump, dizem analistas
Após publicar uma
carta anunciando sua desistência da corrida eleitoral, Joe Biden fez um
pronunciamento no qual reforçou sua continuidade na cadeira de presidente até o
fim do mandato. Para analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, o democrata quer
imobilizar ao máximo um possível governo de Donald Trump.
Em sua fala dirigida
ao público norte-americano, feita na noite de quarta-feira (24), o presidente
dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que chegou a hora de dar espaço a uma
nova geração no comando dos Estados Unidos, representada pela sua vice, Kamala
Harris.
A declaração vem em
meio a críticas de que esta eleição é marcada pela disputa da gerontocracia
norte-americana. Biden tem 81 anos e convive com preocupações sobre sua saúde
física e mental por parte do público. Já seu opositor, Donald Trump, está
concorrendo aos 78 anos e terminaria o mandato aos 82.
A quase oficialização
da candidatura de Kamala Harris trouxe "um folêgo adicional aos
democratas, principalmente ao consenso vinculado ao complexo industrial-militar
e financeiro dos EUA", afirma Luiz Felipe Osório, professor de relações
internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor
do livro "Imperialismo, Estado e Relações Internacionais", publicado
pela editora Ideias e Letras.
O mesmo é dito por
Mateus Mendes, mestre em ciência política e autor de "Guerra híbrida e
neogolpismo: geopolítica e luta de classes no Brasil (2013-2018)", que
adiciona que "Biden perderia fragorosamente, com certeza. Não tinha
nenhuma dúvida, a derrota era certa".
"A Kamala Harris
consegue abrir alguma vantagem em relação ao Trump, e principalmente doadores
já mostraram que estão entusiasmados, que eles voltam a ter esperança, e a
campanha começou a ganhar dinheiro", disse Mendes.
·
Impopular, Biden permanece no poder
Em seu anúncio, Biden
afirmou também que seguirá como chefe de Estado e que usará do restante de seu
mandato para fortalecer a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN),
adquirir mais apoio para a Ucrânia e terminar com a guerra em Gaza.
Segundo Osório, esses
três pontos são as principais pautas da política externa de Biden, que serviram
para expandir "a influência e a força militar da coalizão
imperialista" e tentar cercar a Rússia e a China.
"A Aliança
Atlântica representa a ocupação da Europa pelos Estados Unidos e seu avanço
contra os processos revolucionários e de resistência no Leste Europeu e na
Ásia."
Inclusive, são
justamente os vexames da política externa, desde a retirada de tropas do
Afeganistão ao "atoleiro" que se tornou o conflito ucraniano, que
"baixam consideravelmente a popularidade de Biden", lembra o
professor da UFRRJ.
"O Ocidente não
para de investir recursos, tecnologias e armamentos, mas não consegue avançar
um milímetro. Ao contrário, cacifa derrotas cada vez mais sentidas, à custa do
povo ucraniano e do fomento à russofobia", afirma Osório.
"Ainda que o
circuito de crédito passe pelo complexo industrial-militar e financeiro, a
avaliação sobre inutilidade do conflito [na Ucrânia] só aumenta, mostrando que
os Estados Unidos não detêm mais a mesma capacidade de travar e de vencer
guerras por procuração."
Já a guerra em Gaza é
"a materialização da violência e voracidade do imperialismo, dissipando
qualquer ilusão quanto a um viés progressista dos democratas".
·
Biden tenta definir um futuro democrata
para os EUA
Em seu mandato,
explica Osório, Trump, "representante de uma ala minoritária da burguesia
estadunidense, muito vinculada ao isolacionismo em termos de política
externa", freou um pouco essa caminhada da política externa dos EUA.
E é justamente isso
que o Partido Democrata quer impedir que aconteça novamente, e Biden parece
estar fazendo isso de duas formas distintas.
A primeira é ao
indicar Harris como sucessora e anunciá-la como uma renovação. Os democratas
tentam se valer do fator novidade e do desconhecimento que o público tem de sua
trajetória para distanciá-la de Biden, diz o professor.
"Harris tem um
passado de encarceramento da população jovem e negra nos Estados Unidos,
valendo-se do punitivismo e do moralismo jurídico que muito se assemelha aos
preceitos da operação Lava Jato no Brasil."
Nesse sentido, embora
Harris venha de uma ala do Partido Democrata diferente da de Biden, "a
política a ser praticada por ela não se diferenciaria em nada daquela executada
por Biden, pois, afinal, ambos representam o mesmo setor da burguesia estadunidense".
A outra forma,
explicita Mendes, é que Biden está "fazendo um testamento em vida"
nestes últimos meses. "Ele entende que uma vitória do Trump vai
representar uma série de retrocessos na questão da OTAN."
Para isso, diz o
cientista político, Biden está encontrando formas de deixar os Estados Unidos
comprometidos de forma que "as decisões do Trump não vão ser suficientes
para inflectir a política externa".
"Já garantiu, por
exemplo, uma participação maior dos Estados Unidos na OTAN, […]
[independentemente] de os democratas vencerem ou perderem a eleição."
Fonte: Sputnik Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário