sábado, 27 de julho de 2024

Polarização e disputa eleitoral acirrada elevam chance de guerra civil nos EUA, dizem especialistas

O tenso processo eleitoral que os Estados Unidos atravessam alimentou a polarização em uma nação onde democratas e republicanos têm se atacado cada vez mais, demonstrando a grande falta de unidade da sociedade norte-americana atual.

A recente tentativa de assassinato do candidato presidencial republicano Donald Trump alimentou ainda mais o clima de tensão, a tal ponto que Robert F. Kennedy Jr., candidato independente à presidência, chamou a atenção para uma possível "revolução".

"Haverá uma revolução neste país. A questão é se ela será impulsionada pelo idealismo ou se será sequestrada por forças obscuras e regressivas. A escolha é nossa", disse o sobrinho do ex-presidente John F. Kennedy.

Segundo o candidato, a luta pelo poder em Washington tornou-se uma luta de classes entre as elites e o povo, uma vez que já ultrapassou o confronto entre democratas e republicanos.

De acordo com Juan Daniel Garay Saldaña, professor de estudos México-Estados Unidos na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), "declarações [como as de Kennedy] referem-se à polarização da sociedade americana e à divisão que existe neste momento. A origem desta divisão remonta a muitos anos", afirmou Saldaña ouvido pela Sputnik.

Recentemente, duas pesquisas perguntaram aos cidadãos se eles consideravam viável a eclosão de uma guerra civil nos Estados Unidos. Resultado: quase metade dos inquiridos acredita que um evento desta magnitude é viável.

De acordo com uma pesquisa de maio de 2024 da Marist National Poll, 47% dos norte-americanos acreditam que outra guerra civil provavelmente ocorrerá no país, já 52% consideram que esta hipótese é improvável ou nada provável.

"Acho que é muito difícil que isso aconteça [neste momento]. No entanto, a polarização social, a violência e todo esse tipo de cultura levaram a um aumento dos sinais de alerta em termos de tensão social nos Estados Unidos", disse Irving Rico, mestre em Estudos de Relações Internacionais pela UNAM, à Sputnik.

Outra pesquisa, do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade de Delaware, publicada em 2022 e intitulada "Os Estados Unidos estão caminhando para uma guerra civil?", sustenta que o principal cenário em que um conflito interno poderia ocorrer nos Estados Unidos é um resultado contestado nas eleições presidenciais de 2024.

"Há neste momento uma grande divisão social e política, há uma crise de instituições e uma violência generalizada devido ao surgimento de grupos radicais, não só da direita, mas da própria esquerda americana", comentou Saldaña.

Os meses de conflito na Faixa de Gaza, os múltiplos julgamentos do ex-presidente Donald Trump e o início da temporada de eleições presidenciais levaram a um declínio na unidade entre os estadunidenses, de acordo com o Índice de Unidade Vanderbilt, que mostra que o país continua a sua tendência rumo a uma maior polarização, encerrando 2023 com uma queda de cerca de 10 pontos percentuais em relação ao início do ano.

Uma hipotética eclosão de um conflito interno nos Estados Unidos não afetaria apenas os habitantes daquele país, mas, segundo os especialistas, poderia perturbar os aliados de Washington em todo o mundo e os seus vizinhos geográficos.

"Os Estados Unidos continuam a ser o principal arquiteto da ordem geopolítica global tal como a conhecemos. Se surgir uma crise desta natureza interna, significaria um terremoto muito forte em toda a ordem liberal que, também deve ser dito, é em crise", observou Rico.

No caso específico do México, o especialista acredita que seria um dos países mais afetados porque compartilha milhares de quilômetros de fronteira e porque há muitos mexicanos vivendo nos Estados Unidos.

¨      Harris vai defender dogma russofóbico dos EUA enquanto o mundo busca uma ordem multipolar

Muita especulação surgiu sobre a abordagem da vice-presidente Kamala Harris em relação à política externa dos EUA nos dias desde que a ex-procuradora-geral da Califórnia foi anunciada como sucessora escolhida de Joe Biden no último domingo (21). A Sputnik ouviu o comentarista Michael Maloof sobre a questão.

Uma formidável confluência de interesses militares, de inteligência e financeiros, alternativamente referida como "o Estado Profundo" ou "a Bolha", tem permanecido historicamente hostil à potência mundial eurasiana, independentemente de qual presidente ocupe o Salão Oval.

Harris, que serviu no Senado dos EUA de 2017 a 2021, assumiu um perfil relativamente discreto. Os observadores especularam que ela foi deliberadamente encarregada de vender políticas controversas ao público durante o seu tempo como segunda em comando de Biden, como quando foi enviada para a Guatemala em 2021 para alertar potenciais imigrantes contra a ida para os Estados Unidos.

"Francamente, não sabemos o que ela fará no cenário internacional. Não há nada que ela tenha dito ou feito que nos dê qualquer indicação de qual é a sua posição sobre qualquer coisa", afirmou o ex-analista sênior de segurança do Departamento de Defesa dos EUA, Michael Maloof. Mas o analista acredita que a postura de Harris diante da visita do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu aos EUA é um indicador importante a ser observado. A vice-presidente se recusou a assistir ao discurso de Netanyahu no Congresso dos EUA, mas concordou em se reunir com ele em outra ocasião, durante sua estada em solo norte-americano.

"Ela não quer ser associada a ele publicamente [...]. É por isso que ela não aparece na sessão conjunta."

Para o analista, Harris, que é cerca de 22 anos mais jovem que o presidente Biden, pode estar naturalmente inclinada à simpatia dos jovens norte-americanos pela causa palestina, mas seria restringida pelas ações do seu antecessor. Maloof sugeriu que seria especialmente difícil para a candidata democrata traçar um novo rumo nas relações com a Rússia, que continua envolvida em uma guerra por procuração apoiada pelos EUA com a Ucrânia.

"Temo que se continuarem a política em relação à Rússia, como estão agora, quando [Anatoly] Antonov, o atual embaixador russo, partir, ele não será substituído. Acho que [a Rússia] degradará as relações", disse Maloof. "Estamos tornando muito mais difícil renovar quaisquer relações."

"Estamos quase à beira de uma guerra por causa de uma farsa", acrescentou Maloof, referindo-se à teoria da conspiração de que Trump conspirou com a Rússia durante as eleições presidenciais dos EUA em 2016. "É basicamente isso que significa e, como consequência, as nossas relações no mundo estão complicadas agora."

"Nunca vi, em três anos e meio, como poderíamos [os EUA] ter estragado tanto as coisas no cenário internacional quando temos todas essas pessoas muito inteligentes e educadas no comando, supostamente, e estamos indo na direção que estamos. É inacreditável."

Na década de 1990, os Estados Unidos emergiram como a única superpotência mundial após a queda da União Soviética, possuindo maior influência política, cultural e econômica do que qualquer outra nação. Mas à medida que o militarismo dos EUA no século XXI levou à morte de cerca de 4,5 milhões de pessoas, os países do Sul Global têm se unido cada vez mais em apoio a Moscou e Pequim para procurar alternativas à hegemonia ocidental, demonstrado pela emergência de instituições como a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e o bloco econômico BRICS.

"Devido a este conceito de ordem multipolar, estamos assistindo a uma maior mudança por parte dos países que têm sido historicamente sujeitos à colonização", afirmou Maloof. "Eles estão se rebelando e [entre] os poucos países que não estiveram envolvidos na colonização foram a Rússia e a China. É por isso que vemos o Sul Global — África, América Latina, Ásia — geralmente gravitando em torno deste conceito eurasiano, em direção ao BRICS, à OCX."

"[Os países do BRICS] estão se tornando, aliás, não apenas uma instituição econômica, mas podem se tornar a instituição de defesa contra a Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN] porque a Aliança Atlântica quer se expandir para o Pacífico", acrescentou. A controversa aliança militar reforçou os laços com aliados ocidentais tradicionais como a Colômbia, o Japão e a Austrália, à medida que os líderes da OTAN pintam Moscou e Pequim como as principais ameaças à ordem mundial liderada pelos EUA.

Maloof disse que é improvável que Harris supere a influência do establishment da política externa dos Estados Unidos se tentar renovar os laços com a Rússia.

"Independentemente de qual seja o presidente, haverá esta relação controversa que temos com a Rússia", afirmou o analista. "Acho que Kamala [Harris] será uma extensão e, como ela não tem essa pegada de política externa, acho que é muito mais provável que ela siga a tradicional linha democrata ou republicana dos EUA."

¨      Biden está 'fazendo testamento em vida' para asfixiar políticas de Trump, dizem analistas

Após publicar uma carta anunciando sua desistência da corrida eleitoral, Joe Biden fez um pronunciamento no qual reforçou sua continuidade na cadeira de presidente até o fim do mandato. Para analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, o democrata quer imobilizar ao máximo um possível governo de Donald Trump.

Em sua fala dirigida ao público norte-americano, feita na noite de quarta-feira (24), o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que chegou a hora de dar espaço a uma nova geração no comando dos Estados Unidos, representada pela sua vice, Kamala Harris.

A declaração vem em meio a críticas de que esta eleição é marcada pela disputa da gerontocracia norte-americana. Biden tem 81 anos e convive com preocupações sobre sua saúde física e mental por parte do público. Já seu opositor, Donald Trump, está concorrendo aos 78 anos e terminaria o mandato aos 82.

A quase oficialização da candidatura de Kamala Harris trouxe "um folêgo adicional aos democratas, principalmente ao consenso vinculado ao complexo industrial-militar e financeiro dos EUA", afirma Luiz Felipe Osório, professor de relações internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro "Imperialismo, Estado e Relações Internacionais", publicado pela editora Ideias e Letras.

O mesmo é dito por Mateus Mendes, mestre em ciência política e autor de "Guerra híbrida e neogolpismo: geopolítica e luta de classes no Brasil (2013-2018)", que adiciona que "Biden perderia fragorosamente, com certeza. Não tinha nenhuma dúvida, a derrota era certa".

"A Kamala Harris consegue abrir alguma vantagem em relação ao Trump, e principalmente doadores já mostraram que estão entusiasmados, que eles voltam a ter esperança, e a campanha começou a ganhar dinheiro", disse Mendes.

·        Impopular, Biden permanece no poder

Em seu anúncio, Biden afirmou também que seguirá como chefe de Estado e que usará do restante de seu mandato para fortalecer a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), adquirir mais apoio para a Ucrânia e terminar com a guerra em Gaza.

Segundo Osório, esses três pontos são as principais pautas da política externa de Biden, que serviram para expandir "a influência e a força militar da coalizão imperialista" e tentar cercar a Rússia e a China.

"A Aliança Atlântica representa a ocupação da Europa pelos Estados Unidos e seu avanço contra os processos revolucionários e de resistência no Leste Europeu e na Ásia."

Inclusive, são justamente os vexames da política externa, desde a retirada de tropas do Afeganistão ao "atoleiro" que se tornou o conflito ucraniano, que "baixam consideravelmente a popularidade de Biden", lembra o professor da UFRRJ.

"O Ocidente não para de investir recursos, tecnologias e armamentos, mas não consegue avançar um milímetro. Ao contrário, cacifa derrotas cada vez mais sentidas, à custa do povo ucraniano e do fomento à russofobia", afirma Osório.

"Ainda que o circuito de crédito passe pelo complexo industrial-militar e financeiro, a avaliação sobre inutilidade do conflito [na Ucrânia] só aumenta, mostrando que os Estados Unidos não detêm mais a mesma capacidade de travar e de vencer guerras por procuração."

Já a guerra em Gaza é "a materialização da violência e voracidade do imperialismo, dissipando qualquer ilusão quanto a um viés progressista dos democratas".

·        Biden tenta definir um futuro democrata para os EUA

Em seu mandato, explica Osório, Trump, "representante de uma ala minoritária da burguesia estadunidense, muito vinculada ao isolacionismo em termos de política externa", freou um pouco essa caminhada da política externa dos EUA.

E é justamente isso que o Partido Democrata quer impedir que aconteça novamente, e Biden parece estar fazendo isso de duas formas distintas.

A primeira é ao indicar Harris como sucessora e anunciá-la como uma renovação. Os democratas tentam se valer do fator novidade e do desconhecimento que o público tem de sua trajetória para distanciá-la de Biden, diz o professor.

"Harris tem um passado de encarceramento da população jovem e negra nos Estados Unidos, valendo-se do punitivismo e do moralismo jurídico que muito se assemelha aos preceitos da operação Lava Jato no Brasil."

Nesse sentido, embora Harris venha de uma ala do Partido Democrata diferente da de Biden, "a política a ser praticada por ela não se diferenciaria em nada daquela executada por Biden, pois, afinal, ambos representam o mesmo setor da burguesia estadunidense".

A outra forma, explicita Mendes, é que Biden está "fazendo um testamento em vida" nestes últimos meses. "Ele entende que uma vitória do Trump vai representar uma série de retrocessos na questão da OTAN."

Para isso, diz o cientista político, Biden está encontrando formas de deixar os Estados Unidos comprometidos de forma que "as decisões do Trump não vão ser suficientes para inflectir a política externa".

"Já garantiu, por exemplo, uma participação maior dos Estados Unidos na OTAN, […] [independentemente] de os democratas vencerem ou perderem a eleição."

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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