Como
fertilização in vitro se tornou novo alvo do movimento antiaborto nos EUA
Um
tratamento de fertilidade usado por milhões de famílias está no centro de um
debate que vem sendo considerado a nova frente de batalha dos movimentos
antiaborto nos Estados Unidos.
Enquanto
vários Estados americanos já adotam ou discutem leis que garantem a embriões e
fetos dentro do ventre da gestante as mesmas proteções legais dadas a uma
pessoa, duas decisões recentes colocam em foco o status de embriões gerados por
fertilização in vitro e ainda não implantados no útero.
Neste
mês, a Convenção Batista do Sul, principal denominação protestante do país,
aprovou uma resolução que condena tecnologias como fertilização in vitro, que
frequentemente "resultam na destruição de embriões humanos", já que
os excedentes muitas vezes são descartados.
Em
fevereiro, o tema já havia ganhado destaque nacional quando a Suprema Corte do
Alabama, mais alta instância da Justiça daquele Estado, decidiu que embriões
congelados em tubos de ensaio devem ser considerados crianças perante a lei,
levando ao fechamento temporário de clínicas de fertilização in vitro.
O
debate nos EUA ocorre em um momento em que a questão do status legal de
embriões e fetos também entrou em pauta no Brasil, em meio à discussão sobre o
projeto de lei que equipara o aborto a partir de 22 semanas de gestação a
homicídio, mesmo em casos de estupro.
Em
vídeo divulgado nas redes sociais nesta semana, o autor do projeto, deputado
Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), comparou sua proposta com o Estatuto do Nascituro:
"É um projeto ainda light, não é o Estatuto do Nascituro, que os pró-vida,
que são católicos e evangélicos de todo Brasil, esperariam que fosse
aprovado".
Com
essa comparação, Cavalcante chamou a atenção para aquele projeto de lei,
apresentado inicialmente em 2007, que daria proteção jurídica ao nascituro,
descrito como "ser humano concebido, mas ainda não nascido",
incluindo os concebidos in vitro, e tornaria o aborto crime hediondo.
A
fertilização in vitro não é o foco específico da discussão atual no Brasil. Nos
Estados Unidos, porém, analistas e ativistas enxergam a rejeição à técnica como
uma progressão natural do movimento antiaborto e de leis baseadas na ideia de
que a vida começa no momento da concepção (na união do espermatozoide com o
óvulo).
"Há
muito tempo o movimento antiaborto se opõe à fertilização in vitro", diz à
BBC News Brasil a historiadora do direito Mary Ziegler, professora de Direito
da Universidade da Califórnia, em Davis. "Mas tem havido mais esforço para
dar prioridade [a esse tema] ultimamente."
Ziegler,
que é autora de diversos livros sobre a história jurídica do debate sobre o
aborto nos Estados Unidos, diz que não se surpreenderá se o debate em torno da
fertilização in vitro começar a ganhar mais atenção em outros países, como o
Brasil.
"Acho
que o Brasil é provavelmente o país com o paralelo mais próximo dos Estados
Unidos em termos de política partidária do aborto e no sentido de pegar
emprestadas estratégias em torno do tema", opina.
• Apoio popular e dilema moral
Calcula-se
que cerca de 2% dos nascimentos nos Estados Unidos a cada ano sejam fruto de
gestações via fertilização in vitro.
Nessa
técnica de reprodução assistida, é comum que sejam extraídos o máximo possível
de óvulos de uma mulher, que são então fertilizados por espermatozoides em
laboratório.
Múltiplos
embriões costumam ser gerados nesse processo, e os que não são transferidos ao
útero podem ser congelados para uso posterior, destruídos ou doados, inclusive
para pesquisas médicas.
Ao
contrário do aborto, que divide a sociedade americana, a fertilização in vitro
é extremamente popular no país, mesmo entre religiosos e evangélicos.
Em
pesquisa da empresa YouGov a pedido da CBS News em fevereiro, 86% defendem a
legalidade do tratamento.
Outro
levantamento, feito pela consultora Kellyanne Conway, que foi conselheira de
Donald Trump, revelou apoio de 83% dos evangélicos e 78% dos que se identificam
como "pró-vida" ao tratamento.
No
entanto, ao mesmo tempo em que a maioria dos americanos diz apoiar a técnica,
pesquisa do instituto Pew Research Center indica que 35% concordam que "a
vida humana começa na concepção, portanto um embrião é uma pessoa com
direitos".
Muitos
dos que se opõem ao aborto não veem ligação entre o procedimento e a
fertilização in vitro, encarada como uma tecnologia cujo objetivo é gerar vidas
e que ajuda inúmeros casais com problemas de fertilidade a ter filhos e
aumentar a família.
Mas
o destino dos embriões excedentes sempre foi um ponto ressaltado por opositores
da técnica, que apontam para um dilema moral diante da crença de que a vida
começa no momento da concepção.
Segundo
Ziegler, antes havia no movimento antiaborto o sentimento de que destacar essa
questão poderia prejudicar a luta para derrubar Roe versus Wade, a decisão de
1973 que garantia o direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos.
Esse
objetivo foi atingido em 2022, quando a Suprema Corte do país anulou aquela
decisão, deixando cada Estado livre para regular o aborto como quiser, o que
resultou na proibição quase completa do procedimento em várias partes do país.
"(Com
isso) aquela preocupação estratégica (do movimento antiaborto sobre dar
destaque à fertilização in vitro) parece não estar mais presente", observa
Ziegler.
• Impacto da decisão no Alabama
Na
esteira da decisão da Suprema Corte americana em 2022, proliferaram no país
projetos de lei que descrevem fetos e embriões como "crianças que ainda
não nasceram" e dão a eles os mesmos direitos legais reservados a pessoas,
endurecendo as restrições ao aborto.
Diferentemente
do Brasil, onde o aborto só é permitido em caso de estupro, risco à vida da
gestante ou se o feto for anencéfalo, nos Estados Unidos cada Estado tem suas
prórias leis sobre o procedimento.
O
Alabama, no sul do país, é um dos que tem as leis mais rígidas, proibindo o
aborto em qualquer estágio da gravidez, mesmo em casos de estupro ou incesto,
com exceção apenas quando houver risco grave à saúde da gestante.
A
decisão da Suprema Corte do Estado sobre fertilização in vitro, no início deste
ano, teve origem em processos movidos por famílias cujos embriões congelados
foram acidentalmente destruídos na clínica onde estavam armazenados.
Os
juízes decidiram que uma lei de 1872, segundo a qual pais podem processar pela
morte de filhos menores de idade, também se aplica a nascituros, inclusive
"crianças extrauterinas".
"A
questão central apresentada (…) é se a lei contém uma exceção não escrita para
crianças extrauterinas, isto é, crianças em gestação que estão localizadas fora
de um útero biológico no momento em que são mortas", disse o juiz Jay
Mitchell. "A resposta a essa pergunta é não."
Clínicas
de fertilização in vitro no Estado suspenderam as atividades, deixando famílias
que já haviam investido milhares de dólares sem saber se poderiam continuar o
tratamento. A presidente da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, Paula
Amato, disse que a decisão ia “contra a realidade médica”.
"O
tribunal decidiu que um óvulo fertilizado congelado, armazenado num congelador
de uma clínica de fertilidade, deve ser tratado como equivalente legal a uma
criança ou um feto em gestação no útero", afirmou. "Os membros do
tribunal podem vê-los como equivalentes, mas a ciência e o bom senso nos dizem
que não são."
Semanas
depois, a Câmara e o Senado do Estado, onde os republicanos são maioria,
aprovaram às pressas uma lei que protege pacientes, servidores de saúde e
clínicas de fertilização in vitro de responsabilidade legal, e várias delas
retomaram os tratamentos.
Mas
a nova lei é uma solução temporária, já que não anula a opinião da Suprema
Corte de que embriões congelados devem ser tratados legalmente como pessoas e
deixa várias dúvidas sobre possíveis ramificações legais, que poderiam ter
impacto ao redor do país.
As
famílias que haviam movido o processo inicial argumentam que a nova lei viola
seus direitos constitucionais e pedem que seja anulada, e o caso poderá chegar
novamente à Suprema Corte do Alabama.
• O voto na Convenção Batista do Sul
A
atenção gerada pela decisão no Alabama inspirou líderes da Convenção Batista do
Sul a colocarem o tema em pauta em seu encontro anual, que reuniu neste mês
mais de 10 mil delegados, chamados de "mensageiros", na cidade de
Indianapolis.
"Eles
viram que era um momento propício para trazer essa questão à atenção [dos
fiéis]", avalia Ziegler. "Ambos os episódios estão intimamente
conectados."
Enquanto
a maioria dos "mensageiros" rejeitam o aborto, muitos são favoráveis
à fertilização in vitro, e durante o encontro alguns deram testemunhos
emocionados sobre como o tratamento os ajudou a ter filhos.
No
final, uma resolução denominada "Sobre as realidades éticas das
tecnologias reprodutivas e a dignidade do embrião humano" foi aprovada por
ampla maioria.
A
resolução não se opõe especificamente à criação de embriões pela técnica, mas
sim ao fato de que muitos são destruídos.
"Estimativas
sugerem que entre 1 milhão e 1,5 milhão de seres humanos estão atualmente
armazenados em congeladores criogênicos em estado embrionário nos Estados
Unidos, com a maioria inquestionavelmente destinada à eventual
destruição", diz um trecho.
Nesse
contexto, os fiéis são convocados a "reafirmar o valor incondicional e o
direito à vida de todos os seres humanos, incluindo aqueles em estágio
embrionário, e somente utilizar tecnologias reprodutivas condizentes com essa
afirmação".
O
texto ressalta que "todas as crianças, quaisquer que sejam as
circunstâncias da sua concepção, são um presente de Deus" e encoraja os
fiéis a "considerar a adoção de embriões congelados para resgatar aqueles
que eventualmente serão destruídos".
Também
demonstra solidariedade com "casais diagnosticados com infertilidade"
e os incentiva a "considerar as implicações éticas das tecnologias de
reprodução assistida".
Apesar
de a resolução não proibir os membros da Convenção Batista do Sul de usarem
fertilização in vitro, sua passagem representa o início de uma discussão mais
profunda sobre o tema entre os fiéis.
Segundo
a presidente do comitê de resoluções, Kristen Ferguson, "(o voto) é o
primeiro passo" e simplesmente abre o debate entre os fiéis sobre essa
"questão complexa".
• Termômetro do sentimento evangélico
Com
cerca de 13 milhões de membros espalhados por quase 50 mil congregações, a
Convenção Batista do Sul tem enorme influência política nos Estados Unidos e é
considerada um termômetro do sentimento evangélico no país.
Nesse
contexto, analistas afirmam que a resolução, aprovada poucos meses após a
decisão no Alabama, pode indicar uma maior abertura nesse grupo ao argumento de
que embriões, mesmo fora do útero, devem receber as mesmas proteções que
pessoas, em uma vitória para o movimento antiaborto.
"Pode
assinalar o início de uma ampla virada na direita contra a fertilização in
vitro, uma questão que muitos conservadores sociais vêem como a próxima
fronteira do movimento 'pró-vida'", disse o jornal Politico.
O
foco na fertilização in vitro coloca o Partido Republicano na posição delicada
de, em pleno ano eleitoral, manter sua posição "pró-vida" ao mesmo
tempo em que demonstra apoio ao tratamento de fertilidade, usado ou favorecido
pela maioria de seus eleitores.
Ao
mesmo tempo, os democratas, que vêm coletando sucessos em eleições estaduais ao
defender o acesso ao aborto, tentam forçar os republicanos a se posicionarem
contra medidas que defendem a fertilização in vitro, para demonstrar o
contraste entre as posições dos dois partidos.
Em
meio a essa briga política, propostas dos dois lados para proteger o acesso à
técnica foram foram apresentadas nos últimos dias no Congresso americano, mas
acabaram bloqueadas.
Em
maio, a comissão de ética e liberdade religiosa da Convenção Batista do Sul
enviou uma carta ao Senado americano mencionando as "graves preocupações
éticas" da fertilização in vitro.
"Conclamamos
os legisladores a desenvolver e implementar um sistema de supervisão federal
que proteja e informe as mulheres e garanta que os embriões sejam tratados com
cuidado, mesmo enquanto nos opomos à prática geral da fertilização in vitro",
diz o texto.
Para
Ziegler, apesar das divisões, "os principais grupos antiaborto (nos
Estados Unids) estão agora muito mais unidos na oposição à fertilização in
vitro do que antes".
"O
movimento antiaborto defende muitas posições impopulares. E a questão sempre
foi se vai mudar a opinião das pessoas ou se vai tentar impor suas prioridades,
mesmo que não haja apoio", observa Ziegler.
"Acho
que a tendência, especialmente com a fertilização in vitro, tem sido a de
pressionar por [suas] posições, independentemente de serem populares ou
não", afirma.
Fonte:
BBC News Brasil
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