sexta-feira, 19 de julho de 2024

Sociólogo mapeia conexões entre empresários, organizações e políticos da direita porto-alegrense

Após sucessivas gestões vinculadas à esquerda política – da eleição do pedetista Alceu Collares em 1985 à sequência de quatro mandatos petistas a partir de 1989 –, Porto Alegre foi governada por mandatários liberal-conservadores nos anos mais recentes. Sobretudo na última década, uma articulação da direita local foi capaz de impor os rumos da cidade que se colocava como uma vanguarda dos valores igualitários no final do século passado.

Para o sociólogo e professor Marcelo Kunrath Silva, uma parte desse processo pode ser explicada pelo vínculo de uma rede entre agentes – pessoas, empresas e organizações – que “elegem representantes políticos, alteram legislações, instituem políticas públicas, controlam processos decisórios e fazem negócios que impactam profundamente o presente e o futuro da cidade”. A descrição foi apresentada em um artigo intitulado “Os ‘donos’ de Porto Alegre”, publicado em junho pelo grupo de pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no qual mapeia as conexões desse ecossistema.

O estudo identificou uma rede composta por 532 pontos – pessoas, organizações sociais, empresas, partidos políticos, instituições de ensino, eventos e instituições estatais – que compõem 944 relações entre si. Trata-se de um relatório que apresenta resultados preliminares de uma pesquisa que está em andamento, segundo o professor.

Um desses nós é o próprio prefeito Sebastião Melo (MDB). Segundo o pesquisador, há “íntimas e intensas relações” entre pessoas e empresas com políticos que representam seus interesses no Executivo e no Legislativo. “São esses agentes que têm atuado ativamente na mudança ou instituição de leis e políticas”, resume. O prefeito é quem tem mais vínculos – são 35 – com esse ecossistema. Essas conexões são evidenciadas pela campanha vitoriosa de Melo em 2020, na qual os principais doadores vinham de famílias como Gerdau, Ling, Goldsztein, Hertz e Melnick – algo que já havia sido mostrado em capítulo do livro Reforma Urbana e Direito à Cidade, organizado pelo Observatório das Metrópoles.

Exemplo desse vínculo se dá em um contrato de comodato – isto é, um empréstimo gratuito – entre a prefeitura e a construtora Melnick, acordo que ainda não foi divulgado pela administração pública, mas ao qual a Matinal teve acesso. A empresa emprestará mobília de escritório ao Executivo – uma ação “necessária à gestão da crise ocasionada pelo estado de calamidade pública decretada em virtude das enchentes de maio de 2024”, segundo justifica a Procuradoria-Geral do Município (PGM), em um documento interno.

De acordo com uma fonte da prefeitura que preferiu não se identificar, os móveis serão usados no Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática da cidade. Recém-criado, o órgão é dominado por cargos comissionados do alto escalão do governo Melo, conforme revelado pela Matinal.

A mesma fonte relata ainda que há uma disputa de bastidores entre integrantes do governo pela obtenção da Gratificação de Resultado Fazendário e de Programação Orçamentária (GRFPO). Terão direito a esse bônus os nomeados para o escritório de forma integral ou mesmo parcial. O valor, acumulável, é de 9.200,38 reais (para cargos em comissão (CCs) de nível 7) e de R$ 10.120,4. Segundo a fonte, para instalar o Escritório de Reconstrução, será restringido o uso do vestiário e da cozinha, até então utilizados por servidores e pelo pessoal terceirizado da sede da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus). “Só vai poder usar copa e banheiros novos quem fizer parte desse escritório e pessoas de fora que forem participar de reuniões”, disse.

A Smamus, por sua vez, diz que outras secretarias foram realocadas para a sede da pasta, no bairro Três Figueiras, em razão da enchente no centro da cidade, desde maio. “No momento de emergência, foram emprestados, em regime de comodato, alguns itens de mobiliário pela empresa Melnick. Não há outros empréstimos na secretaria”, afirmou em nota.

•        Políticos, empresas, organizações

Dados obtidos pela pesquisa mostram que existe uma centralidade na participação de famílias da elite porto-alegrense, com vínculos evidenciados pela participação em grupos empresariais com visibilidade e prestígio na cidade e no estado. Na ordem do grau de importância calculada por um software chamado Social Network Visualizer, estão os grupos Gerdau Johannpeter (com André Bier Gerdau Johannpeter, Jorge Gerdau Balbi Johannpeter, Richard Gerdau Johannpeter e Klaus Gerdau Johannpeter), Ling (com William Ling e Wilson Ling), Goldsztein (com Claudio Nudelman Goldsztein), Fração (com Luiz Leonardo Abelin Fração), Vontobel (com Rodrigo Vontobel), Zaffari (com Bruno Zaffari) e Logemann (com Eduardo Logemann).

Um dos conectores desses empresários é o Instituto Cultural Floresta (ICF), organização não-governamental (ONG) conservadora, composta por 55 donos de grandes companhias gaúchas, que direciona políticas públicas de segurança no estado.

O ICF é também composto por entidades que investem ou apoiam o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), think thank liberal gaúcha que organiza anualmente o Fórum da Liberdade. A holding Évora S.A., da família Ling, e a Gerdau figuram entre as empresas conectadas à organização – em conjunto com a produtora bolsonarista Brasil Paralelo.

“Praticamente todas as famílias e indivíduos com maior centralidade na rede têm vínculos diretos com o IEE, com seus membros ocupando posições na diretoria do Instituto ao longo do tempo. Alguns casos exemplificam essa articulação: Luiz Leonardo Abelin Fração, atual presidente do ICF, foi presidente do IEE nas gestões 2003-2004 e 2009-2010; Bruno Zaffari, conselheiro do ICF, ocupou a presidência do IEE na gestão 2013-2014; e William Ling presidiu o IEE nas duas primeiras gestões, em 1984-1985 e 1985-1986”, diz o trabalho.

Outra organização com vínculos numerosos com os “donos de Porto Alegre” é o Instituto Caldeira, organização fundada em 2021 por 42 grandes empresas “com o propósito de impulsionar transformações através da inovação”, segundo diz seu site. Conforme reportagem da revista Exame, essas instituições são responsáveis por 15% do produto interno bruto (PIB) do Rio Grande do Sul. Localizado no 4º Distrito, ficou sob dois metros de água na enchente de maio. Entre seus criadores estão empresas como Gerdau, Évora, Zaffari, SLC e Neugebauer, com presença também do Grupo RBS.

O Caldeira tem vínculo financeiro também com a prefeitura de Porto Alegre: a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) aluga uma sala na sede do instituto, ao custo anual (dados de maio de 2024) de R$ 550.344,96. O aluguel do espaço coincide com uma série de leilões de imóveis próprios pelo governo Melo. De 2022 para cá foram colocados à venda 95 bens, em uma lista de 147 prédios ou terrenos cuja venda foi autorizada pela Câmara Municipal.

Para o sociólogo que assina o estudo, se as políticas conduzidas pelo ecossistema da direita porto-alegrense reduziram a capacidade de resposta ao evento climático extremo que atingiu a cidade, a reconstrução será levada adiante pelos mesmos grupos. As propostas governamentais “indicam a continuidade da ação articulada da rede identificada na pesquisa”, que tem lugar privilegiado nas propostas e definições. “(São) os mesmos interesses que têm produzido imensos custos e problemas sociais e ambientais”, conclui.

 

•        Sem limites para as chuvas: dilúvios extremos e o futuro do clima. Por Roberto Malvezzi

Havia caído perto de 280 mm de chuva em poucos dias no vale do Taquari. Outras informações dão mais de 700 mm em poucos dias. Será que as pessoas fazem ideia do volume de água que esses números representam?

Aqui no Nordeste, quando construímos uma cisterna no pé da casa para as famílias, sempre tem um debate para que as pessoas entendam a tecnologia e como ela deve ser cuidada. E começa pela área de captação da água, o telhado. Então, se uma pessoa tem um telhado de 5 x 8 metros, ela tem um telhado de 40 m2. Ela vai aprender que cada milímetro de chuva que cai em um m2 está captando 1 litro de água. Então, se a chuva for de 50 mm, é só multiplicar por 40 que ela terá recolhido 2 mil litros de água na sua cisterna só naquela chuva.

[Choveu] 7 trilhões e 280 bilhões de litros de água no vale do Taquari em aproximadamente 3 dias - Roberto Malvezzi (Gogó)

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Imaginem 280 mm em 26 mil km2, como é o caso do vale do Taquari. Um km2 tem 1 milhão de metros quadrados. Então, mais uma vez é só fazer as contas, isto é, 1.000.000 de m2, vezes 26 mil km2, vezes 280 mm de chuva. Equação: 1.000.000 x 26000 x 280 = 7.280.000.000.000 litros de água, isto é, 7 trilhões e 280 bilhões de litros de água caíram no vale do Taquari em aproximadamente 3 dias. Dividido por mil, dará 7 bilhões e 280 milhões de m3 de água. Só para efeito de comparação, todos os reservatórios do Rio Grande do Norte somados tem capacidade para armazenar 4.438.663.499 m3 de água. Logo, a chuva que caiu em 3 dias no vale do Taquari é quase o dobro de toda capacidade de armazenamento do Rio Grande do Norte.

É um dilúvio em qualquer lugar do mundo. As famosas Monções Asiáticas chegam a 160 mm e já são descomunais.

Mas, o desafio não para aí. Até aqui em Uauá, sertão da Bahia, nascente do Vaza Barris, caiu uma chuva perto de 200 mm em 24 horas. Exatamente a área em que alguns cientistas do clima disseram que está se desertificando, embora nós da sociedade civil tenhamos certa desconfiança porque essa questão é debatida há muito tempo e agora aparece como a descoberta da pólvora.

A questão é que não há mais limite para as chuvas. Com maior aquecimento global, maior será a evaporação e dilúvios como esses irão se repetir com mais frequência e mais intensidade. Se já estamos espantados com o Rio Grande do Sul de hoje, muito mais veremos com o passar dos anos. Como diz a meme da internet: “Dindinha já dizia, vocês vão ver coisas…”

Em tempo, não basta constatar o fenômeno e não é suficiente nos sensibilizarmos com o sofrimento das pessoas. As mudanças climáticas são o resultado da emissão dos gases de efeito estufa na atmosfera, causadas sobretudo pelos combustíveis fósseis e a derrubada e queima das florestas. Nem vamos falar das impermeabilizações, devastações e mudanças na legislação ambiental para facilitar a vida do capital predador.

O Brasil é quarto poluidor mundial, atrás apenas dos EEUU, China e Rússia. E não há nenhum sinal de controle sobre o agronegócio e as explorações petroleiras no país. Portanto, temos todos os ingredientes para séculos de tempestades descomunais.

 

Fonte: Por Gregório Mascarenhas, no Matinal/EcoDebate

 

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