Seita ou religião: o que escondem as
terminologias por trás da fé
Cristãos que torcem o
nariz para outras religiões, chamando-as pejorativamente de seita, precisam
olhar para o próprio umbigo.
No caso, um livro que
pode ser considerado umbilical do próprio cristianismo, justamente por, tendo
sido escrito no início da década de 60 do primeiro século, relatar os primeiros
passos daquilo que mais tarde viria ser conhecido como cristianismo.
Ali, quando o apóstolo
Paulo de Tarso é apresentado, ele é classificado como um líder da "seita
dos nazarenos" — nazarenos porque Jesus seria oriundo de Nazaré, na
Galileia, hoje Israel.
Embora seja uma
terminologia geralmente utilizada para diminuir crenças alheias, seita é uma
palavra que está relacionada ao significado de “seguidor”. Simplificando, seria
o conjunto daqueles que seguem determinada crença.
Como tantas outras
integrantes do léxico religioso, contudo, séculos de história acabaram
impregnando nela um significado um bocado enviesado.
"Seita é um termo
de conotação quase sempre pejorativa”, contextualiza à BBC News Brasil o
sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
"Refere-se a um
grupo de pessoas que compartilham um conjunto de crenças religiosas ou
filosóficas que diferem daquelas dos grupos hegemônicos. Na prática, a seita é
uma crença ou uma religião que ocupa posição subalterna numa sociedade. Por sua
conotação pejorativa, o termo vem sendo cada vez menos empregado.”
Na origem do
cristianismo, portanto, os da “seita do nazareno” eram os dissidentes do
judaísmo — esta, sim, já uma religião consolidada — que passaram as seguir os
ensinamentos de Jesus.
“Seita geralmente é
uma dissidência. Do ponto de vista religioso, todo movimento que vira, entre
aspas, uma igreja, antes passou pela experiência da seita”, explica à BBC News
Brasil o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professora na Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
Ele lembra justamente
da maneira como o cristianismo aparece no Novo Testamento para justificar seu
argumento. "O cristianismo, enquanto religião, um dia foi seita do
judaísmo”, ressalta. “Porque seita é sempre uma dissidência, uma nova
interpretação, uma nova maneira de enxergar a realidade. Diferente de uma
igreja consolidada que vai batizando seus filhos, casando seus filhos,
transmitindo [suas crenças e valores] de geração em geração.”
É aí que reside outro
aspecto peculiar às seitas, nota o professor: os apelos missionários. “A seita
acaba precisando apelar para aspectos conversionistas, porque precisa de novos
adeptos, precisa da persuasão”, argumenta Moraes.
"Precisa
convencer os outros de sua visão de mundo, de sua cosmovisão. Todo movimento
dissidente, sectário, é assim. Até que um dia pode se consolidar, estabilizar a
virar uma igreja.”
Nesse ponto, explica o
teólogo, quanto menos prepoderante ela for na sociedade onde se encontra, mais
vai manter os apelos conversionistas. “Porque, em última instância, precisam
dominar o campo religioso de maneira majoritária, vencendo a concorrência do
mercado da fé. Quando uma igreja se torna hegemônica em determinado país, não
há porque trabalhar aspectos missionários, conversionistas, porque
automaticamente, ao nascer, você já se torna membro dessa igreja”, afirma.
Um exemplo trazido
pelo pesquisador reside justamente no domínio que a Igreja Católica tinha no
Brasil até décadas atrás. “Não precisava fazer o trabalho conversionista,
porque as pessoas nasciam e eram automaticamente batizadas na Igreja Católica,
já nasciam católicas, desde criança já se entendiam como católicas”,
exemplifica.
“Nesse sentido, há uma
diferença entre igreja e seita. A igreja vive uma experiência orgânica, natural
de transmissão daquela fé dentro das famílias, comunidades. As seitas são
dissidências que precisam de um apelo conversionista para poderem se consolidar
dentro do campo. Enquanto não conseguem dominar o campo religioso todo, mesmo
virando igrejas, acabam tendo a necessidade de continuarem com os discursos
conversionistas”, diz Moraes.
Além disso, uma igreja
acaba institucionalizando a prática da fé, de forma a organizar e sistematizar
melhor a maneira como os seus seguidores praticam a vivência.
“Igreja, para os
historiadores e sociólogos da religião, acaba sendo entendida como uma
assembleia, uma reunião de pessoas que se encontram em torno de uma fé, de um
conjunto de princípios que fazem sentido e que reconectam aquelas pessoas com o
absoluto, com o sagrado”, define Moraes.
“A igreja acaba
criando uma dinâmica em que as bênçãos, o legado e a espiritualidade geram uma
aliança com seus filhos e com os descendentes destes”, afirma Moraes. “A
construção de uma igreja se dá muito dentro dessa perspectiva orgânica: há uma
fé, uma experiência dentro de uma comunidade, e os membros dessa comunidade
batizam seus filhos dentro da mesma fé. E aquilo vai passando como herança, de
geração em geração.”
• Religião
O teólogo usa o verbo
“reconectar" para explicar o que é uma igreja e isto automaticamente
remete a um dos significados atribuídos à palavra religião: a ideia de
“religar", de se conectar, enquanto humanidade, à esfera divina.
“Do ponto de vista
tradicional, religião é entendida a partir da ideia de religar, de reconectar o
ser humano a essa outra dimensão totalmente estranha a ele", argumenta
Moraes. “Estamos falando de um plano natural, onde os homens vivem sua realidade,
e algo que transcende a este natural, um plano transcendente que envolve
aspectos sobrenaturais. De forma muito profunda, religião seria o que dá um
novo sentido para a vida, uma nova perspectiva de existência.”
O professor ressalta
que esta característica é comum a todas as religiões, já que sempre há a ideia
da “reconexão com a sacralidade”.
Tradicionalmente, é
uma explicação. Mas está longe de ser unânime. De acordo com o Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, religião é a
“crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como
criadora(s) do Universo, e que como tal devem(m) ser adorada(s) e obedecida(s).
O mesmo verbete registra que a palavra está presente na língua portuguesa desde
o século 13, ou seja, desde sua gênese, e é derivada do termo latino “religio”.
É aí que reside o
problema etimológico, aliás. Na antiguidade, há pelo menos quatro pensadores
que procuraram explicar esta palavra. O escritor e retórico Lucio Lactâncio
(240-320) bancava essa tese do “religio” como palavra derivada do verbo
“religare”, argumentando que a religião servia como um laço entre a humanidade
e Deus.
Agostinho de Hipona
(354-430), depois Santo Agostinho, traz outra explicação em seu livro ‘De
Civita Dei’. Para ele “religio” vinha de “religere”, ou seja, reeleger. Em
outras palavras, Agostinho entendia que a religião era um instrumento para que
a humanidade reelegesse Deus como centro da vida.
Em ‘De Vera
Religione’, contudo, livro seu publicado um pouco mais tarde, o pensador
recupera a versão de Lactâncio e também usa e ideia de religar como explicação
para a religião.
Mais ou menos na mesma
época, o filósofo e filólogo Ambrósio Macróbio (370? - ?) apelou para uma
explicação baseada na conversão para a palavra. Segundo ele, “religio” era
substantivo derivado do verbo “relinquere”, ou seja, deixa para trás. A
interpretação é que aquele que decide seguir uma religião deixa a vida mundana
de lado.
A explicação mais
antiga que se tem conhecimento para a etimologia latina do termo é do filósofo
e político Marco Cícero (106 a.C. - 43 a.C.). Em seu trabalho ‘De Natura
Deorum’, o sábio associou religião a “relegere”, ou seja, reler. O entendimento
é que aquele que segue determinada religião dedica-se a reler as escrituras.
Pesquisadores tendem a ver essa analogia como forma de valorizar o aspecto
intelectual da religião, além do caráter repetitivo presente nelas.
Autor do livro ‘Viva a
Língua Brasileira’ e pesquisador contumaz de etimologias, o jornalista e
escritor Sérgio Rodrigues já se deteve sobre o assunto. Em coluna publicada
pela Veja em julho de 2020, ele disse que “a origem da palavra religião é palco
de uma luta surda que chega perto de se perder no tempo".
Rodrigues afirmou que,
pessoalmente, ele se inclina à “visão mais tradicional e respeitável”, no caso
o verbo latino “relegere”. “[…] isto é, ‘reler, revisitar, retomar o que estava
largado’, [que] pode ser visto neste contexto como o ato de reler e interpretar
incessantemente os textos de doutrina religiosa ou, quem sabe, como a retomada
de uma dimensão (espiritual) da qual a vida terrena tende a afastar os homens”,
escreveu ele, recordando que a tese de Cícero foi retomada no século 19 pelo
latinista português Francisco Rodrigues dos Santos Saraiva (1834-1900).
Para o pesquisador, a
popularidade contemporânea da ideia “provavelmente romântica” de explicar a
religião pelo verbo religar pode ser atribuída ao, em suas palavras,
“contestado etimologista brasileiro Silveira Bueno” (1898-1989). “A ideia de
que caberia à religião ‘atar os laços’ que unem a humanidade à esfera divina
tem lá sua força poética, o que talvez explique o sucesso desta versão”, cravou
ele. “Diga-se que em autores clássicos, porém, o verbo ‘religare' é
estritamente prosaico, empregado com o sentido de prender os cabelos ou
enfeixar a lenha.”
Etimologias à parte, a
sociologia define bem o significado do termo. “Religião normalmente é vista
como um conjunto de crenças, práticas e valores relacionados à adoração de um
poder ou poderes sobrenaturais, como um deus ou deuses”, explica Ribeiro Neto.
“É frequentemente associada a uma instituição organizada, com história e
tradições estabelecidas.”
“Se quisermos ser
rigorosos, muitas vezes teríamos que distinguir a religiosidade não
institucionalizada, como a crença numa entidade superiora, sem nenhum vínculo
institucional ou social, ou o cristianismo popular e sincrético das regiões
mais interiores do Brasil, da religião, entendida como uma religiosidade que se
institucionaliza”, detalha.
• Eurocentrismo
Esta visão
institucional é o que provoca, no entendimento dos especialistas, uma abordagem
eurocêntrica da religião. As crenças de povos tidos como periféricos para a
história baseada na trajetória europeia — e da imposição colonizadora dos
europeus — acabam sendo tratados como algo menor, como crendices.
“Crença, antes de
tudo, refere-se simplesmente ao ato de crer, uma atitude mental ou convicção de
que algo é verdadeiro ou real. E nesse sentido nem mesmo precisa ter vinculação
com a religiosidade”, ensina Ribeiro Neto. “Algumas vezes usa-se o termo crença
para se referir a uma religiosidade em particular, um conjunto de ideias, ritos
e práticas que se referem à relação do ser humano com o transcendente,
partilhadas por um grupo social e sem muita institucionalidade. Quando usado
nesse sentido, o limite entre a crença, a religiosidade e a religião fica
impreciso e depende em grande parte dos critérios de análise, numa reflexão
rigorosa, ou aos preconceitos de quem fala, na linguagem diária.”
E aí como deveriam ser
enquadradas as maneiras como os povos originários da América lidavam e lidam
com o transcedental? E as crenças dos africanos? “Até que ponto o critério de
institucionalização que separaria as religiões das crenças ou das religiosidades
difusas não é definido pelos padrões da racionalidade ocidental?”, provoca o
sociólogo.
“Por exemplo, as
religiões tribais seguem o grau de institucionalização de suas sociedades, não
precisam da sofisticação das religiões ocidentais que se desenvolveram em
sociedades complexas”, afirma Ribeiro Neto. “As religiões afrobrasilerias, na
medida em que a discriminação não impede, vão se institucionalizando nos
padrões das religiões ocidentais, para poder atender a seus fiéis numa
sociedade complexa. Tinham uma organização mais simples por conta da
perseguição social ou das necessidades de suas populações, não por uma
incapacidade intrínseca.”
O teólogo Moraes
admite que, “no final das contas, a gente acaba usando um repertório que a
gente aprende com o tempo e às vezes nem percebe que aquilo é carregado de
sentido e, às vezes, de preconceito”.
“Desde sempre, graças
a uma visão eurocêntrica implantada na América, as religiosidades ou religiões
dos povos originários sempre foram vistas como inferiores”, complementa ele. “O
objetivo era que fossem destruídas, banidas. Representavam, no entender do
colonizador, a mentira.”
“Nesse sentido, a
gente ainda carrega algum tipo de preconceito ao falar de religião. Quais eram
as religiões dos indígenas? Talvez não houvesse uma sistematização, porque isso
não foi uma preocupação para eles. Mas eram religiões demonizadas desde muito
cedo [pelo europeu colonizador]. Todas as experiências de religiosidade que
eles tinham eram vistas como equivocadas. E talvez esse preconceito ainda
permaneça quando a gente se refere às crenças dos povos originários.”
Moraes entende que é
um processo similar o ocorrido com os africanos. “Mas, aos poucos, acredito que
a gente vá corrigindo essas situações. Estamos imersos em um processo em que é
necessário reavaliar uma série de coisas. E o campo das próprias ciências da
religião vai fazendo essa autocrítica e percebendo que é necessário uma
correção de rota”, diz.
Fonte: BBC News Brasil
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