A crítica da conciliação e seus outros
conflitos
Conciliação é uma das
categorias mais usadas para descrever os sentidos da experiência histórica que
vivemos no país quando a esquerda esteve no poder, ou em parte “do poder”,
entre 2003 e 2016. Por já ter sido amplamente empregada em contextos políticos
anteriores – seja para alvejar um velho saco de pancadas das interpretações do
Brasil (o populismo), seja para desvelar mais uma das mil faces de nosso
caráter nacional –, trata-se de um potente símbolo, expressivo da nauseante
sensação de vivermos por aqui uma história que anda em círculos. História de
repetições farsescas e trágicas, ou pior – história de longuíssima e nefasta
continuidade.
Com toda essa
substância pregressa, e com o indisputado status de categoria crítica, a
conciliação aparece como ferramenta analítica indispensável para a devida
consideração dos limites de uma prática política avaliada como
insuficientemente transformadora. Não transformou porque conciliou; e
permaneceu conciliando porque não transformou. E mesmo que o desfecho do
“ciclo” de conciliação seja a violência e o arbítrio sem disfarces contra os
notórios conciliadores – nada perturba a crítica da conciliação, que persiste
inabalável em sua marcha, alçando um modo de pensar ao status de efetivo
movimento da realidade que eterniza o atual estado de coisas. De possível chave
de leitura, que luta contra tantas outras, ela passa a substância que vertebra
nossa experiência histórica. Sublimada a luta, erige-se em paradigma – já não é
interpretação, mas sim descrição. E então a divergência interpretativa ganha
contornos de mero partidarismo frustrado, quando não de pura e simples
desconexão da realidade.
Seguindo por outra
trilha, e desconfiando de tamanha pregnância, parece possível e desejável que
se busquem os pressupostos da crítica da conciliação. Porque talvez, de tanto
que usamos, podemos ter esquecido o que queremos dizer (quando dizemos conciliação).
Nesse sentido, o esforço aqui será forçosamente assistemático e seletivo. Posto
que seria impossível catalogar as variantes da crítica da conciliação, ou
acompanhar de perto sua recorrência nas interpretações do Brasil contemporâneo,
procederemos com algum grau de generalização e nos deteremos em dois ou três
traços que nos parecem suficientemente abrangentes para que se cumpra o
propósito de recolocá-la em questão.
Salvo engano, a
conciliação contém quase sempre um componente não desprezível de voluntarismo
analítico. Quem concilia escolheu conciliar. Há, portanto, vontade de
conciliar. Por vezes, essa vontade se manifesta como um estilo introjetado de
fazer política. Nesse caso, mais do que mera vontade ou projeto, tem-se quase
que um desvio congênito. Em outra angulação do voluntarismo, a conciliação
aparece como aquilo que apenas se sustenta graças à arte de um líder
prestidigitador. É a vontade que concebe e põe em marcha o projeto conciliador
– e é também ela que assegura sua reprodução no tempo, graças ao virtuosismo
conciliatório do líder. Nos casos mais agudos da crítica, ou quando ela se
afirma com maior crueza, a vontade e o virtuosismo são chamados pura e simplesmente
de traição. “A inconsistência conduz inevitavelmente à traição”, diz um dos
críticos canonizados. É o passo em que o voluntarismo desfaz-se em moralismo e
perde de vez o prumo.
Mas precisa haver
dialética nessa crítica – e a contraparte do voluntarismo também subjaz com
certa frequência nos usos da conciliação. Para além desse excesso de
subjetividade, um elemento determinista também comparece quando se ressaltam os
limites objetivos da política de conciliação. Ou ainda quando se defende que
seu fim se dá por esgotamento, logo, por uma deficiência interna irreparável –
e não pela derrota. Ela não terminou porque foi derrotada, dizem, mas porque
exauriu suas capacidades. Nota-se desde logo que a afirmação desses limites
intrínsecos flerta com uma filosofia da história. Daí que a derrota desaparece
do horizonte e em seu lugar o que se vê é a superação do momento conciliatório
com a consequente reposição das contradições em novo e superior patamar – em
suma, é a velha toupeira trabalhando. Sempre em silêncio, enquanto aqui fora só
se ouve o caos.
Dualidade fundamental
da crítica da conciliação: primado da vontade para que ela se erga e subsista
por um tempo, primado da estrutura para que ela seja golpeada. Desnecessário
dizer que ambos, voluntarismo e determinismo, permanecem unilaterais nesse tipo
de análise: o momento da derrubada, do golpe, que até intuitivamente poderia
ser percebido como um efeito da concatenação das vontades contrariadas, vai
aparecer como determinação estrutural, restituição da estranha normalidade que
fora abalada pela corrupção da vontade conciliatória.
A crítica da
conciliação parece assim atribuir ao partido conciliador uma verve
eminentemente mistificadora. Se a verdade da nossa sociedade é a luta de
classes, a conciliação é mistificação por excelência. Ela é um engano, no duplo
sentido do termo. Um equívoco histórico, a perda de uma oportunidade ímpar – e
uma fábrica de ideologias. Mas esse equilíbrio que suspende a luta, essa
suposta paz social e política, residiria no projeto de conciliação enquanto
autoengano? Ou seria antes uma projeção, uma limitação, da própria crítica? Em
outros termos: se a luta de classes se concretiza para além das ilusões da
conciliação, o que nos impede de considerar que ela possa talvez seguir
pulsando através da conciliação? E se assim for, talvez as ilusões da conciliação
sejam antes (ou ao mesmo tempo) as artes de seu ilusionismo, até porque
sabemos, ao menos desde Maquiavel, que não se deve esperar da política uma
cisão muito precisa entre verdade e ilusão.
Operando em um
registro pré-maquiaveliano, a crítica da conciliação corre o risco de recair
numa relativa ingenuidade epistemológica. O equilíbrio, a harmonia e a paz,
promessas da conciliação, são de fato impossíveis. Seria prudente, pois, não as
tomar ao pé da letra. Mas estranhamente apegada a essa concepção naif da
relação entre o verdadeiro e o falso, a crítica parece transplantar o estrito
dualismo para o plano da política: ali, conciliação e conflito seriam as partes
de um jogo de soma zero e não haveria sobreposição possível. O conflito seria o
outro (ou, como veremos, um dos outros) da conciliação, que com ela
estabeleceria uma relação de antítese radical. A decisão pela conciliação
empurraria o conflito para fora da cena.
Mas o que será que a crítica entende por conflito? O que será que ela
entende como o avesso da conciliação? O que ela afirma enquanto política
efetiva em contraponto à mistificação conciliatória?
Somos tentados a
aventar a possibilidade de que um outro da conciliação (um outro inconsciente)
seja a polarização. Nada mais natural, portanto, que ao “ciclo” conciliatório
tenha se seguido um “ciclo” polarizado… Pois assim como a polarização é uma das
categorias mais esvaziadas de sentido do debate público nacional, a conciliação
talvez tenha o mesmo destino (ou, quem sabe, a mesma origem), apesar de sua
roupagem menos plebeia. E assim como a polarização, que pressupõe a
equidistância dos polos e projeta falsas equivalências, parece ter sido
desconstruída em seu viés e reconhecida por sua loquaz vacuidade, a conciliação
pode também terminar no mesmo limbo categorial, uma vez que se consiga
desentranhar os pressupostos de seus usos mais correntes. À diluição midiática
da polarização, transformada em chave explicativa universal para os problemas
do país, corresponderia então uma estranha naturalização crítico-acadêmica da
conciliação, ponto de partida (e, nos piores casos, de chegada) quase
obrigatório dos esforços de interpretação da realidade.
Para além da
polarização, se afirmamos que o conflito é um outro da conciliação que, no fim
das contas, nunca deixa de pulsar e nunca se deixa por ela abater, parece
pertinente ainda buscar essa antítese em outro lugar. Afinal não é bem o
conflito ou a luta por si mesmos que desaparecem na conciliação. Seu outro
prioritário, na verdade, muitas vezes consiste numa certa ideia de ruptura. E
nisso a crítica definitivamente parece tocar solo firme, no plano descritivo,
ao mesmo tempo em que desliza para um terreno normativo pantanoso. Que a
conciliação não opera na lógica das rupturas, isso é evidente e quase
tautológico – e é decisivo que aquela não atua com a estridência que destas se
costuma esperar. Ocorre que a vontade de ruptura, implícita na crítica, não
costuma tampouco se afirmar enquanto tal. E assim ela apenas incorre no risco
de reproduzir, pela enésima vez, a dicotomia entre reforma e revolução.
Expressar de modo
claro essa vontade de ruptura para além das entrelinhas e contrapor seu
conteúdo normativo com a prática da conciliação implicaria, em alguma medida,
reconhecer nela mais validade histórica do que a crítica parece disposta a
fazer. E, por outro lado, ampliaria o potencial contato da crítica com a
concretude das contradições presentes (aquelas mesmas que pareciam escondidas e
mistificadas sob o manto da conciliação), alçando-a ao imperativo de superar o
que havia de unilateral em sua negatividade. Deixar a segurança das certezas
científicas abstratas e aproximar seu impulso transformador da barafunda que é
a realidade histórica. Implícita e abstrata, a vontade de ruptura garante
radicalidade à crítica; uma vez explicitada e sujeita aos solavancos da
concretude, seria de se esperar que ela perdesse muito de seu charme – e que,
no fim das contas, acabasse desfigurando seu próprio objeto. Pois a conciliação
já seria então uma outra coisa.
Fonte: A Terra é
Redonda
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