segunda-feira, 22 de julho de 2024

A crítica da conciliação e seus outros conflitos

Conciliação é uma das categorias mais usadas para descrever os sentidos da experiência histórica que vivemos no país quando a esquerda esteve no poder, ou em parte “do poder”, entre 2003 e 2016. Por já ter sido amplamente empregada em contextos políticos anteriores – seja para alvejar um velho saco de pancadas das interpretações do Brasil (o populismo), seja para desvelar mais uma das mil faces de nosso caráter nacional –, trata-se de um potente símbolo, expressivo da nauseante sensação de vivermos por aqui uma história que anda em círculos. História de repetições farsescas e trágicas, ou pior – história de longuíssima e nefasta continuidade.

Com toda essa substância pregressa, e com o indisputado status de categoria crítica, a conciliação aparece como ferramenta analítica indispensável para a devida consideração dos limites de uma prática política avaliada como insuficientemente transformadora. Não transformou porque conciliou; e permaneceu conciliando porque não transformou. E mesmo que o desfecho do “ciclo” de conciliação seja a violência e o arbítrio sem disfarces contra os notórios conciliadores – nada perturba a crítica da conciliação, que persiste inabalável em sua marcha, alçando um modo de pensar ao status de efetivo movimento da realidade que eterniza o atual estado de coisas. De possível chave de leitura, que luta contra tantas outras, ela passa a substância que vertebra nossa experiência histórica. Sublimada a luta, erige-se em paradigma – já não é interpretação, mas sim descrição. E então a divergência interpretativa ganha contornos de mero partidarismo frustrado, quando não de pura e simples desconexão da realidade.

Seguindo por outra trilha, e desconfiando de tamanha pregnância, parece possível e desejável que se busquem os pressupostos da crítica da conciliação. Porque talvez, de tanto que usamos, podemos ter esquecido o que queremos dizer (quando dizemos conciliação). Nesse sentido, o esforço aqui será forçosamente assistemático e seletivo. Posto que seria impossível catalogar as variantes da crítica da conciliação, ou acompanhar de perto sua recorrência nas interpretações do Brasil contemporâneo, procederemos com algum grau de generalização e nos deteremos em dois ou três traços que nos parecem suficientemente abrangentes para que se cumpra o propósito de recolocá-la em questão.

Salvo engano, a conciliação contém quase sempre um componente não desprezível de voluntarismo analítico. Quem concilia escolheu conciliar. Há, portanto, vontade de conciliar. Por vezes, essa vontade se manifesta como um estilo introjetado de fazer política. Nesse caso, mais do que mera vontade ou projeto, tem-se quase que um desvio congênito. Em outra angulação do voluntarismo, a conciliação aparece como aquilo que apenas se sustenta graças à arte de um líder prestidigitador. É a vontade que concebe e põe em marcha o projeto conciliador – e é também ela que assegura sua reprodução no tempo, graças ao virtuosismo conciliatório do líder. Nos casos mais agudos da crítica, ou quando ela se afirma com maior crueza, a vontade e o virtuosismo são chamados pura e simplesmente de traição. “A inconsistência conduz inevitavelmente à traição”, diz um dos críticos canonizados. É o passo em que o voluntarismo desfaz-se em moralismo e perde de vez o prumo.

Mas precisa haver dialética nessa crítica – e a contraparte do voluntarismo também subjaz com certa frequência nos usos da conciliação. Para além desse excesso de subjetividade, um elemento determinista também comparece quando se ressaltam os limites objetivos da política de conciliação. Ou ainda quando se defende que seu fim se dá por esgotamento, logo, por uma deficiência interna irreparável – e não pela derrota. Ela não terminou porque foi derrotada, dizem, mas porque exauriu suas capacidades. Nota-se desde logo que a afirmação desses limites intrínsecos flerta com uma filosofia da história. Daí que a derrota desaparece do horizonte e em seu lugar o que se vê é a superação do momento conciliatório com a consequente reposição das contradições em novo e superior patamar – em suma, é a velha toupeira trabalhando. Sempre em silêncio, enquanto aqui fora só se ouve o caos.    

Dualidade fundamental da crítica da conciliação: primado da vontade para que ela se erga e subsista por um tempo, primado da estrutura para que ela seja golpeada. Desnecessário dizer que ambos, voluntarismo e determinismo, permanecem unilaterais nesse tipo de análise: o momento da derrubada, do golpe, que até intuitivamente poderia ser percebido como um efeito da concatenação das vontades contrariadas, vai aparecer como determinação estrutural, restituição da estranha normalidade que fora abalada pela corrupção da vontade conciliatória.             

A crítica da conciliação parece assim atribuir ao partido conciliador uma verve eminentemente mistificadora. Se a verdade da nossa sociedade é a luta de classes, a conciliação é mistificação por excelência. Ela é um engano, no duplo sentido do termo. Um equívoco histórico, a perda de uma oportunidade ímpar – e uma fábrica de ideologias. Mas esse equilíbrio que suspende a luta, essa suposta paz social e política, residiria no projeto de conciliação enquanto autoengano? Ou seria antes uma projeção, uma limitação, da própria crítica? Em outros termos: se a luta de classes se concretiza para além das ilusões da conciliação, o que nos impede de considerar que ela possa talvez seguir pulsando através da conciliação? E se assim for, talvez as ilusões da conciliação sejam antes (ou ao mesmo tempo) as artes de seu ilusionismo, até porque sabemos, ao menos desde Maquiavel, que não se deve esperar da política uma cisão muito precisa entre verdade e ilusão.

Operando em um registro pré-maquiaveliano, a crítica da conciliação corre o risco de recair numa relativa ingenuidade epistemológica. O equilíbrio, a harmonia e a paz, promessas da conciliação, são de fato impossíveis. Seria prudente, pois, não as tomar ao pé da letra. Mas estranhamente apegada a essa concepção naif da relação entre o verdadeiro e o falso, a crítica parece transplantar o estrito dualismo para o plano da política: ali, conciliação e conflito seriam as partes de um jogo de soma zero e não haveria sobreposição possível. O conflito seria o outro (ou, como veremos, um dos outros) da conciliação, que com ela estabeleceria uma relação de antítese radical. A decisão pela conciliação empurraria o conflito para fora da cena.  Mas o que será que a crítica entende por conflito? O que será que ela entende como o avesso da conciliação? O que ela afirma enquanto política efetiva em contraponto à mistificação conciliatória?               

Somos tentados a aventar a possibilidade de que um outro da conciliação (um outro inconsciente) seja a polarização. Nada mais natural, portanto, que ao “ciclo” conciliatório tenha se seguido um “ciclo” polarizado… Pois assim como a polarização é uma das categorias mais esvaziadas de sentido do debate público nacional, a conciliação talvez tenha o mesmo destino (ou, quem sabe, a mesma origem), apesar de sua roupagem menos plebeia. E assim como a polarização, que pressupõe a equidistância dos polos e projeta falsas equivalências, parece ter sido desconstruída em seu viés e reconhecida por sua loquaz vacuidade, a conciliação pode também terminar no mesmo limbo categorial, uma vez que se consiga desentranhar os pressupostos de seus usos mais correntes. À diluição midiática da polarização, transformada em chave explicativa universal para os problemas do país, corresponderia então uma estranha naturalização crítico-acadêmica da conciliação, ponto de partida (e, nos piores casos, de chegada) quase obrigatório dos esforços de interpretação da realidade.   

Para além da polarização, se afirmamos que o conflito é um outro da conciliação que, no fim das contas, nunca deixa de pulsar e nunca se deixa por ela abater, parece pertinente ainda buscar essa antítese em outro lugar. Afinal não é bem o conflito ou a luta por si mesmos que desaparecem na conciliação. Seu outro prioritário, na verdade, muitas vezes consiste numa certa ideia de ruptura. E nisso a crítica definitivamente parece tocar solo firme, no plano descritivo, ao mesmo tempo em que desliza para um terreno normativo pantanoso. Que a conciliação não opera na lógica das rupturas, isso é evidente e quase tautológico – e é decisivo que aquela não atua com a estridência que destas se costuma esperar. Ocorre que a vontade de ruptura, implícita na crítica, não costuma tampouco se afirmar enquanto tal. E assim ela apenas incorre no risco de reproduzir, pela enésima vez, a dicotomia entre reforma e revolução.

Expressar de modo claro essa vontade de ruptura para além das entrelinhas e contrapor seu conteúdo normativo com a prática da conciliação implicaria, em alguma medida, reconhecer nela mais validade histórica do que a crítica parece disposta a fazer. E, por outro lado, ampliaria o potencial contato da crítica com a concretude das contradições presentes (aquelas mesmas que pareciam escondidas e mistificadas sob o manto da conciliação), alçando-a ao imperativo de superar o que havia de unilateral em sua negatividade. Deixar a segurança das certezas científicas abstratas e aproximar seu impulso transformador da barafunda que é a realidade histórica. Implícita e abstrata, a vontade de ruptura garante radicalidade à crítica; uma vez explicitada e sujeita aos solavancos da concretude, seria de se esperar que ela perdesse muito de seu charme – e que, no fim das contas, acabasse desfigurando seu próprio objeto. Pois a conciliação já seria então uma outra coisa.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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