PROMOÇÃO DE DIREITOS: Os 34 anos do ECA e a
distância entre a lei e o financiamento das políticas
As análises que temos
feito sobre a execução financeira das políticas direcionadas para a infância e
adolescência demonstram o quão longe ainda estamos de efetivar os princípios de
proteção integral e de absoluta prioridade instituídos pelo artigo 227 da
Constituição Federal de 1988 e regulamentados pela lei 8.069/90 que dispõe
sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E a gestão dos recursos
federais no primeiro semestre de 2024 compactua com a morosidade em garantir a
todas as crianças e adolescentes o acesso a seus direitos, o que prejudica mais
aquelas em situação de maior vulnerabilização em nosso país: periféricas,
negras, indígenas, do campo, com deficiência.
As meninas e os
meninos não podem esperar para se desenvolver e suas vidas têm sido afetadas
diariamente pelas decisões políticas e econômicas que não as incluem na
centralidade do debate. E quando o fazem, são pautadas para favorecimento de
pautas retrógradas, como foi a proposta de projeto de lei que dispõe sobre o
aborto (PL1.904/2024), o que mais violaria direitos desse grupo do que
garantiria. A resposta do Executivo a propostas inadequadas como esta precisa
ser com ações que assegurem às meninas proteção em todo lugar e a todo momento,
além de um posicionamento público contrário e articular a sua base para votar
contra.
Foi um ganho a entrada
no Plano Plurianual-PPA (2024-2027) de um programa direcionado especificamente
para o público infanto-adolescente, no entanto, sua execução anda em marcha
lenta. De acordo com informações disponibilizadas pelo Siga Brasil, dos quase
R$ 85 milhões autorizados em 2024 com o programa 5816 (Promoção e Proteção
Integral dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes com Prioridade
Absoluta), até final de junho foram empenhados 28,7% desse valor e apenas 12,6%
foram executados. Essa situação é preocupante, pois a demora no empenho e
execução dos recursos significa a fragilização das políticas que contribuem
para o acesso aos direitos.
Alguns pontos chamam a
atenção. A transferência dos recursos para a execução do Programa de Proteção a
Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) está sendo mais ágil este
ano do que foi em 2023. Foram executados 51,9% dos recursos disponíveis para
2024, o que significa R$ 18,9 milhões. No mesmo período do ano passado (de
janeiro a junho) só haviam sido executados 12,5% do total de recursos ou R$ 3,2
milhões. Essa execução mais agilizada pode ter se dado em resposta à avaliação
realizada em 2023 pela Plan Eval em parceria com o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (Pnud). Um dos pontos que se levanta é a dificuldade de
fechar convênios de parceria para executar o PPCAAM por conta das burocracias e
exigências excessivas cobradas com pouco diálogo direto com a coordenação
central do programa.
É relevante destacar a
importância do PPCAAM e como uma gestão qualificada e descomplicada pode
contribuir ainda mais para diminuir as ocorrências de violências letais. O
Atlas da Violência 2024 informou que 5.569 crianças e adolescentes foram
vítimas de homicídio só em 2022. Desses casos, 93,7% foram concentrados em
adolescentes e jovens de 15 a 19 anos. Dos adolescentes entre 12 a 17 anos,
85,1% eram negros e 89,7% do sexo masculino de acordo com Anuário Brasileiro de
Segurança Pública 2023. Os números ainda são alarmantes, portanto, urge que o
programa de proteção, além de agilizar a celebração de convênios e repasses dos
recursos, seja melhor financiado para qualificação e ampliação das equipes.
Já no que tange às
outras políticas, o esforço de execução não tem ido na mesma direção,
considerando que as outras rubricas não tiveram empenho ou o valor foi mínimo.
No caso do Plano Orçamentário (PO) de enfrentamento das violências, apenas R$
372,7 mil foram empenhados, ou 12,4% do autorizado; e para o enfrentamento do
trabalho infantil, ainda nenhum centavo de empenho do Ministério dos Direitos
Humanos e Cidadania.
E no que diz respeito
ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), de responsabilidade do
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome,
que foi esquecido pelo governo Bolsonaro e, portanto, agora está em processo de
retomada, só executou até o meio deste ano R$ 106 mil de restos a pagar de anos
anteriores, sendo que há mais de R$ 51 milhões disponíveis para gasto
(considerando o autorizado e os valores inscritos em restos a pagar).
Uma iniciativa
relevante do governo federal, em 2023, foi o lançamento do Compromisso Nacional
Criança Alfabetizada, de responsabilidade do Ministério da Educação. Em 2024 os
recursos autorizados para essa política já foram maiores que em 2023. A execução,
além de maior do que todo o gasto no ano passado, já está em 58,8% do total de
recursos disponíveis. O valor liberado para 2024 foi de mais de R$ 1 bilhão e
até final de junho deste ano foram gastos quase R$ 630 milhões.
Ainda no âmbito da
educação, o governo federal deu início ao Programa Pé de Meia que, por meio de
auxílio financeiro, tem como objetivo incentivar que estudantes do ensino médio
permaneçam na escola e se formem. No entanto, teve dificuldade de elaborar uma
proposta de reforma do ensino médio que contemplasse as necessidades dos
estudantes e professores de modo a oferecer uma educação emancipatória. Ao
contrário, a proposta que foi aprovada na Câmara dos Deputados dialoga mais com
uma perspectiva menorista, em que para adolescentes de classes econômicas
desfavorecidas se oferece uma formação sem qualidade e sem aprofundamento e com
foco no mercado de trabalho, visando profissões subalternizadas e não aquelas
do desejo dos estudantes.
Com as escolas
sucateadas, não há como oferecer o máximo de qualidade e a reforma do ensino
médio que está posta não obriga que isso seja feito. Além do auxílio
financeiro, são necessárias mudanças estruturais na educação pública brasileira
para alcançarmos um alto patamar de desenvolvimento a todas as classes e a
todas as crianças e adolescentes. E a elaboração de uma nova proposta para o
ensino médio precisa ser feita junto com os movimentos estudantis, com os
trabalhadores e movimentos pela educação.
Mesmo que alguns
passos importantes tenham sido dados nessa nova gestão, o governo federal ainda
não conseguiu dar respostas suficientes ou no tempo necessário para as
problemáticas de violações de direitos e de falta de acesso aos serviços
públicos. Ainda são altas as notificações de violações contra crianças e
adolescentes e os recursos financeiros a serem despendidos pelo governo central
são longe de ser suficientes para erradicar violências e promover condições de
uma vida feliz, brincante e saudável. A nossa tão importante legislação, o
nosso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que está completando 34 anos,
só poderá ser tirada do papel quando a prioridade, também no orçamento público,
for a promoção dos direitos de crianças e adolescentes.
Fonte: Por Thallita
Oliveira, no Le Monde
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