Eleutério F. S. Prado: ‘Depois do
neoliberalismo’
O site
norte-americano Project Syndicate perguntou a cinco
economistas do sistema o que, na opinião deles, vai acontecer após o
esgotamento da governança neoliberal. De fato, a questão proposta, “o que vem
depois do neoliberalismo”, afigura-se implicitamente como dupla: a era
neoliberal acabou? E, nesse caso, o que vem depois?
Por alheio que possa
parecer nenhum dos cinco respondeu à pergunta formulada; ao invés, cada um
deles apresentou aquilo que gostaria que acontecesse no futuro do capitalismo,
em particular nos países dito desenvolvidos. Pois, todos acreditam que as ideias
é que fazem a história e que a sua vai prevalecer se ela for bem difundida
entre os interessados.
Mehrsa Baradaran,
professora de direito da Universidade da Califórnia, sugere que após o
neoliberalismo deveria vir uma “verdadeira economia de mercado”. Segundo ela, o
neoliberalismo não superou de fato a economia keynesiana, não substituiu uma
orientação de esquerda em ascensão. Ao invés, a normatividade neoliberal foi
adotada no final dos anos 1970 não para dar liberdade às pessoas de empreender
à sua vontade, mas para dar liberdade ao capital monopolista de abusar dos
verdadeiros empreendedores.
A justiça social – diz
ela – é um pré-requisito para a liberdade. Só depois de alcançá-la, “pode-se
então aproveitar um mercado livre e a prosperidade compartilhada” que ele pode
propiciar. Não explicou, no entanto, como isso poderia acontecer no curso atual
da história.
Mariana Mazzucato,
professora de economia da inovação e do valor público na Universidade de
Londres, pensa de modo convergente com a tese reformista da anterior. Para que
o neoliberalismo se torne passado, é preciso, segundo ela, que haja um “novo
contrato social entre o Estado e as empresas e entre o capital e o trabalho”.
Pois, o objetivo não deve ser gerar somente bem-estar para os beneficiários das
grandes corporações.
Trata-se, sim, de
reformar os contornos institucionais dos mercados para que “eles fiquem
centrados no valor das partes interessadas – ao invés de se voltarem apenas
para o valor dos acionistas”, ou seja, dos proprietários do capital. E esse
objetivo deveria ser perseguido fazendo com que o Estado se encarregue de
“missões”.
Essas duas autoras
críticas do status quo querem, portanto, um capitalismo sem a
lógica de expansão do capital, que não existe sem os seus inerentes efeitos
sociais e distributivos por eles rejeitados! Não é o deseja Anne O. Krueger, professora
de economia da Universidade Johns Hopkins – mas que fora também economista
chefe do Banco Mundial e diretora no FMI. Ela julga que o neoliberalismo
precisa continuar em vigor nos Estados Unidos e fora dele. “Para promover o
bem-estar de todos e para gerar recursos para as atividades governamentais, a
fórmula neoliberal (…) permanece” – segundo ela – “como a melhor que a
humanidade já produziu até os dias atuais”.
Concorda com ela,
enfaticamente, Michael R. Strain, diretor do setor de estudos econômicos do
Instituto Empresarial Americano. Como um economista liberal consistente, ele se
mostra bem contrário às políticas protecionistas dos dois últimos governos
norte-americanos. Para ele, “a era neoliberal não está terminando nos Estados
Unidos”, ou pelo menos, se esse fosse o caso, não deveria estar.
Eis que, como
argumenta, “no longo prazo, o sucesso político se baseia no sucesso da
política” e “as políticas ‘pós-neoliberais’ dos presidentes Donald Trump e Joe
Biden estão fracassando”. E elas, segundo as teses do liberalismo econômico,
têm consequências desastrosas não no curto, mas no longo prazo. Ao introduzirem
ineficiências, comprometem a taxa futura de crescimento econômico dos países em
que são implantadas.
Já Dani Rodrik,
professor de economia política internacional da Escola Kennedy em Harvard,
pensa que o “consenso neoliberal foi ultrapassado devido aos problemas
geopolíticos, de segurança nacional, mudança climática e erosão da classe
média”. Sugere, entretanto, que não se deve lamentar o seu falecimento;
adverte, outrossim, que é preciso se preocupar com o tipo de resposta a ser
dado a esse evento alvissareiro; eis que “deveria ser reativo e construtivo”.
Pois, o jogo “eu ganho
o que você perde” no campo das relações internacionais, ou seja, uma guerra
econômica entre as nações, não só pode desandar em guerras verdadeiras, mas
pode também distribuir prejuízos para todos os lados. Em suma, ele gostaria de ver
nascer e prosperar uma “economia global melhor”.
O prêmio Nobel Joseph
E. Stiglitz, professor da Universidade da Columbia, se apresenta também como um
reformista progressista. Contudo, ele ignora também, tal como Dani Rodrik, as
contradições e as limitações do capitalismo para gerar uma sociedade melhor
para os debaixo. Desse modo, uma transformação utópica sempre pode ser
imaginada e ventilada para ganhar créditos, ou seja, uma falsa reputação. De
qualquer modo, para ele, a agenda neoliberal sempre foi uma “folha de
figueira”, um tapa que esconde algo muito embaraçante.
Eis, pois, como avalia
essa agenda: “Houve desregulamentação financeira, mas também resgates maciços
do governo. Havia “livre comércio”, mas também subsídios maciços para a grande
agricultura e a indústria de combustíveis fósseis. Globalmente, isso levou à
criação de regras que preservaram os padrões de comércio colonial, com os
países em desenvolvimento produzindo commodities e as economias avançadas
dominando as indústrias de alto valor agregado”.
Para Joseph Stiglitz,
o que importa para o bom desenvolvimento econômico são as normas legais que
regem os comportamentos dos agentes econômicos individuais e coletivos. E elas
são cruciais, segundo ele, seja dentro dos países seja globalmente. Para que um
futuro brilhante, portanto, possa despontar basta reconstruí-las de modo
adequado: “O fim do neoliberalismo, o reconhecimento de que algumas das
instituições criadas sob sua égide estão falhando, o advento de novas
realidades geopolíticas, tudo isso oferece uma oportunidade crítica para
repensar a globalização e as regras que a sustentaram. É preciso aproveitá-la”.
Se essa reconstrução institucional for bem-sucedida – acredita –, o mundo pode
esperar um futuro melhor.
O que caracteriza
todos esses autores é uma incapacidade de pensar o capitalismo como um sistema
social formado por relações sociais estruturantes – ademais, contraditórias e
dotado de leis tendenciais de desenvolvimento. Como se sabe, esse sistema se reproduz
com base na dinâmica própria de uma relação de produção, que tem que tem uma
enorme força determinativa: a relação de capital. Pois, além de ser exigente e
mesmo imperativa em seu âmbito próprio, ela molda as relações sociais também
para além das relações econômicas.
Esta relação enquanto
relação de produção, ao requerer a subordinação do trabalho social à
valorização imediata do valor e à progressão infinita da acumulação de valor,
condiciona e conforma as instituições em geral; outrossim, prevalece, de modo
implícito, nas formulações da política econômica. O devir do sistema, assim
constituído, obedece às leis da acumulação (demanda crescente de força de
trabalho, redução relativa do capital variável em relação ao capital constante,
existência de um exército industrial de reserva etc.) e à lei tendencial de
queda da taxa de lucro, assim como às suas contratendências.
Portanto, os ideários
políticos e as práticas políticas que deles derivam são sempre condicionadas
pelos imperativos que advém da lógica de reprodução do sistema. São
coadjuvantes mesmo quando são inovadoras, a não ser que sejam propriamente
revolucionárias, que neguem e subvertam essa lógica. Em caso contrário, se o
sistema da relação de capital persiste existindo, as guerras, por exemplo, não
poderão ser evitadas já que decorrem da natureza imperialista do próprio
capital.
Nesse sentido, o
neoliberalismo, seja como ideologia seja como normatividade, mesmo que tenha
surgido na cabeça de economistas de direita e de tecnocratas subservientes às
demanda da acumulação de capital, adveio de fato como resposta à crise dos anos
1970, quando despencou a taxa de lucro nos países centrais, quando o poder dos
sindicatos era então forte para manter os salários reais, quando eclodiu a
estagflação, quando, em consequência, esgotou-se a governança keynesiana,
quando, ademais, a segunda onda globalização do capitalismo requeria um novo
impulso, por meio da mundialização das finanças e da exportação das indústrias
intensivas em trabalho do centro para o seu entorno, em especial para a Ásia.
Ora, o capitalismo
agora dominado pelas finanças, que se expandira por cerca de trinta anos sob a
governança neoliberal, sofreu um forte abalo como a crise de 2008 que, como se
sabe, foi de grande magnitude. Foi salvo então de uma grande derrocada por meio
da socialização dos prejuízos, a qual foi posta em prática pelos governos e
bancos centrais dos países centrais.
Essa crise marca
também o término da terceira onda de globalização e o início de um período em
que aparecem fraturas na ordem econômica internacional, em que reaparece o
protecionismo e assomam tendências à multipolaridade. Um conflito persistente
entre o EUA e a China, entre um bloco hegemônico e um bloco contestante, vai
agitar ainda mais agora um curso intranquilo da história, o qual já se
encontrava sob a grande ameaça do problema climático em agravamento constante.
Tomando por referência
a economia capitalista nos EUA, a história do desenvolvimento do sistema como
um todo, tal como se configurou no pós-Segunda Guerra Mundial, é contada em
grandes traços pela figura que se segue. Eis que nela está posto um gráfico da
evolução da taxa de lucro durante as últimas oito décadas. Após o fim da era
dourada, que vai do fim da II Guerra Mundial até a virada dos anos 1960,
sobrevém um período de crise que dura até o final da década dos anos 1970 ou
pouco mais.
Nos anos 1980,
acontece a recuperação neoliberal, a qual se esgota por volta da virada do
milênio; doravante, inicia-se o período da longa depressão que ainda não
terminou e nem está para terminar. Tem-se, pois, uma crise estrutural, a qual
não pode ser revertida porque os Estados capitalistas não aceitam mais que a
crise destrua uma boa parte do capital acumulado. Pois, sem essa destruição,
requerida pela própria lógica da acumulação capitalista, a taxa de lucro não se
recupera e a estagnação persiste, torna-se não só uma realidade corrente, mas
prefigura também o futuro do capitalismo.
Ora, ninguém respondeu
melhor a pergunta feita pelo Project Syndicate e que motiva a
escrita deste artigo do que Nancy Fraser, professora de filosofia da “New
School” de Nova Iorque, quando ela refletiu sobre a crise do
neoliberalismo. Ela pode ter errado ao apontar que ele terminara, mas acertou
ao apresentar o descendente como progressista e o ascendente como
neoliberalismo reacionário.
Antes de reelaborar
apenas um pouco a sua tese, é preciso apresentar em grandes traços em que
consistem, segundo ela, essas duas governanças, a incumbente e a sua sucessora
emergente. Eis que elas, ainda que divergindo enquanto pretensões políticas,
têm o mesmo objetivo de manter funcionando o sistema da relação de capital,
evitando que as suas contradições se exponham como conflitos abertos, os quais
podem gerar revoltas e revoluções, ameaçando-o com uma destruição possível.
O neoliberalismo
progressista se põe historicamente por meio de um duplo movimento: por um lado,
procura revigorar as relações de produção que formam a base estrutural do
capitalismo, impulsionando a concorrência, o individualismo competitivo, a
privatização de empresas até então públicas, a financeirização etc., por outro,
busca promover uma distensão das relações sociais ao nível da superestrutura,
acolhendo o feminismo, o antirracismo, o multiculturalismo, os direitos das
minorias sexuais etc. “O neoliberalismo progressista” – afirma Nancy Fraser –
“misturou truncados ideais de emancipação com formas letais de reificação
mercantil”. Os movimentos progressistas ao se associarem ao neoliberalismo –
acrescenta – emprestaram o seu prestígio e o seu carisma a ele, contribuindo
assim para a sua aceitação e legitimação e, assim, para a expansão desmedida da
forma mercadoria.
Em face dos efeitos
econômicos desse avanço neoliberal nas economias capitalistas de muitos países,
tais como desindustrialização, reprimarização, precarização da força de
trabalho, estagnação dos salários reais etc., dadas as suas repercussões
desagregadoras dessas mudanças no mundo da vida das classes subalternas, adveio
uma resposta política por meio de movimentos de extrema direita, associados
muitas vezes a movimentos religiosos conservadores. A combinação de economia
quase-estagnada com precarização das condições de vida e o turvamento da
esperança cria uma situação favorável para o advento de saudosismos
reacionários.
Conforme a
insatisfação vai sendo capturada pelos discursos extremistas de direita,
“motins eleitorais” passam a ocorrer como forma de rejeitar as “elites
políticas” tradicionais. Eis que a gestão neoliberal havia atuado para criar
uma situação adversa para grande parte das classes subalternas. A corrupção
como pecha, endêmica na classe política mercantilizada, passa então a ser
utilizada para degradar a própria política em geral.
Um ambiente difuso de
desagregação social permite, então, a ascensão de “líderes salvadores”. Ora, é
preciso ver que esses movimentos falsamente contestatórios não vieram para
rejeitar o neoliberalismo como tal, mas para direcionar a revolta apenas contra
as formas sociais e políticas tradicionais, que haviam feito uma aliança tácita
com o progressismo. Ao contrário, para poderem obter apoio dos capitalistas,
eles prometem e praticam uma radicalização do neoliberalismo como forma de
dinamizar a acumulação de capital.
A ideologia neoliberal
imputa ao próprio indivíduo o seu eventual fracasso. Contudo, ele não deixa de
criar dificuldades crescentes para os indivíduos isolados que nele labutam para
manter a própria vida. Ora, mesmo aqueles que se tornaram empresários de si
mesmos precisam de uma compreensão de mundo. Assim, sempre que a situação
social se torna obscuramente adversa – possivelmente catastrófica – para tais
seres sociais individualizados, eles se tornam suscetíveis às teorias
conspiratórias, tendendo a aderir aos movimentos extremistas. Eis que estes
apresentam soluções imediatas, enganosas, mas aparentemente heroicas, para os
problemas existentes.
Em resumo, desse modo,
tendo em conta as particularidades da situação histórica, neoliberalismos
reacionários estão vindo agora a se contraporem às modalidades existentes de
neoliberalismo progressista. Como esses movimentos compartilham a paranoia
política com o velho fascismo, dela se valendo para assumirem protagonismo no
processo político, eles passam a ser chamados erroneamente de neofascismos. O
raciocínio analógico produz aqui apenas má teoria.
De qualquer modo, é
preciso concluir que depois do neoliberalismo vem ainda o neoliberalismo, agora
sob novas aparências. Uma gangorra entre as diferentes formas de neoliberalismo
poderá sobrevir; de qualquer modo, uma adaptação ao processo em curso de desglobalização
será mandatória. Ora, o nacionalismo identitário e xenófobo já se encontra na
pauta dos movimentos extremistas de direita em ascensão. Contudo, mesmo se o
neoliberalismo reacionário predominar aqui e ali, mesmo se persiste como
alternativa, o progressista não deverá desaparecer. Como se sabe, mesmo a
socialdemocracia, ainda que degradada, ainda não se tornou apenas história.
Dado que a situação de
quase estagnação tem causas estruturais e que ela abrange atualmente uma grande
parte das economias capitalistas, dado que a reversão sistêmica dessa situação
se tornou politicamente inaceitável – eis que levaria a uma derrocada do
próprio sistema –, nenhuma forma de governança burguesa, franca ou disfarçada,
poderá agora ser bem-sucedida de modo persistente.
Deve-se esperar para o
futuro, portanto, a ocorrência de um sobe-e-desce de movimentos políticos mais
ou menos extremistas. No entretempo, uma renovação da radicalidade de esquerda
poderá também ocorrer. Com ou sem ela, é de se prever que prevaleça uma incapacidade
de consolidar uma situação política duradoura no governo dos países
capitalistas. De qualquer modo, os povos assistem agora e doravante o ocaso do
capitalismo.
Fonte: A Terra é
Redonda
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