Paul Ricoeur: “Tolerância não é
indiferença”
Eu delineei, sob o
título de quinto estágio, o perfil de uma profissão, implícita ou explícita, da
indiferença. Esse estágio, que já alcançamos, é aquele em que se aprova tudo
porque tudo vale, tudo é igual. Para Antoine Garapon, o modelo de tolerância nascido
da resolução das guerras religiosas esgotou seus recursos, porque hoje não há
mais profissões de fé para reconciliar e, acima de tudo, para obrigar a
coabitar. Na ausência de pontos de referência comuns, as duas preocupações
residuais compartilhadas, a da segurança pública, diante das novas formas de
periculosidade, e a da saúde pública, diante das ameaças feitas aos corpos,
projetam em primeiro plano a arbitragem da instituição judiciária com seus
procedimentos aceitos e a proteção da instituição médica. Arbitragem e
proteção: novas figuras da tolerância. E não se trata mais de uma questão de
cumprimento, mas de substituição. Assim, os ataques dos escritores pós-modernos
à racionalidade do Iluminismo e à "modernidade" reforçam involuntariamente
a desintegração a partir de dentro do paciente edifício que elevou ao seu ápice
a Declaração dos Direitos Humanos, que hoje se tornou uma ideologia obsoleta.
É claro que todos
defendem os Direitos Humanos, mas o trabalho de ascese, tanto sobre a convicção
quanto sobre o poder, seja em nível individual ou institucional, deixou de ser
relevante: tornou-se incompreensível, sem sentido. Torna-se então inquietante
perguntar-se que ligação secreta - e até mesmo involuntária - possa haver entre
a ascese final do quarto estágio e a queda na indiferença do quinto estágio. A
relação é tão perturbadora como tudo que torna secretamente cúmplices o
autêntico e o inautêntico: nada se assemelha mais à frase "Há verdade
também fora de mim" do que a frase "As diferenças são
indiferentes". Como evitar que a admissão da verdade do outro alimente o
argumento da indiferença? É aí que a questão do intolerável surge
inesperadamente, como último refúgio de uma tolerância pensada e desejada.
O intolerável é o que
não gostaríamos de tolerar, quando poderíamos ou até mesmo deveríamos. Nesse
sentido, o intolerável é o oposto polar da intolerância, aquele comportamento
de desaprovação e impedimento que a tolerância tentou superar. O intolerável só
é problemático em um contexto de tolerância adquirida ou em processo de
aquisição. O que o torna problemático é pretender pôr um limite para a
tolerância. Mas, enquanto a tolerância se abstém, o intolerável exige a
suspensão da abstenção. É por isso que é plenamente pertinente somente em uma
cultura educada pela e para a tolerância. Mas para justificar essa expectativa,
precisamos ter respondido a algumas perguntas preliminares: como reconhecemos o
intolerável? O que é tipicamente intolerável? Em nome de quem se denuncia o
intolerável?
O intolerável é
reconhecido pela paixão que o detecta, a indignação, uma paixão eminentemente
reativa, e é por isso que se contrapõe à atonia prevalente de uma sociedade
pronta para aceitar tudo como igualmente insignificante. A indignação é, antes
de tudo, um grito: isso é intolerável!
A indignação é uma
raiva moral, uma figura "testadora e contestadora da virtude". Mas,
se a indignação pode ser reconhecida por seu caráter reativo e apaixonado, é
mais difícil encontrar um objeto comum para ela. As ocasiões para a indignação
não se apresentam em uma ordem aleatória: o que há em comum entre a repulsa
despertada pelo crime de um pedófilo, o horror que continuam a despertar as
histórias dos campos de deportação e de extermínio, a revolta contra as
manifestações de racismo, contra o retorno disfarçado da escravidão, contra a
desigualdade extrema ou contra as políticas de exclusão? Parece que estamos
condenados a proceder de forma indutiva: mas em vista de qual objetivo? Se
esses são de fato os males que a indignação denuncia, sem ser capaz de designar
o bem do qual são o oposto, esses males não são, por sua própria natureza,
disseminados?
John Rawls, ao
questionar sobre os pressupostos morais para os quais seus princípios de
justiça deveriam fornecer uma argumentação racional, no espaço contratual e
processual, fala de "convicções bem ponderadas" e tenta estabelecer
uma espécie de "equilíbrio reflexivo" entre elas e sua argumentação
razoável. É outro tipo de "equilíbrio reflexivo" aquele que proponho,
entre a raiva virtuosa da indignação e o retorno às fontes esquecidas de nossa
cultura. Se a indignação deve agir como uma barreira contra a indiferença moral
na qual a tolerância está afundando, ela deve fazê-lo de forma a soar como uma
campainha de alarme. Não se pode dizer que a democracia se apoia em um vácuo;
ao contrário, ela expressa um excedente que surgiu das fontes esquecidas de
nossa cultura.
A cultura ocidental,
por sua vez, é o resultado de um encontro conflituoso, mas, no final, frutuoso,
entre a herança greco-romana e aquela judaico-cristã, o sucessivo Renascimento,
a Reforma, o Iluminismo, os movimentos nacionalistas e socialistas do século
XIX e assim por diante. Seria, portanto, uma tarefa complementar: ao lado do
apelo à tolerância, em que a ênfase principal é posta sobre a abstenção de
proibir e de impedir, usar os recursos da indignação, despertados pelo
intolerável, para haurir energia para uma refundação moral da democracia. Essa
refundação só pode ser múltipla e proceder por heranças cruzadas. Se a
indignação não levar a tal trabalho sobre si mesmo, ao final do qual as nossas
múltiplas tradições se reconhecem como cofundadoras de uma mesma vontade de
convivência, essas mesmas tradições correm o risco de armar um justiceiro que,
sob o pretexto de limitar os abusos da tolerância, reinventaria a intolerância
sob uma aparência virtuosa.
• Ainda há esperança para o mundo? Por
Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos
Não é uma pergunta
retórica! Tenho visto líderes religiosos literalmente perdidos, perante a
mediocridade existencial da atual civilização. Mais ou menos, como lemos em
Jeremias 14: “até o profeta e o sacerdote perambulam pela terra sem saber o que
se passa”. Tem momentos em que nos sentimos abalroados pelo desânimo sem
conseguirmos enxergar a presença de Deus. Ou será que esse Deus de Jesus Cristo
não está exatamente ali onde o desespero e a morte parecem grassar? Assim o
disse Bento XVI e Francisco quando em silêncio contemplaram o campo de
concentração e extermínio de Auschwitz.
Uma das imagens mais
impactantes das últimas décadas (e foram muitas) é a do Papa Francisco subindo
sozinho, num final de tarde, as escadas da praça S. Pedro na direção do
crucifixo milagroso. Aquele mesmo crucifixo do altar principal, que na noite do
dia 22 para o dia 23 de maio de 1519, quando a igreja sofreu um violento
incêndio e ficou destruída, as pessoas encontraram providencialmente intacto e
iluminado por uma lamparina que, embora atingida pelas chamas, ainda ardia aos
seus pés. Em 1522, de novo a salvação da peste foi atribuída à proteção desse
crucifixo.
Agora, era o dia 27 de
março de 2020, auge da pandemia. Roma estava vazia, ele, o ancião da Igreja
Católica, literalmente sozinho! “Deus onipotente e misericordioso, olhe a nossa
dolorosa situação: conforta teus filhos e abre nossos corações à esperança,
porque sentimos sua presença de Pai em nosso meio”, afirmou, ao abrir a oração.
A cena é de fato proporcional à gravidade que atingia a humanidade com a
Covid-19. E Francisco o líder de bilhões de católicos que acreditam firmemente
na presença de Deus, em todas as circunstâncias.
Foram inúmeros os
textos que discorreram sobre a esperança de que o ser humano e a humanidade em
geral se tornariam melhores após milhões de morte e perdas irreparáveis com a
pandemia. Nas escolas, nas igrejas, nos espaços públicos, odes à humildade perante
o inevitável e incurável eram frequentes! Ali estava o Papa Francisco, o homem
que convocou um Jubileu Ordinário sobre a esperança, dizendo com a sua postura
frágil e inclinada perante o crucifixo que a “a nossa esperança está no Senhor.
Ele é o nosso auxílio e a nossa proteção” (Sl 33). No próximo ano, todos
seremos “peregrinos da esperança” ou pelo menos tomando consciência de que “não
temos aqui morada permanente” (Hb 13,14) e por conseguinte a humildade deve ser
a tônica dos nossos atos.
Havia sim, a esperança
de que tudo mudasse para melhor. “Se não aprendemos pelo amor, quem sabe
aprenderíamos pela dor”! Triste equívoco! Dilacerante constatação! Virada a
página da peste (ainda que o vírus continue), o que vemos, ouvimos e lemos, é
que não evoluímos nada com os funerais solitários dos entes queridos, nem com
os caixões enfileirados! O negacionismo que matava tanto quanto, continua se
impondo em discursos miseráveis, com adesões escandalosas de cultos e
analfabetos! O ódio e a polarização dentro de famílias, comunidades e países,
grassa solto como o maior bastardo do advento das redes sociais! Nada mudou! Se
mudou, foi para pior! Veio a invasão da Ucrânia e o genocídio na faixa de Gaza,
revelando um mundo impotente, covardemente calado e copartícipe dessas
tragédias! A Covid-19 nada nos ensinou; se assim era pra ser, não aproveitamos
nada!
O grito de Francisco
vem repleto de esperança e sonho místico para a humanidade. Não poderia ser
diferente. “Se nos calarem, a pedras falarão” (Lc 19,40). O grande santo do
Araguaia, sepultado às margens do rio, suava esperança em seus versos e prosas!
Num episódio hilário no filme a Última Tentação de Cristo (filme
norte-americano de 1988, do gênero drama, dirigido por Martin Scorsese), quando
Paulo recebe a visita de Jesus, que teria descido da cruz, ele não hesita:
“mesmo que isso fosse verdade, eu continuaria anunciando que Cristo
ressuscitou”!
A esperança de
Francisco, a nossa esperança, não está alavancada em feitos e fatos humanos!
“Alegres na esperança, perseverantes na tribulação, constantes na oração” (Rm
12,12). Assim nos diz o Papa: “O próximo Jubileu poderá favorecer muito a
recomposição dum clima de esperança e confiança, como sinal dum renovado
renascimento do qual todos sentimos a urgência. Por isso, escolhi o tema
Peregrinos da Esperança”. Não é uma esperança fundada no silêncio das armas e
em acordos, tão pueris quanto perversos, entre os “grandes cavalheiros deste
mundo”.
E logo depois
acrescenta: “Entretanto, tudo isto será possível se formos capazes de recuperar
o sentido de fraternidade universal, se não fecharmos os olhos diante do drama
da pobreza crescente que impede milhões de homens, mulheres, jovens e crianças
de viverem de maneira digna de seres humanos.” Aqui sim, habita o cerne da
verdadeira esperança que nos deve animar. Que mais teríamos, como combustível,
para ir adiante? As contradições, as mentiras, as aberrações do tempo presente,
são um charco perene de água poluída que nos impede de avançar!
Dias atrás, o
candidato Trump sofreu um atentado. Por milímetros não ocorreu o pior. Os
eleitores - e o mundo - poderiam passar a conhecer um Trump mais sereno, mais
espiritual, mais unificador e até quem diria, mais humilde. Afinal, a morte
acabava de ter flertado com ele. Ledo engano! Após horas “mais espirituoso”,
voltou ao seu normal. Mentiroso, arrogante, fascista e tudo que já percebemos
no seu último mandato e que no próximo pode eventualmente exacerbar. Se uma
peste é pouco para mudar um mundo, uma bala é insignificante para mudar um
homem! Um dos episódios mais intrigantes do Novo Testamento é a parábola do
pobre Lázaro! “Porém, Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas,
tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite”. Donald Trump,
menos de uma semana depois de ver uma bala rasgando a sua orelha, mostrou que
não mudou, em nada!
Sentimo-nos sozinhos e
possuídos pela sensação de abandono, quando as ondas nos açoitam em mar
revolto, como os discípulos no Mar da Galileia (Mt 14,24). Mais uma vez as
palavras de Francisco, numa meditação sobre a Segunda Carta a Timóteo
(4,10-17), nos elucidam acerca da realidade: “Paulo está em Roma, prisioneiro
numa casa, num quarto, com uma certa liberdade, mas esperando não se sabe o
quê. E naquele momento Paulo sente-se sozinho: é a solidão do pastor quando
surgem dificuldades, mas também a solidão do pastor quando se aproxima o seu
fim: despojado, sozinho e mendigo”. A fragilidade trazida pela idade, ou pelas
várias circunstâncias humanas, nos obrigam a colocar as vigas sobre a trave
mestra da construção. Ou se quisermos: sobre a “pedra angular” (At 14,11).
As placas tectônicas
da humanidade se movem constantemente e nestes últimos tempos, mais do que
nunca. O impacto das eleições americanas sobre a geopolítica mundial atual será
estrondoso! O império dos EUA configurado após a II Guerra dará lugar a outros
“epicentros”, oriundos da Ásia, dos BRICs etc. A mudança de época como caldo
cultural determinante tornou-se o maior desafio para o cristianismo, nos
últimos 1600 anos! Entre o diálogo preconizado pelos Documentos do Concílio e a
afirmação de que outro mundo melhor é possível, não existe contradição.
Navegar no oceano
agitado é preciso! É imprescindível! A Igreja Católica será minoria abraâmica,
mas poderá e deverá ser o fermento necessário de que os homens e mulheres do
século XXI necessitam. Ou ela mostra ao mundo que o ideal do jovem de Nazaré (o
Reino) é o único caminho que gera vida para todos ou ficará falando sozinha num
emaranhado de leis e normas, dando palpites sem ser sondada e respostas a
perguntas que não foram feitas!
Fonte: Avvenine -
tradução de Luisa Rabolini/IHU
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