segunda-feira, 22 de julho de 2024

Paul Ricoeur: “Tolerância não é indiferença”

Eu delineei, sob o título de quinto estágio, o perfil de uma profissão, implícita ou explícita, da indiferença. Esse estágio, que já alcançamos, é aquele em que se aprova tudo porque tudo vale, tudo é igual. Para Antoine Garapon, o modelo de tolerância nascido da resolução das guerras religiosas esgotou seus recursos, porque hoje não há mais profissões de fé para reconciliar e, acima de tudo, para obrigar a coabitar. Na ausência de pontos de referência comuns, as duas preocupações residuais compartilhadas, a da segurança pública, diante das novas formas de periculosidade, e a da saúde pública, diante das ameaças feitas aos corpos, projetam em primeiro plano a arbitragem da instituição judiciária com seus procedimentos aceitos e a proteção da instituição médica. Arbitragem e proteção: novas figuras da tolerância. E não se trata mais de uma questão de cumprimento, mas de substituição. Assim, os ataques dos escritores pós-modernos à racionalidade do Iluminismo e à "modernidade" reforçam involuntariamente a desintegração a partir de dentro do paciente edifício que elevou ao seu ápice a Declaração dos Direitos Humanos, que hoje se tornou uma ideologia obsoleta.

É claro que todos defendem os Direitos Humanos, mas o trabalho de ascese, tanto sobre a convicção quanto sobre o poder, seja em nível individual ou institucional, deixou de ser relevante: tornou-se incompreensível, sem sentido. Torna-se então inquietante perguntar-se que ligação secreta - e até mesmo involuntária - possa haver entre a ascese final do quarto estágio e a queda na indiferença do quinto estágio. A relação é tão perturbadora como tudo que torna secretamente cúmplices o autêntico e o inautêntico: nada se assemelha mais à frase "Há verdade também fora de mim" do que a frase "As diferenças são indiferentes". Como evitar que a admissão da verdade do outro alimente o argumento da indiferença? É aí que a questão do intolerável surge inesperadamente, como último refúgio de uma tolerância pensada e desejada.

O intolerável é o que não gostaríamos de tolerar, quando poderíamos ou até mesmo deveríamos. Nesse sentido, o intolerável é o oposto polar da intolerância, aquele comportamento de desaprovação e impedimento que a tolerância tentou superar. O intolerável só é problemático em um contexto de tolerância adquirida ou em processo de aquisição. O que o torna problemático é pretender pôr um limite para a tolerância. Mas, enquanto a tolerância se abstém, o intolerável exige a suspensão da abstenção. É por isso que é plenamente pertinente somente em uma cultura educada pela e para a tolerância. Mas para justificar essa expectativa, precisamos ter respondido a algumas perguntas preliminares: como reconhecemos o intolerável? O que é tipicamente intolerável? Em nome de quem se denuncia o intolerável?

O intolerável é reconhecido pela paixão que o detecta, a indignação, uma paixão eminentemente reativa, e é por isso que se contrapõe à atonia prevalente de uma sociedade pronta para aceitar tudo como igualmente insignificante. A indignação é, antes de tudo, um grito: isso é intolerável!

A indignação é uma raiva moral, uma figura "testadora e contestadora da virtude". Mas, se a indignação pode ser reconhecida por seu caráter reativo e apaixonado, é mais difícil encontrar um objeto comum para ela. As ocasiões para a indignação não se apresentam em uma ordem aleatória: o que há em comum entre a repulsa despertada pelo crime de um pedófilo, o horror que continuam a despertar as histórias dos campos de deportação e de extermínio, a revolta contra as manifestações de racismo, contra o retorno disfarçado da escravidão, contra a desigualdade extrema ou contra as políticas de exclusão? Parece que estamos condenados a proceder de forma indutiva: mas em vista de qual objetivo? Se esses são de fato os males que a indignação denuncia, sem ser capaz de designar o bem do qual são o oposto, esses males não são, por sua própria natureza, disseminados?

John Rawls, ao questionar sobre os pressupostos morais para os quais seus princípios de justiça deveriam fornecer uma argumentação racional, no espaço contratual e processual, fala de "convicções bem ponderadas" e tenta estabelecer uma espécie de "equilíbrio reflexivo" entre elas e sua argumentação razoável. É outro tipo de "equilíbrio reflexivo" aquele que proponho, entre a raiva virtuosa da indignação e o retorno às fontes esquecidas de nossa cultura. Se a indignação deve agir como uma barreira contra a indiferença moral na qual a tolerância está afundando, ela deve fazê-lo de forma a soar como uma campainha de alarme. Não se pode dizer que a democracia se apoia em um vácuo; ao contrário, ela expressa um excedente que surgiu das fontes esquecidas de nossa cultura.

A cultura ocidental, por sua vez, é o resultado de um encontro conflituoso, mas, no final, frutuoso, entre a herança greco-romana e aquela judaico-cristã, o sucessivo Renascimento, a Reforma, o Iluminismo, os movimentos nacionalistas e socialistas do século XIX e assim por diante. Seria, portanto, uma tarefa complementar: ao lado do apelo à tolerância, em que a ênfase principal é posta sobre a abstenção de proibir e de impedir, usar os recursos da indignação, despertados pelo intolerável, para haurir energia para uma refundação moral da democracia. Essa refundação só pode ser múltipla e proceder por heranças cruzadas. Se a indignação não levar a tal trabalho sobre si mesmo, ao final do qual as nossas múltiplas tradições se reconhecem como cofundadoras de uma mesma vontade de convivência, essas mesmas tradições correm o risco de armar um justiceiro que, sob o pretexto de limitar os abusos da tolerância, reinventaria a intolerância sob uma aparência virtuosa.

 

•        Ainda há esperança para o mundo? Por Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos

Não é uma pergunta retórica! Tenho visto líderes religiosos literalmente perdidos, perante a mediocridade existencial da atual civilização. Mais ou menos, como lemos em Jeremias 14: “até o profeta e o sacerdote perambulam pela terra sem saber o que se passa”. Tem momentos em que nos sentimos abalroados pelo desânimo sem conseguirmos enxergar a presença de Deus. Ou será que esse Deus de Jesus Cristo não está exatamente ali onde o desespero e a morte parecem grassar? Assim o disse Bento XVI e Francisco quando em silêncio contemplaram o campo de concentração e extermínio de Auschwitz.

Uma das imagens mais impactantes das últimas décadas (e foram muitas) é a do Papa Francisco subindo sozinho, num final de tarde, as escadas da praça S. Pedro na direção do crucifixo milagroso. Aquele mesmo crucifixo do altar principal, que na noite do dia 22 para o dia 23 de maio de 1519, quando a igreja sofreu um violento incêndio e ficou destruída, as pessoas encontraram providencialmente intacto e iluminado por uma lamparina que, embora atingida pelas chamas, ainda ardia aos seus pés. Em 1522, de novo a salvação da peste foi atribuída à proteção desse crucifixo.

Agora, era o dia 27 de março de 2020, auge da pandemia. Roma estava vazia, ele, o ancião da Igreja Católica, literalmente sozinho! “Deus onipotente e misericordioso, olhe a nossa dolorosa situação: conforta teus filhos e abre nossos corações à esperança, porque sentimos sua presença de Pai em nosso meio”, afirmou, ao abrir a oração. A cena é de fato proporcional à gravidade que atingia a humanidade com a Covid-19. E Francisco o líder de bilhões de católicos que acreditam firmemente na presença de Deus, em todas as circunstâncias.

Foram inúmeros os textos que discorreram sobre a esperança de que o ser humano e a humanidade em geral se tornariam melhores após milhões de morte e perdas irreparáveis com a pandemia. Nas escolas, nas igrejas, nos espaços públicos, odes à humildade perante o inevitável e incurável eram frequentes! Ali estava o Papa Francisco, o homem que convocou um Jubileu Ordinário sobre a esperança, dizendo com a sua postura frágil e inclinada perante o crucifixo que a “a nossa esperança está no Senhor. Ele é o nosso auxílio e a nossa proteção” (Sl 33). No próximo ano, todos seremos “peregrinos da esperança” ou pelo menos tomando consciência de que “não temos aqui morada permanente” (Hb 13,14) e por conseguinte a humildade deve ser a tônica dos nossos atos.

Havia sim, a esperança de que tudo mudasse para melhor. “Se não aprendemos pelo amor, quem sabe aprenderíamos pela dor”! Triste equívoco! Dilacerante constatação! Virada a página da peste (ainda que o vírus continue), o que vemos, ouvimos e lemos, é que não evoluímos nada com os funerais solitários dos entes queridos, nem com os caixões enfileirados! O negacionismo que matava tanto quanto, continua se impondo em discursos miseráveis, com adesões escandalosas de cultos e analfabetos! O ódio e a polarização dentro de famílias, comunidades e países, grassa solto como o maior bastardo do advento das redes sociais! Nada mudou! Se mudou, foi para pior! Veio a invasão da Ucrânia e o genocídio na faixa de Gaza, revelando um mundo impotente, covardemente calado e copartícipe dessas tragédias! A Covid-19 nada nos ensinou; se assim era pra ser, não aproveitamos nada!

O grito de Francisco vem repleto de esperança e sonho místico para a humanidade. Não poderia ser diferente. “Se nos calarem, a pedras falarão” (Lc 19,40). O grande santo do Araguaia, sepultado às margens do rio, suava esperança em seus versos e prosas! Num episódio hilário no filme a Última Tentação de Cristo (filme norte-americano de 1988, do gênero drama, dirigido por Martin Scorsese), quando Paulo recebe a visita de Jesus, que teria descido da cruz, ele não hesita: “mesmo que isso fosse verdade, eu continuaria anunciando que Cristo ressuscitou”!

A esperança de Francisco, a nossa esperança, não está alavancada em feitos e fatos humanos! “Alegres na esperança, perseverantes na tribulação, constantes na oração” (Rm 12,12). Assim nos diz o Papa: “O próximo Jubileu poderá favorecer muito a recomposição dum clima de esperança e confiança, como sinal dum renovado renascimento do qual todos sentimos a urgência. Por isso, escolhi o tema Peregrinos da Esperança”. Não é uma esperança fundada no silêncio das armas e em acordos, tão pueris quanto perversos, entre os “grandes cavalheiros deste mundo”.

E logo depois acrescenta: “Entretanto, tudo isto será possível se formos capazes de recuperar o sentido de fraternidade universal, se não fecharmos os olhos diante do drama da pobreza crescente que impede milhões de homens, mulheres, jovens e crianças de viverem de maneira digna de seres humanos.” Aqui sim, habita o cerne da verdadeira esperança que nos deve animar. Que mais teríamos, como combustível, para ir adiante? As contradições, as mentiras, as aberrações do tempo presente, são um charco perene de água poluída que nos impede de avançar!

Dias atrás, o candidato Trump sofreu um atentado. Por milímetros não ocorreu o pior. Os eleitores - e o mundo - poderiam passar a conhecer um Trump mais sereno, mais espiritual, mais unificador e até quem diria, mais humilde. Afinal, a morte acabava de ter flertado com ele. Ledo engano! Após horas “mais espirituoso”, voltou ao seu normal. Mentiroso, arrogante, fascista e tudo que já percebemos no seu último mandato e que no próximo pode eventualmente exacerbar. Se uma peste é pouco para mudar um mundo, uma bala é insignificante para mudar um homem! Um dos episódios mais intrigantes do Novo Testamento é a parábola do pobre Lázaro! “Porém, Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite”. Donald Trump, menos de uma semana depois de ver uma bala rasgando a sua orelha, mostrou que não mudou, em nada!

Sentimo-nos sozinhos e possuídos pela sensação de abandono, quando as ondas nos açoitam em mar revolto, como os discípulos no Mar da Galileia (Mt 14,24). Mais uma vez as palavras de Francisco, numa meditação sobre a Segunda Carta a Timóteo (4,10-17), nos elucidam acerca da realidade: “Paulo está em Roma, prisioneiro numa casa, num quarto, com uma certa liberdade, mas esperando não se sabe o quê. E naquele momento Paulo sente-se sozinho: é a solidão do pastor quando surgem dificuldades, mas também a solidão do pastor quando se aproxima o seu fim: despojado, sozinho e mendigo”. A fragilidade trazida pela idade, ou pelas várias circunstâncias humanas, nos obrigam a colocar as vigas sobre a trave mestra da construção. Ou se quisermos: sobre a “pedra angular” (At 14,11).

As placas tectônicas da humanidade se movem constantemente e nestes últimos tempos, mais do que nunca. O impacto das eleições americanas sobre a geopolítica mundial atual será estrondoso! O império dos EUA configurado após a II Guerra dará lugar a outros “epicentros”, oriundos da Ásia, dos BRICs etc. A mudança de época como caldo cultural determinante tornou-se o maior desafio para o cristianismo, nos últimos 1600 anos! Entre o diálogo preconizado pelos Documentos do Concílio e a afirmação de que outro mundo melhor é possível, não existe contradição.

Navegar no oceano agitado é preciso! É imprescindível! A Igreja Católica será minoria abraâmica, mas poderá e deverá ser o fermento necessário de que os homens e mulheres do século XXI necessitam. Ou ela mostra ao mundo que o ideal do jovem de Nazaré (o Reino) é o único caminho que gera vida para todos ou ficará falando sozinha num emaranhado de leis e normas, dando palpites sem ser sondada e respostas a perguntas que não foram feitas!

 

Fonte: Avvenine - tradução de Luisa Rabolini/IHU

 

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