SERRA DAS ALMAS, A RESERVA NATURAL ONDE A
CAATINGA É EXUBERANTE COMO VOCÊ NUNCA VIU
A caatinga é um bioma
único que só existe no Brasil – e quase todo no Nordeste. Quem o associa a um
local sem vida é porque não conhece a potência dessa floresta. Ou a conhece
apenas na sua forma agredida pelo homem: estima-se que pode haver de 9 milhões
de hectares (pouco mais de 18% do total) a 26,7 milhões de hectares (quase 54%)
de vegetação degradada na caatinga, segundo dados do Mapbiomas divulgados no
começo deste mês.
Por isso, quem chega
na Reserva Natural Serra das Almas se depara com um oásis: uma caatinga
preservada em quase 6,3 mil hectares entre Buriti dos Montes, no Piauí, e
Crateús, no Ceará. Nos meses de seca, o significado do nome tupi da caatinga se
mostra: a mata branca, com árvores e arbustos secos ou quase sem folhas. Nas
primeiras chuvas, toda a área já começa a ficar com vários tons de verde.
A Marco Zero visitou a
Serra das Almas em maio quando tudo ainda estava exuberantemente verde. É uma
visita que ensina não só sobre a resiliência da natureza, mas também dos seres
humanos. E como é possível mudar maus hábitos, mesmo aqueles passados de geração
para geração.
A reserva não é nem de
longe uma das maiores da caatinga. Para se ter uma ideia, a maior é o Parque
Nacional da Serra das Confusões, no Piauí, com mais de 823 mil hectares. Ainda
que relativamente pequena, a Serra das Almas é especial. Concentra uma variedade
de 793 tipos diferentes de plantas, quase 400 espécies de animais, sendo pelo
menos 45 mamíferos.
Entre os animais já
registrados na reserva estão papa-mel (também conhecido como irara), mocó,
preá, paca, cotia, veado-catingueiro, raposa, macaco-prego, macaco
guariba-da-caatinga, gato mourisco, gato pardo, jaguatirica, gato do mato,
também chamado de maracajá, tamanduá, o quase extinto tatu-bola (é bom lembrar
que foi a Associação Caatinga quem puxou a campanha para que ele fosse o
mascote da Copa de 2014) até um único indivíduo de jacaré-coroa, uma espécie
mais comum na Amazônia.
Das 591 espécies de
aves já catalogadas na caatinga, mais de 230 já foram encontradas por lá, como
o jacu-verdadeiro, o caburé-acanelado e o urubu-rei. Recentemente, os ameaçados
e lindos periquitos-cara-suja foram reintroduzidos na reserva.
A Serra das Almas é
uma área privada, uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN),
reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura(Unesco) como Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Caatinga. Foi
criada no ano de 2000 por um grupo de ambientalistas que formaram a Associação
Caatinga. O dinheiro para comprar as antigas fazendas que compõem a reserva
veio dos Estados Unidos, numa espécie de agradecimento de uma família de
empresários norte-americanos à carnaúba.
“Em 1935, Herbert
Johnson Júnior saiu de avião da cidade de Racine, no Wisconsin, e fez uma
expedição até o Ceará em busca da melhor cera possível para passar nos pisos de
madeira que ele vendia. No Ceará, encontrou a carnaúba. E aí o negócio dele deu
uma virada, passando a vender cera de carnaúba”, conta o coordenador da
reserva, Gilson Miranda.
Em 1998, um dos filhos
de Johnson resolveu recriar a viagem do pai e fez o mesmo roteiro. No Ceará,
decidiu prestar uma homenagem à planta que fez crescer a SC Johnson – que hoje
fabrica produtos de limpeza, repelentes e inseticidas domésticos, como o Baygon.
A fundação da família é também uma das financiadoras da Serra das Almas, além
de outras empresas, como a Petrobras.
Além da preservação, a
reserva também é um local de pesquisa e ecoturismo. Das pesquisas, uma
investigou os felinos que passam por lá. Os guarda-parques – cinco homens que
fazem a manutenção do local – recolheram fezes dos animais, que foram levadas
para análise pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Pela análise de DNA,
se chegou à informação de que cinco onças-pardas frequentam a reserva, sendo
três delas mais assíduas. A pesquisa viu também que as onças só tinham nas
fezes traços de alimento de animais silvestres, como catitu (um tipo de porco
do mato), veado, cotia. Não tinha nenhum animal doméstico. A presença de alguns
animais, como as onças, são bioindicadores de que essa área está em
equilíbrio”, comenta Gilson. Na reserva, uma pesquisa da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE) também identificou a presença de macacos
guariba-da-caatinga, ameaçados de extinção.
Hoje, a maior ameaça à
reserva é a caça dos animais. É uma guerra que a reserva enfrenta em várias
frentes, principalmente cuidando do entorno do local.
AS AMEAÇAS DOS
CAÇADORES
Quando tinha um tempo
livre, Marcos Rodrigues Marques gostava de caçar. Saía cedinho de casa, pegava
uma espingarda e ia caçar aves e o que mais aparecesse na zona rural de
Crateús. Às vezes, caçava também à noite. Era um hábito comum e arraigado na
região. Hoje aos 54 anos, Marcos é o mais antigo guarda-parque de Serra das
Almas, trabalhando lá desde o início da abertura da reserva.
Quando chegou, ainda
não havia se conscientizado sobre a necessidade de proteger esses animais. Com
o tempo, foi entendendo que não podia matar raposa ou tamanduá. “Fui conhecendo
essa caatinga que a gente tem aqui na Serra das Almas. Isso me causou um interesse
em proteger os animais. Não precisamos mais caçar”, diz. Mas quando via uma
cobra, o primeiro ímpeto era matá-la. “Aos poucos fui entendendo que todo bicho
tem uma função na natureza. Todo ele”, diz.
A conscientização não
é fácil. Em uma das trilhas que a equipe da Marco Zero percorreu na reserva,
havia um imenso buraco no chão. Era o resquício de uma caça de tatus, feita por
caçadores que invadiram a reserva com cachorros que farejam onde os tatus se
escondem. Depois, cavam para pegar e matar os bichinhos. Há cinco
guarda-parques para proteger os mais de 6 mil hectares da reserva. Quando
encontram a presença de pessoas não autorizadas, explicam que é uma área
privada e solicitam a saída deles. Quando não há conversa, a polícia é chamada.
“Muitas vezes o animal
é morto dentro de uma fazenda ou um sítio porque entrou lá atrás de uma
galinha, uma cabra. Porque as próprias pessoas estão tirando o alimento daquele
animal de dentro da floresta. Como qualquer outro ser vivo, esse animal vai buscar
sua sobrevivência e vai comer um animal doméstico. As chances de encontrar um
animal na natureza diminuíram principalmente pela ação do homem. É um conflito
muito desigual”, lamenta Gilson Miranda.
É pela educação
ambiental do entorno da reserva que a mudança realmente efetiva acontece. É
protegendo também o entorno que se protege os animais que estão dentro na
reserva. “Os animais, claro, não entendem divisas. Aqui já foram registradas a
presença dessas cinco onças, mas se calcula que uma única onça precisa de 5 mil
hectares para caçar e viver bem na caatinga. Temos então uma superpopulação de
onças e elas também saem da reserva”, completa Gilson.
O HOMEM QUE VIU A ONÇA
Os guarda-parques da
Serra das Almas já viram muitos animais. Mas nos 24 anos da reserva, ninguém
nunca tinha estado cara a cara com uma onça lá dentro. Só tinham visto as onças
nas imagens das câmeras de monitoramento e nos vestígios que elas deixavam. Pegadas,
fezes. Até que, uma semana antes da Marco Zero chegar na reserva, o deslumbre
aconteceu: o guarda-parque Marcos Rodrigues Marques viu uma onça atravessando a
estrada principal da reserva, sob o sol das 11 da manhã.
“Eu queria muito,
muito ver a onça. Mas não tem aquele dia que você vai dizer: ‘eu vou ver ela
hoje’. A gente nunca se prepara para essas coisas”, diz. Ele estava de moto na
estrada, chegando de Crateús para mais um dia de trabalho na reserva. “Quando
você entra na unidade, você já vai vendo de tudo. Aí eu estava vindo na estrada
e de repente eu levantei a vista e vi aquele vermelho assim na minha frente”,
conta.
“E aí quando eu vi
aquele bicho vermelho eu disse, ‘ah, é um cachorro’. Aí parei a moto,
desliguei. Observei direitinho assim, mirei. Eu mirei nela, ela mirou em mim.
Aí eu disse: ‘não, não acredito. É ela mesmo’”, conta Marcos. “Eu sabia que se
eu me aproximasse ela não ia esperar. Mas ela esperou. Aí quando ela me viu,
ela firmou (o olhar)”.
Marcos não ficou com
medo. Ficou ansioso para chegar mais perto, para ver por mais tempo. Pensou em
tirar o celular velhinho do bolso e bater uma foto. Mas enquanto pensava se
iria ou não assustar o bicho com esse movimento, a onça seguiu seu rumo mata adentro,
tranquilamente. Marcos guardou bem na memória como ela era. Avermelhada,
comprida, com um rabo também comprido e estava bem alimentada. Era uma onça
parda fêmea, também conhecida como sussuarana.
“Deu para ver
direitinho. A orelhinha curta. E a bicha ficou mirando mesmo”, disse, ainda
maravilhado com a visão. Marcos também reconheceu a onça das imagens das
câmeras de monitoramento da reserva. Era um dos três indíviduos adultos que
mais aparecem nas filmagens.
TECNOLOGIA SOCIAL PARA
CUIDAR DO ENTORNO
As quase 40
comunidades que existem ao redor da reserva ecebem muitas ações de educação
ambiental e apoio social. São 4 mil famílias, aproximadamente 16 mil pessoas,
que têm envolvimento com as ações do projeto. São capacitações – como de
produção de artesanato com sementes e de produção de sabão do reúso do óleo de
cozinha -, recebimento de tecnologias sociais e apoio financeiro direto, como
cartões de alimentação. Jovens também recebem formação para trabalharem como
guias de ecoturismo.
“Quando você fala com
as pessoas, você vê que elas mudaram a percepção sobre o meio ambiente. E é
interessante que não tem essa questão de ‘ah, está ajudando lá porque é amigo
de fulano’. Primeiro vamos conhecer essas famílias, fazer um levantamento socioambiental
para saber quais têm a prioridade em receber ajuda. Ao longo desses mais de 20
anos, já envolvemos 72 mil pessoas na educação ambiental, aqui e também com
ações em Fortaleza”, diz Gilson.
O que existe na Serra
das Almas é um modelo integrado de conservação da caatinga. “Foi sendo
desenvolvido ao longo dos anos e queremos que seja replicado em outras áreas e
unidades de conservação, porque nós temos resultados muito bons na interação
com a sociedade, com quem está ali perto para a proteção dessa área. Hoje,
muitas das pessoas dessas 40 comunidades já reconhecem a nossa unidade como um
dos principais parceiros delas. A interação que nós fazemos na questão de
transferência de tecnologia social está mudando a realidade dessas famílias”,
diz Gilson.
Uma das pessoas
beneficiadas pelas ações da reserva foi Benedito Pereira dos Santos, da
comunidade Cabaças. Hoje, aos 31 anos, trabalha lá como guarda-parque. “A
primeira vez que eu vim aqui foi aos dez anos, trazido pela minha mãe para uma
das atividades ambientais. A primeira coisa que notei foi o silêncio, a paz.
Vim muitas vezes depois e participei de formações de guia”, conta ele, que
aprendeu desde pequeno sobre a necessidade de conservar a natureza.
A educadora ambiental
Cássia Dias Lopes é a coordenadora de relacionamento comunitário da reserva.
“Para conservar a caatinga, precisamos ir além das porteiras da reserva. Para
manter a nossa mata nativa, bem como os animais e toda essa biodiversidade, o
componente humano é fundamental. É preciso entender para conservar. E conservar
também é não caçar. Para além de fazer campanhas com as famílias de que caçar é
ilegal, não é esporte, nem brincadeira, atuamos na multiplicação das
tecnologias sociais para também dar qualidade de vida para essas famílias”,
diz.
As tecnologias sociais
são as ferramentas que fazem com que a convivência da população com o semiárido
seja mais harmônica. São as cisternas, os fornos solares, o fogão ecoeficiente
que dispensa o uso de gás, o sistema de bioágua, que reusa a água das casas
para os quintais produtivos – métodos, técnicos e equipamentos que organizações
como a Rede Ater Nordeste de Agroecologia e a Articulação do Semiárido (ASA
Brasil) difundiram pelo Nordeste. “Tudo isso ajuda também na melhoria da
qualidade de vida das famílias, que passam a produzir alimentos e a economizar
com gás, água e eletricidade”, diz Cássia.
Ao entrar na casa das
pessoas para levar esses benefícios, a equipe da reserva entra também com a
conscientização contra a caça. “Há uma relação mais próxima, casa a casa, e uma
confiança para entender quais as necessidades das comunidades e o que podemos
fazer por elas”, afirma.
Para Gilson Miranda, é
importante apostar na educação ambiental dos jovens para o futuro da vida na
caatinga. “Somos a região semiárida mais populosa do mundo, com 28 milhões de
pessoas. A alteração no clima, com os processos de desertificação, pode trazer
inúmeros malefícios para cá. Temos que mostrar para os jovens daqui que esse é
um lugar rico e não um lugar para se ir embora. Acredito que não tem nada mais
rico do que você saber produzir o seu próprio alimento. Muitas vezes na cidade
as pessoas não sabem nem de onde vem a água, não sabem como é produzido os
alimentos. Seria interessante que cada um de nós, na escola, aprendesse a
produzir o próprio alimento”, diz Gilson.
COMO VISITAR A SERRA
DAS ALMAS
A Reserva Natural
Serra das Almas é uma área aberta para visitação. Como fica a uma hora de carro
da cidade de Cratéus, no Ceará, o melhor é mesmo se hospedar no alojamento da
própria reserva, que também conta com serviços de alimentação (café da manhã, almoço
e jantar). A entrada é pelo lado cearense, na zona rural de Crateús.
A reserva não tem fins
lucrativos, então os preços são bastante acessíveis. A entrada custa apenas R$
5 por pessoa – mas é necessário contratar um guia para as trilhas. A diária no
alojamento custa cerca de R$ 35 e a alimentação varia de R$ 15 (café da manhã)
a R$ 25 (almoço/jantar). Há preços menores para grupos de estudantes e
pesquisadores.
Há várias trilhas que
podem ser feitas na reserva, indo de apenas 500 metros – toda acessível para
cadeirantes e pessoas com baixa mobilidade – até trilhas para aventureiros
experientes. Todas com paisagens de tirar o fôlego, como lajedos, mirantes,
cascata, bica, um pequeno riacho.
Apesar de termos
citado vários animais nesta reportagem, não há garantias de que o visitante vai
ver algum animal silvestre nas trilhas. As chances, porém, não são baixas. A
reportagem da Marco Zero passou três dias na reserva e viu mocós, preás, tejus,
cobras e diversos pássaros. Na trilha das Arapucas, havia vestígios recentes de
um bando de catitus. De acordo com os funcionários da reserva, é mais fácil
avistar animais nos períodos de seca, quando eles se aventuram mais para
conseguir alimentos.
Para ficar no
alojamento, é preciso fazer o agendamento pelo menos quatro dias antes da ida.
Mais informações: https://www.acaatinga.org.br/serra-das-almas.
Fonte: Marco Zero
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