segunda-feira, 22 de julho de 2024

Nicolas Framont: Estamos testemunhando um golpe de Estado na França

No dia 7 de julho passado, as eleições legislativas antecipadas, convocadas com um mês de antecedência pelo presidente da República, terminavam-se com o seguinte resultado: a aliança de esquerda Novo Fronte Popular estava, para a surpresa geral, no topo, na frente da aliança presidencial de Emannuel Macron e do Reagrupamento Nacional com seus aliados de direita. Estes últimos vinham sendo apontados como favoritos desde o fim do primeiro turno das eleições, mas, graças à instalação de um cordão sanitário para reduzir a concorrência das duas primeiras forças quando elas estavam diante do RN, este último perdeu.

O cordão sanitário funcionou e nós estivemos à beira da chegada ao poder de um partido de extrema direita de ambições racistas e autoritárias. Mas, infelizmente, o regime atual, também autoritário desde há anos, usa desta configuração particular para…deletar o resultado das urnas e se manter no poder. Isso tem nome.

O governo perdeu, mas não sai do lugar e continua a governar. Desde que os macronistas perderam de maneira espetacular as eleições… nada acontece. O governo de Attal – membro do partido de Macron, Renascença, e primeiro-ministro desde 9 de janeiro deste ano – não tem mais a maioria na Assembleia Nacional e continua a governar por decreto – instrumento que permite aplicar medidas sem passar pelo processo legislativo normal no Parlamento.

Vários decretos ainda estão sendo emitidos, sobre a educação e a ecologia, seguindo as políticas macronistas em voga desde há sete anos. O ministro das Finanças Bruno Le Maire anuncia, como se nada estivesse acontecendo, novos cortes orçamentais nos serviços públicos. O Ministério do Trabalho, por sua vez, autorizou por decreto, quarta-feira passada, os viticultores a obrigar seus empregados sem dia de folga durante a vindima. Esta semana, tudo está ocorrendo como se o campo presidencial não tivesse perdido as eleições e como se pudesse, portanto, continuar a exercer o poder executivo.

Seria um mal-entendido, teríamos compreendido mal? Teríamos sonhado com estas eleições e com o seu resultado? É exatamente o que parece dizer-nos o presidente da República em uma carta destinada à população na quarta-feira, dia 10 de julho, e publicada na imprensa regional. Nesse texto alucinante, Macron começa por nos parabenizar pela nossa mobilização nestas eleições legislativas. Há razão para tanto, pois ninguém tinha participado de tal forma desse tipo de escrutínio desde 1981. Em seguida, ele anuncia que “ninguém ganhou”. Com efeito, ele nos diz, nenhuma força atingiu a maioria absoluta e todas são minoritárias na Assembleia Nacional. É verdade, efetivamente. Mas a última vez que algo assim ocorreu foi… há dois anos, quando seu próprio partido obteve somente uma maioria simples de 245 deputados. E não se ousou então dizer que “ninguém” tinha “ganhado”.

Do mesmo modo, sabemos que Jordan Bardella estava cotado como Primeiro-Ministro por Emmanuel Macron, mesmo em caso de maioria simples e não absoluta.

Com base nessa constatação – falsa e desonesta –, Emmanuel Macron anuncia em sua carta que esperará para poder nomear um primeiro-ministro e que este último, ordena, sairá da “frente republicana” que se constituiu para impedir a vitória do RN. “Peço ao conjunto das forças políticas que se reconhecem nas instituições republicanas, no Estado de Direito, no parlamentarismo, em uma orientação europeia e na defesa da independência francesa, que estabeleça um diálogo sincero e leal para edificar uma bancada majoritária sólida, necessariamente plural, para o país”.

·        Macron inventa novas regras para se manter no poder

Caímos na arapuca e, decididamente, o RN é o melhor plano de saúde do macronismo. O cordão sanitário que se construiu pelas desistências dos candidatos que tinham ficado em terceiro lugar, tudo para impedir a eleição de uma maioria de deputados RN, se transformou, na boca do presidente em “frente republicana”, a qual compartilharia valores comuns, dentre os quais “uma orientação europeia”, “as instituições republicanas”, “o parlamentarismo” … O sentido do nosso voto para barrar a extrema direita foi, portanto, completamente desviado e requalificado pelo Presidente.

Nós queríamos impedir que a extrema direita tomasse o poder, ele deduz daí que nós queremos preservar a ordem estabelecida e “uma orientação europeia”. Notemos que ele não incluiu na sua lista de valores a “democracia”. Já que é exatamente ela que ele está massacrando.

Não é a primeira reinterpretação da barragem contra o RN que faz Macron: nas duas vezes que foi eleito contra Marine Le Pen, ele transformou esse voto de rejeição à extrema direita em voto de adesão à sua pessoa e ao seu projeto. Mas a diferença em relação às manipulações anteriores do voto contra o RN ao seu favor é que, desta vez, o presidente se serve disso para anular o resultado de uma eleição e se conservar no poder. Na sua missiva, Macron não menciona uma só vez a esquerda ou o NFP. Ele faz de conta que a vitória não ocorreu e decide unilateralmente atribuí-la na verdade a essa “frente republicana” cuja lista de valores coloca seu próprio partido no centro do jogo.

É preciso apurar o que está acontecendo: o partido do presidente perdeu as eleições. Sem mecanismo de cordão sanitário anti-RN, ele teria elegido umas poucas dezenas de deputados, como as projeções decorrentes do primeiro turno o previam. Graças aos candidatos de esquerda que desistiram da candidatura em favor dos candidatos macronistas e aos eleitores de esquerda que votaram neles para barrar o caminho da extrema direita, seu partido se torna a segunda força na Assembleia Nacional. Segunda, mas não primeira.

A esquerda está na frente, independentemente do que se pode pensar, do que se pode dizer, e seja qual for a raiva por Mélenchon ou o medo do aumento do salário-mínimo e da tributação dos mais ricos: é a regra do jogo, é assim que são feitas nossas instituições.

Nenhuma regra na nossa Constituição diz que “se o grupo mais volumoso na Assembleia Nacional tem menos de 200 deputados, então ele não ganhou”. O presidente inventa novas regras para manter seu governo no poder e ganhar tempo, para esperar que uma nova maioria macronista se forme após a aliança da direita do Partido Socialista e da direita republicana. Macron está trapaceando, Macron está esperando que a confusão ganhe do resultado das urnas.

É evidente que a maioria conquistada pela esquerda é frágil, com 195 deputados. Sim, para aprovar leis, o governo que daí emergirá deverá compor com outras forças políticas. Mas, sim, um governo sem maioria pode governar: é exatamente a demonstração que está dando o governo de Attal, ao continuar neste momento tomando medidas por decreto!

·        Para a classe dominante, a esquerda não tem na verdade o direito de exercer o poder

Oque é fascinante, e é aí que vemos a arapuca funcionar, é que a esquerda foi tão demonizada durante estes últimos meses que a sua vitória pode até ser anulada sem que as mídias e uma parte da população falem de golpe de Estado. Tudo é feito como se fosse impossível e ilegal o acesso da esquerda em geral, e da França Insubmissa – a principal força política da esquerda francesa – em particular, ao poder. E, por extensão, como se fosse impossível e inaceitável a direção das nossas instituições por um governo que aumentará o salário-mínimo e a tributação sobre os mais ricos.

Infelizmente, a própria esquerda não ajuda a combater essa manobra quando ela não entra em acordo, até o momento em que escrevemos estas linhas, a respeito de nenhum nome de primeiro-ministro. Ademais, algumas das suas figuras, como Raphaël Glucksmann ou François Ruffin, continuam a acertar publicamente suas contas com seus aliados, em vez de fazer bloco e mostrar vontade de exercer o poder para mudar a vida das pessoas – ou pelo menos impedir que seus direitos sejam ainda mais degradados por uma coalizão macronista escolhida pelo presidente.

Glucksmann é eurodeputado e copresidente do partido Place Publique (Praça Pública); Ruffin é o deputado de esquerda que instigou a criação do NFP, mas que, entre os dois turnos, aderiu à opção do apaziguamento.

Temos a impressão de que vários componentes do NFP querem se abster de governar. Seria questão de um governo que, embora provisório, parece capaz de frear a destruição do nosso modelo social e de voltar atrás nas piores medidas do reino de Macron, a começar pela reforma da previdência – Apesar das proporções gigantescas que tomou o movimento popular contra a reforma da previdência, a macronia não recuou em nada de seu projeto de desmantelamento e privatização da previdência social.

Se esse governo não surgir, faço uma constatação que pode ser rude, mas será necessária: teremos votado, mas nosso voto não terá servido para nada, pois ele não se inscreve no destino que a classe dominante concebe para nós. Estava perfeitamente concebido pelo patronado, e pela grande imprensa, que o RN iria chegar ao poder. Era a sequência lógica, a história necessária para que o país continuasse seu caminho. A vitória da esquerda é uma anomalia profunda. Por conseguinte, a classe dominante e Emmanuel Macron estão tentando simplesmente deletá-la.

O que está acontecendo é um autogolpe de Estado: quando o poder vigente desvia as instituições e reduz ao nada a soberania popular para permanecer no lugar. É uma forma de golpe de Estado muito conhecida, que ocorreu na França quando o presidente da República Luís Bonaparte tomou o poder, de uma vez por todas, dando fim ao poder da Assembleia Nacional, em dezembro de 1851, e em se tornando imperador. O que está ocorrendo atualmente: Emmanuel Macron está pouco se lixando para o resultado das urnas e está retirando do grupo majoritário na Assembleia Nacional o direito de preparar um novo governo.

A situação lembra também o tratado europeu de 2005: os franceses tinham votado “não”, mas os sarkozystas ignoraram esse voto e o fizeram passar de outro modo, apenas alguns anos mais tarde, daquela vez sem consultar diretamente o povo. Parece até que na França, quando um voto não agrada, o poder arranja o resultado.

É um marco da nossa história: o presidente da República se aproveita da crise institucional que estamos vivendo para tomar o poder e manter o do seu governo. A reação mais viva, até então, foi a da secretária geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT) – maior central sindical do país, fundada em 1895 – Sophie Binet, que convocou um dia de mobilização em 18 de julho. É preciso que todas as pessoas que ainda creem na democracia – e que não estão prontas para engolir as mentiras do presidente e dos seus aliados – se juntem a essa mobilização. Os Jogos Olímpicos logo vão começar e a burguesia quer fazer deles a sua festa. Perante tudo o que o seu presidente nos inflige, acabemos logo com a sua.

 

¨      Macron está errado, a esquerda francesa venceu. Por Jean-Luc Mélenchon

Esperava-se que o segundo turno das eleições francesas produzissem uma vitória para o Rassemblement National, partido de extrema direita, de Marine Le Pen – mas o vencedor no final foi a Nova Frente Popular, coalizão de partidos de esquerda. Foi conquistado 182 cadeiras no parlamento, diante de 168 da coligação de Emmanuel Macron e 143 do partido e aliados de Le Pen.

Macron convocou eleições antecipadas em junho numa tentativa de “reorganização” – e acabou perdendo 77 assentos. No entanto, numa carta à imprensa francesa na quarta-feira, afirmou que “ninguém” ganhou. Ele procura agora manter os seus aliados no poder apesar da perda eleitoral, através de acordos com partidos mais pequenos de centro-esquerda e centro-direita.

Num artigo de opinião em seu blog, aqui traduzido para o português, o fundador da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, saudou a frente republicana que manteve a extrema direita afastada do poder, mas rechaça as tentativas do presidente de negar à Nova Frente Popular a oportunidade de se formar um governo.

Isso não é um evento como qualquer outro, e nenhum defensor da república pode minimizar nem o seu significado político, nem sua extrema gravidade. O presidente da República, em uma carta dirigida aos franceses, afirma que “ninguém ganhou as eleições”. Ele está errado. Todo mundo sabe disso. A Nova Frente Popular ficou em primeiro lugar nas eleições e cabe a ela formar o próximo governo.

Em todas as democracias do mundo, é assim que as eleições permitem designar o governo, com ou sem maioria absoluta na Assembleia Nacional, a Câmara dos Deputados da França. Essa é também a regra que Emmanuel Macron aplicou em 2022, quando nomeou um primeiro-ministro de uma coligação presidencial que ainda não tinha maioria absoluta na Assembleia Nacional. Aquela coalizão foi chamada de “maioria presidencial” apesar de não ser uma maioria de deputados. Desta vez, a coligação de partidos que apoia Emmanuel Macron ficou em segundo lugar. O presidente não pode recomendar que forme uma nova coligação antes de considerar o que está a acontecer com a coligação que, realmente, saiu vitoriosa. Agir como o presidente faz é, portanto, um golpe de Estado, um abuso de poder.

É também violência contra a própria Assembleia. Na verdade, Emmanuel Macron pede que a eleição da presidência da Assembleia defina os contornos de uma nova maioria governamental, independentemente do resultado da votação pelo sufrágio universal. Não é papel da eleição da presidência da Assembleia estabelecer os contornos de uma maioria governamental. Além disso, poderá o presidente da República ignorar que não se podem formar grupos parlamentares sem declarar se pertencem à maioria ou à oposição? É, portanto, impossível se a “maioria” do governo não for conhecida. Tudo isso é, portanto, assume um significado insuportável: o contido na frase na qual o presidente afirma que “ninguém ganhou”. Ele, portanto, nega o resultado da votação de domingo, 7 de julho. Quem poderia aceitar isso e endossar essa prevaricação? Isso não é tudo.

O presidente também viola o sentido político do que aconteceu entre os dois turnos das eleições legislativas. Porque faz da “frente republicana” uma aliança política que deveria produzir um governo ou uma maioria no parlamento. Não pode haver dúvida disso. A chamada “frente” não é uma aliança política. Nunca foi discutido. É até o seu significado profundo estar além dos partidos e das fronteiras partidárias para responder a um interesse comum maior. É um “cordão sanitário” contra a ascensão ao poder de um partido hostil ao caráter republicano do Estado como o Reagrupamento Nacional (RN), por todas as razões mil vezes expressas sobre o assunto. Quanto aos rebeldes, a decisão de retirar os nossos candidatos que ficaram em terceiro lugar, quando o RN ficou em primeiro lugar, foi tornada pública por mim às 20h15, sem qualquer tipo de negociação e sem qualquer pedido de indenização. Querer transformar uma decisão de “cordão sanitário” em uma aliança política é um abuso do poder político. Ele se junta aos que negam o resultado das eleições e a vitória da Nova Frente Popular. Os dois formam um todo inaceitável.

Portanto, a continuação das eleições de 7 de Julho, que garantiram a derrota do RN por meio da vitória da Nova Frente Popular, deve agora ser prolongada até a derrota do golpe político de Emmanuel Macron. Ele quer manter o poder que o voto francês lhe tirou. Não se pode aceitar este tipo de devolução do veto real imposto contra uma votação por sufrágio universal. Não se pode permitir o regresso de combinações indignas e de travessuras secretamente elaboradas que permitiriam impor-se por uma coligação diferente daquela designada pelo voto popular pelo sufrágio universal! O que é inaceitável não é cabível. E isso deve ser traduzido na prática, até que o presidente respeite a decisão do sufrágio universal.

 

Fonte: Jacobin Brasil

 

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