Nicolas Framont: Estamos testemunhando um
golpe de Estado na França
No dia 7 de julho
passado, as eleições legislativas antecipadas, convocadas com um mês de
antecedência pelo presidente da República, terminavam-se com o seguinte
resultado: a aliança de esquerda Novo Fronte Popular estava, para a surpresa
geral, no topo, na frente da aliança presidencial de Emannuel Macron e do
Reagrupamento Nacional com seus aliados de direita. Estes últimos vinham sendo
apontados como favoritos desde o fim do primeiro turno das eleições, mas,
graças à instalação de um cordão sanitário para reduzir a concorrência das duas
primeiras forças quando elas estavam diante do RN, este último perdeu.
O cordão sanitário
funcionou e nós estivemos à beira da chegada ao poder de um partido de extrema
direita de ambições racistas e autoritárias. Mas, infelizmente, o regime atual,
também autoritário desde há anos, usa desta configuração particular para…deletar
o resultado das urnas e se manter no poder. Isso tem nome.
O governo perdeu, mas
não sai do lugar e continua a governar. Desde que os macronistas perderam de
maneira espetacular as eleições… nada acontece. O governo de Attal – membro do
partido de Macron, Renascença, e primeiro-ministro desde 9 de janeiro deste ano
– não tem mais a maioria na Assembleia Nacional e continua a governar por
decreto – instrumento que permite aplicar medidas sem passar pelo processo
legislativo normal no Parlamento.
Vários decretos ainda
estão sendo emitidos, sobre a educação e a ecologia, seguindo as políticas
macronistas em voga desde há sete anos. O ministro das Finanças Bruno
Le Maire anuncia, como se nada estivesse acontecendo, novos cortes
orçamentais nos serviços públicos. O Ministério do Trabalho, por sua vez,
autorizou por decreto, quarta-feira passada, os viticultores a obrigar seus
empregados sem dia de folga durante a vindima. Esta semana, tudo está ocorrendo
como se o campo presidencial não tivesse perdido as eleições e como se pudesse,
portanto, continuar a exercer o poder executivo.
Seria um
mal-entendido, teríamos compreendido mal? Teríamos sonhado com estas eleições e
com o seu resultado? É exatamente o que parece dizer-nos o presidente da
República em uma carta destinada à população na quarta-feira, dia 10 de
julho, e publicada na imprensa regional. Nesse texto alucinante, Macron começa
por nos parabenizar pela nossa mobilização nestas eleições legislativas. Há
razão para tanto, pois ninguém tinha participado de tal forma desse tipo de
escrutínio desde 1981. Em seguida, ele anuncia que “ninguém ganhou”. Com
efeito, ele nos diz, nenhuma força atingiu a maioria absoluta e todas são
minoritárias na Assembleia Nacional. É verdade, efetivamente. Mas a última vez
que algo assim ocorreu foi… há dois anos, quando seu próprio partido obteve
somente uma maioria simples de 245 deputados. E não se ousou então dizer
que “ninguém” tinha “ganhado”.
Do mesmo modo, sabemos
que Jordan
Bardella estava cotado como Primeiro-Ministro
por Emmanuel Macron, mesmo em caso de maioria simples e não absoluta.
Com base nessa
constatação – falsa e desonesta –, Emmanuel Macron anuncia em sua carta que
esperará para poder nomear um primeiro-ministro e que este último, ordena,
sairá da “frente republicana” que se constituiu para impedir a vitória do RN.
“Peço ao conjunto das forças políticas que se reconhecem nas instituições
republicanas, no Estado de Direito, no parlamentarismo, em uma orientação
europeia e na defesa da independência francesa, que estabeleça um diálogo
sincero e leal para edificar uma bancada majoritária sólida, necessariamente
plural, para o país”.
·
Macron inventa novas
regras para se manter no poder
Caímos na arapuca e,
decididamente, o RN é o melhor plano de saúde do macronismo. O cordão sanitário
que se construiu pelas desistências dos candidatos que tinham ficado em
terceiro lugar, tudo para impedir a eleição de uma maioria de deputados RN, se
transformou, na boca do presidente em “frente republicana”, a qual
compartilharia valores comuns, dentre os quais “uma orientação europeia”, “as
instituições republicanas”, “o parlamentarismo” … O sentido do nosso voto para
barrar a extrema direita foi, portanto, completamente desviado e requalificado
pelo Presidente.
Nós queríamos impedir
que a extrema direita tomasse o poder, ele deduz daí que nós queremos preservar
a ordem estabelecida e “uma orientação europeia”. Notemos que ele não incluiu
na sua lista de valores a “democracia”. Já que é exatamente ela que ele está
massacrando.
Não é a primeira
reinterpretação da barragem contra o RN que faz Macron: nas duas vezes que foi
eleito contra Marine Le Pen, ele transformou esse voto de rejeição à
extrema direita em voto de adesão à sua pessoa e ao seu projeto. Mas a
diferença em relação às manipulações anteriores do voto contra o RN ao seu
favor é que, desta vez, o presidente se serve disso para anular o resultado de
uma eleição e se conservar no poder. Na sua missiva, Macron não menciona uma só
vez a esquerda ou o NFP. Ele faz de conta que a vitória não ocorreu e decide
unilateralmente atribuí-la na verdade a essa “frente republicana” cuja lista de
valores coloca seu próprio partido no centro do jogo.
É preciso apurar o que
está acontecendo: o partido do presidente perdeu as eleições. Sem mecanismo de
cordão sanitário anti-RN, ele teria elegido umas poucas dezenas de deputados,
como as projeções decorrentes do primeiro turno o previam. Graças aos candidatos
de esquerda que desistiram da candidatura em favor dos candidatos macronistas e
aos eleitores de esquerda que votaram neles para barrar o caminho da extrema
direita, seu partido se torna a segunda força na Assembleia Nacional. Segunda,
mas não primeira.
A esquerda está na
frente, independentemente do que se pode pensar, do que se pode dizer, e seja
qual for a raiva por Mélenchon ou o medo do aumento do salário-mínimo e da
tributação dos mais ricos: é a regra do jogo, é assim que são feitas nossas
instituições.
Nenhuma regra na nossa
Constituição diz que “se o grupo mais volumoso na Assembleia Nacional tem menos
de 200 deputados, então ele não ganhou”. O presidente inventa novas regras
para manter seu governo no poder e ganhar tempo, para esperar que uma nova
maioria macronista se forme após a aliança da direita do Partido Socialista e
da direita republicana. Macron está trapaceando, Macron está esperando que a
confusão ganhe do resultado das urnas.
É evidente que a
maioria conquistada pela esquerda é frágil, com 195 deputados. Sim, para
aprovar leis, o governo que daí emergirá deverá compor com outras forças
políticas. Mas, sim, um governo sem maioria pode governar: é exatamente a
demonstração que está dando o governo de Attal, ao continuar neste momento
tomando medidas por decreto!
·
Para a classe
dominante, a esquerda não tem na verdade o direito de exercer o poder
Oque é fascinante, e é
aí que vemos a arapuca funcionar, é que a esquerda foi tão demonizada durante
estes últimos meses que a sua vitória pode até ser anulada sem que as mídias e
uma parte da população falem de golpe de Estado. Tudo é feito como se fosse
impossível e ilegal o acesso da esquerda em geral, e da França Insubmissa – a
principal força política da esquerda francesa – em particular, ao poder. E, por
extensão, como se fosse impossível e inaceitável a direção das nossas
instituições por um governo que aumentará o salário-mínimo e a tributação sobre
os mais ricos.
Infelizmente, a
própria esquerda não ajuda a combater essa manobra quando ela não entra em
acordo, até o momento em que escrevemos estas linhas, a respeito de nenhum nome
de primeiro-ministro. Ademais, algumas das suas figuras, como Raphaël
Glucksmann ou François Ruffin, continuam a acertar publicamente suas contas com
seus aliados, em vez de fazer bloco e mostrar vontade de exercer o poder para
mudar a vida das pessoas – ou pelo menos impedir que seus direitos sejam ainda
mais degradados por uma coalizão macronista escolhida pelo presidente.
Glucksmann é
eurodeputado e copresidente do partido Place Publique (Praça
Pública); Ruffin é o deputado de esquerda que instigou a criação do NFP, mas
que, entre os dois turnos, aderiu à opção do apaziguamento.
Temos a impressão de
que vários componentes do NFP querem se abster de governar. Seria questão de um
governo que, embora provisório, parece capaz de frear a destruição do nosso
modelo social e de voltar atrás nas piores medidas do reino de Macron, a começar
pela reforma da previdência – Apesar das proporções gigantescas que tomou o
movimento popular contra a reforma da previdência, a macronia não recuou em
nada de seu projeto de desmantelamento e privatização da previdência social.
Se esse governo não
surgir, faço uma constatação que pode ser rude, mas será necessária: teremos
votado, mas nosso voto não terá servido para nada, pois ele não se inscreve no
destino que a classe dominante concebe para nós. Estava perfeitamente concebido
pelo patronado, e pela grande imprensa, que o RN iria chegar ao poder. Era a
sequência lógica, a história necessária para que o país continuasse seu
caminho. A vitória da esquerda é uma anomalia profunda. Por conseguinte, a
classe dominante e Emmanuel Macron estão tentando simplesmente deletá-la.
O que está acontecendo
é um autogolpe de Estado: quando o poder vigente desvia as instituições e reduz
ao nada a soberania popular para permanecer no lugar. É uma forma de golpe de
Estado muito conhecida, que ocorreu na França quando o presidente da República
Luís Bonaparte tomou o poder, de uma vez por todas, dando fim ao poder da
Assembleia Nacional, em dezembro de 1851, e em se tornando imperador. O
que está ocorrendo atualmente: Emmanuel Macron está pouco se lixando para o
resultado das urnas e está retirando do grupo majoritário na Assembleia
Nacional o direito de preparar um novo governo.
A situação lembra
também o tratado europeu de 2005: os franceses tinham votado “não”, mas os
sarkozystas ignoraram esse voto e o fizeram passar de outro modo, apenas alguns
anos mais tarde, daquela vez sem consultar diretamente o povo. Parece até que
na França, quando um voto não agrada, o poder arranja o resultado.
É um marco da nossa
história: o presidente da República se aproveita da crise institucional que
estamos vivendo para tomar o poder e manter o do seu governo. A reação mais
viva, até então, foi a da secretária geral da Confederação Geral do Trabalho
(CGT) – maior central sindical do país, fundada em 1895 – Sophie Binet, que
convocou um dia de mobilização em 18 de julho. É preciso que todas as
pessoas que ainda creem na democracia – e que não estão prontas para engolir as
mentiras do presidente e dos seus aliados – se juntem a essa mobilização. Os
Jogos Olímpicos logo vão começar e a burguesia quer fazer deles a sua festa.
Perante tudo o que o seu presidente nos inflige, acabemos logo com a sua.
¨ Macron está errado, a esquerda francesa venceu. Por Jean-Luc
Mélenchon
Esperava-se que o
segundo turno das eleições francesas produzissem uma vitória para o
Rassemblement National, partido de extrema direita, de Marine Le Pen – mas
o vencedor no final foi a Nova Frente Popular, coalizão de partidos de esquerda. Foi conquistado 182 cadeiras
no parlamento, diante de 168 da coligação de Emmanuel Macron e 143 do partido e
aliados de Le Pen.
Macron convocou
eleições antecipadas em junho numa tentativa de “reorganização” – e acabou
perdendo 77 assentos. No entanto, numa carta à imprensa francesa na
quarta-feira, afirmou que “ninguém” ganhou. Ele procura agora manter os seus
aliados no poder apesar da perda eleitoral, através de acordos com partidos
mais pequenos de centro-esquerda e centro-direita.
Num artigo de opinião
em seu blog, aqui traduzido para o português, o fundador da França Insubmissa,
Jean-Luc Mélenchon, saudou a frente republicana que manteve a extrema direita
afastada do poder, mas rechaça as tentativas do presidente de negar à Nova Frente
Popular a oportunidade de se formar um governo.
Isso não é um evento
como qualquer outro, e nenhum defensor da república pode minimizar nem o seu
significado político, nem sua extrema gravidade. O presidente da República, em
uma carta dirigida aos franceses, afirma que “ninguém ganhou as eleições”. Ele
está errado. Todo mundo sabe disso. A Nova Frente Popular ficou em primeiro
lugar nas eleições e cabe a ela formar o próximo governo.
Em todas as
democracias do mundo, é assim que as eleições permitem designar o governo, com
ou sem maioria absoluta na Assembleia Nacional, a Câmara dos Deputados da
França. Essa é também a regra que Emmanuel Macron aplicou em 2022, quando
nomeou um primeiro-ministro de uma coligação presidencial que ainda não tinha
maioria absoluta na Assembleia Nacional. Aquela coalizão foi chamada de
“maioria presidencial” apesar de não ser uma maioria de deputados. Desta vez, a
coligação de partidos que apoia Emmanuel Macron ficou em segundo lugar. O
presidente não pode recomendar que forme uma nova coligação antes de considerar
o que está a acontecer com a coligação que, realmente, saiu vitoriosa. Agir
como o presidente faz é, portanto, um golpe de Estado, um abuso de poder.
É também violência
contra a própria Assembleia. Na verdade, Emmanuel Macron pede que a eleição da
presidência da Assembleia defina os contornos de uma nova maioria
governamental, independentemente do resultado da votação pelo sufrágio
universal. Não é papel da eleição da presidência da Assembleia estabelecer os
contornos de uma maioria governamental. Além disso, poderá o presidente da
República ignorar que não se podem formar grupos parlamentares sem declarar se
pertencem à maioria ou à oposição? É, portanto, impossível se a “maioria” do
governo não for conhecida. Tudo isso é, portanto, assume um significado
insuportável: o contido na frase na qual o presidente afirma que “ninguém
ganhou”. Ele, portanto, nega o resultado da votação de domingo, 7 de julho. Quem
poderia aceitar isso e endossar essa prevaricação? Isso não é tudo.
O presidente também
viola o sentido político do que aconteceu entre os dois turnos das eleições
legislativas. Porque faz da “frente republicana” uma aliança política que
deveria produzir um governo ou uma maioria no parlamento. Não pode haver dúvida
disso. A chamada “frente” não é uma aliança política. Nunca foi discutido. É
até o seu significado profundo estar além dos partidos e das fronteiras
partidárias para responder a um interesse comum maior. É um “cordão sanitário”
contra a ascensão ao poder de um partido hostil ao caráter republicano do
Estado como o Reagrupamento Nacional (RN), por todas as razões mil vezes
expressas sobre o assunto. Quanto aos rebeldes, a decisão de retirar os nossos
candidatos que ficaram em terceiro lugar, quando o RN ficou em primeiro lugar,
foi tornada pública por mim às 20h15, sem qualquer tipo de negociação e sem
qualquer pedido de indenização. Querer transformar uma decisão de “cordão
sanitário” em uma aliança política é um abuso do poder político. Ele se junta
aos que negam o resultado das eleições e a vitória da Nova Frente Popular. Os
dois formam um todo inaceitável.
Portanto, a
continuação das eleições de 7 de Julho, que garantiram a derrota do RN por meio
da vitória da Nova Frente Popular, deve agora ser prolongada até a derrota do
golpe político de Emmanuel Macron. Ele quer manter o poder que o voto francês
lhe tirou. Não se pode aceitar este tipo de devolução do veto real imposto
contra uma votação por sufrágio universal. Não se pode permitir o regresso de
combinações indignas e de travessuras secretamente elaboradas que permitiriam
impor-se por uma coligação diferente daquela designada pelo voto popular pelo
sufrágio universal! O que é inaceitável não é cabível. E isso deve ser
traduzido na prática, até que o presidente respeite a decisão do sufrágio
universal.
Fonte: Jacobin Brasil
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