quarta-feira, 3 de julho de 2024

Patrícia Kalil: ‘Do garimpo à agrofloresta’

Aos 58 anos, seu Adamor Santos cuida de 80 hectares de floresta viva com centenas de árvores de andiroba, cumaru, copaíba, cupuaçu, cacau, graviola, coco, consorciados com pimenta-do-reino, maracujá, girassol, gergelim e outros alimentos típicos da Amazônia. Ele é um agroflorestor e uma liderança na comunidade de Samaúma, no Assentamento Tapera Velha.  Em 30 de novembro do ano passado, inaugurou a Agroindústria Samaúma Produtos Naturais, que tem como foco a produção e comercialização dos óleos florestais de andiroba, cumaru, copaíba e graviola prensados a frio, além de produzir manteiga de cupuaçu e de cacau de altíssima qualidade. Todos os seus produtos são analisados no Laboratório de Óleos da Amazônia e certificados.

Como agroflorestor, seu Adamor contou com apoio de alguns professores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e profissionais da Emater/PA. Se hoje ele é um cuidador de árvores que coleta frutos maduros e extrai óleos das sementes, seu caminho para chegar aqui foi cheio de reviravoltas. Os tropeços fizeram com que ele compreendesse que sua vocação era plantar árvores e atuar em defesa da floresta em pé.

•           Anos de garimpo

De família pobre, filho de agricultores, ainda adolescente saiu de casa e foi ganhar a vida no sul do Pará, no garimpo. Foi um período de dificuldades, questionamentos e solidão. “Naquela época, o colono trabalhava muito e morria pobre. Meus pais plantavam arroz e vendiam um caminhão cheio para a usina a troco de muito pouco. Eles mal conseguiam garantir uma condição mínima para a gente”. Foi por isso que, aos 15 anos, ele largou o campo e foi atrás de sua irmã no garimpo.

Aos 22 anos, retornou brevemente para Santarém para rever a família. Conheceu Ivani e os dois se apaixonaram. Casaram-se e logo tiveram o primeiro filho, Jonatas, hoje com 30 anos. Preocupado com a falta de recursos para manter a família, decidiu passar mais uma temporada no garimpo, o que não foi nada fácil. Entre idas para trabalhar e vindas para matar a saudade, tiveram mais dois filhos, Girard, 28 anos, e Jean, hoje com 26.

Foram mais 15 anos vendo de perto seus amigos ganharem e perderem tudo, pegando malária, hepatite, entre outros infortúnios da vida de garimpeiro. Adamor seguia sem entender o sentido de tudo aquilo. Um dia, resolveu largar definitivamente o garimpo e retornar para casa, queria recomeçar do zero na terra onde nasceu. Já na região de Santarém, encontrou um antigo amigo, o Neguinho. Convidou-o para a aventura de caminhar na mata até chegar à lendária terra conhecida por Samaúma. Os dois embrenharam-se na floresta e andaram o dia todo, cerca de 18km. Depararam-se com uma floresta nativa intacta, repleta de vida e com um igarapé lindo. Soube logo que chegou que ali faria seu futuro. Foi assim que, em 1998, seu Adamor dava início a sua nova jornada.

Enquanto dona Ivani e seus filhos moravam em uma casinha simples no bairro da Conquista, em Santarém, seu Adamor ficou cinco anos morando embaixo de uma barraca de lona em Samaúma. Ficava meses sem falar com ninguém, aprendendo a viver com água de embaúba e de cipó de fogo que, diz ele,  “o cipó produz 18 litros de água durante o dia e 18 litros durante a noite”. Mas é uma água travosa demais, para cozinhar e beber ele coletava e reservava água da chuva. “O igarapé era muito distante. Eu comia frutas, raízes e muita farinha de piracuí que trazia de Santarém”, conta. Com o tempo, começou a conversar com a floresta. “Aprendi a sobreviver na mata. Fui entendendo a ciência da engenharia florestal sozinho, conhecendo e reconhecendo as árvores. Cheguei a plantar 5.000 pés de andiroba”, conta.

A luta pela proteção dessa área florestal foi mera consequência. Ele explicava às famílias nativas que não valia a pena vender a terra para forasteiros, mas sim cuidar da floresta e viver de seus frutos. “Imagina, quando cheguei por aqui eram 63 famílias na comunidade do Lírio do Vale, hoje só restam 10 famílias. Os outros venderam suas terras para sojeiros.”

•           Fundação da comunidade de Samaúma

Seu Adamor começou a frequentar reuniões de assentamento nas comunidades de Nova Aliança e Lírio do Vale. Com apoio dos outros moradores, entrou para a diretoria do Asa Conto. Ele esteve à frente da associação por sete anos quando lutou pela chegada de eletricidade, pela construção do ramal do Pilão —ligando Samaúma à comunidade Boa Esperança, que em outros 18km desemboca na via principal Curuá-una que em outros 42km chega em Santarém. Ele também lutou pela construção de uma escola de ensino básico para as 30 famílias que moram naquelas comunidades.

Entre 2001 e 2005, sofreu um acidente e ficou sem conseguir andar. Nessa época, teve que deixar o plantio em Samaúma e foi morar com dona Ivani e seus filhos em Santarém. Reuniu todas as suas forças para lutar pela abertura de um ramal com Ministério Público, o que facilitaria o trânsito dos moradores da comunidade até a cidade.

No mesmo período, brigava na prefeitura pela oferta de ensino fundamental para as crianças, para poder levar sua família toda para Samaúma. Assim que a estrada foi construída, mudou-se para lá com todos, em uma casa de madeira. Preocupado com as crianças da comunidade, projetou e construiu uma sala de aula e fez a prefeitura cumprir seu papel de garantir acesso à educação para seus filhos. “Eu ia à SEMED todo santo dia reclamar”. Em 2006, finalmente, a prefeitura assumiu a escola e dona Ivani foi contratada como professora.

Ele e sua família estavam inconformados com o que viam acontecer na comunidade vizinha. Lírio do Vale estava se transformando em um grande campo de soja. Mobilizou todos os moradores pela luta no INCRA para legalizar a comunidade, com apoio da Emater e da advocacia da prefeitura. Em 2009, veio a conquista: Samaúma tinha sido reconhecida pelo governo.

Nos dez anos seguintes, seu Adamor lutou pela chegada de eletricidade e para a criação de uma fábrica de polpa de frutas. Em 2012, com apoio do Fundo Amazônia, a associação de moradores conseguiu construir uma casa para despolpar o cupuaçu.

•           Agroindústria Samaúma Produtos Naturais

Há anos, a família de seu Adamor transformou-se na principal fornecedora de óleos florestais para os vendedores do Mercado Municipal de Santarém. Vendiam litros e litros de óleo de andiroba, cumaru, copaíba para os comerciantes locais. No entanto, ele sonhava em se profissionalizar mais. Se criar uma bioindústria do zero não é fácil, seu Adamor cativou muitos amigos durante sua luta pela comunidade de Samaúma.

Uma pesquisadora de rosas-do-deserto da Fazenda Experimental da UFOPA resolveu conhecer o produtor de óleos. Logo, fez amizade com Adamor e foi estimulando-o a buscar informações sobre uma prensadora de sementes para extrair óleo a frio. Na sequência, três outros professores da UFOPA, dois mestres em Ciências de Florestas Tropicais, o professor Everton Cristo de Almeida e a colega Daniela Pauletto, ao lado do professor doutor em Ciência Florestal Rafael Rodé, criaram um convênio de dois anos para que os estudantes do Instituto de Biodiversidade e Florestas pudessem estagiar e aprender na comunidade.

Em 2019, ele finalmente conseguiu comprar a máquina que precisava. Uma empresa paulista, a Scott Tech, parcelou o investimento. Adamor estava com receio de assumir tamanha dívida. Foi que então começou a pandemia de covid-19 e “todos queriam comprar óleo de andiroba, virou uma febre. Foi assim que eu pude pagar a máquina com facilidade”, lembra. Na sequência, comprou o compressor e o filtro.

Nesse momento, o professor Everton ajudou seu Adamor a enviar os óleos produzidos para análise laboratorial e a criar rótulos e a embalagem de seus produtos, exigências para a profissionalização do negócio. A Samaúma Agroindústria ganhava corpo. Inaugurada no fim do ano passado, hoje a Samaúma está com uma produção de 900 litros de andiroba prontos para vender. O óleo é de extrema qualidade, com odor amendoado, prensado à frio, preservando propriedades curativas das plantas.

Mensagens da linha de frente

Para seu Adamor, o governo precisa apoiar as pessoas que realmente estão mantendo a floresta em pé, plantando, produzindo e vivendo embaixo dela. “Vejo terceiros receberem o dinheiro, mas nunca chega aos moradores que estão realmente plantando. Uma vez, o Lírio do Vale, nessa promessa de terceiros, plantou doze mil árvores, mas nunca recebeu por isso. Isso é muito desanimador”.

Ele reclama que muitas vezes os recursos são dados para intermediários, que escrevem projetos, e que os verdadeiros guardiões dependem desses contatos para conseguir apoios.

 

•           APOIO À AGRICULTURA FAMILIAR E CAMPONESA NO BRASIL: Resgatar o Pronaf

A agricultura familiar e camponesa é vital para a produção de alimentos, a proteção da biodiversidade e o combate à fome no Brasil. Apesar de sua centralidade para a segurança alimentar e nutricional da população e o combate à crise climática, esse seguimento fundamental para a produção e a economia do campo brasileiro enfrenta desafios que limitam seu desenvolvimento. Dentre eles, ganha destaque o estreitamento das possibilidades que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) poderia oferecer ao desenvolvimento socioeconômico da agricultura familiar e camponesa.

Durante a década de 1990, sob a pressão de organizações do campo – então oposição ao governo – ocorreu a criação do que o Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA, incidente na criação da política, rememora como “pronafinho”. Criado em 1995 com o objetivo de ampliar a capacidade produtiva e elevar a renda dos/as agricultores/as, o então “pronafinho” promovia, por meio do acesso ao crédito, a retirada das famílias de agricultores do endividamento. O programa ganhou corpo e relevância a partir dos anos 2000. A expansão e aprimoramento de suas linhas de crédito e assistência técnica o tornaram uma das principais políticas de acesso ao crédito direcionada para os pequenos agricultores.

Já com o status de uma política de governo, o Pronaf se tornou programa de crédito focal direcionado à agricultura familiar e camponesa do país. Uma política pública econômica de interesse social, direcionada para promover a ascensão social dos agricultores/as familiares e camponeses. Referência constante para a agricultura familiar brasileira, o programa encontra-se em fase de esgotamento, foi capturado pela lógica bancária e os interesses transnacionais que sempre o rondaram, representados pelo financiamento prioritário de commodities.

A finalidade do Pronaf tem sido construída longe do impulso para sua criação nos anos de 1990, foi desviado pela transferência de lucros para as indústrias de tratores e máquinas agrícolas, de agrotóxicos, adubos químicos e multinacionais de sementes transgênicas. Deslocada para o campo da financeirização da produção agrícola, a finalidade do programa foi recentrada na produção de commodities e na estruturação de grandes cadeias produtivas: soja, milho, trigo e pecuária, em vez do incentivo massivo à produção de alimentos saudáveis para a população e o desenvolvimento econômico da agricultura familiar brasileira.

Juntos, esses quatro produtos priorizados pelo Pronaf absorvem cerca de 90% dos recursos do programa, deixando um percentual insignificante para alimentos da cesta básica. Essa apropriação do crédito gera consequências que têm afetado o país duramente, tais como a diminuição das áreas plantadas de feijão, arroz, mandioca entre os anos de 2022 e 2023. A predominância das grandes cadeias produtivas em um programa para o desenvolvimento econômico e social da pequena agricultura familiar provoca a diminuição – e a exclusão – do acesso de famílias camponesas ao crédito.

Este é um desvio que possui duplo efeito: a diminuição da disponibilidade de alimentos saudáveis para a população, tanto do campo quanto da cidade e o desvio dos objetivos de criação do Pronaf com a reprodução da pobreza das famílias camponesas. Se não há a possiblidade de acesso ao crédito pela via do Estado, os/as camponeses/as ficam vulneráveis à exploração por parte de atravessadores que se aproveitam de uma necessidade da população.

Esse desvio pode ser evidenciado na distorção da equalização de juros. Atualmente, gasta-se mais com esta do que com investimentos em fomento, ou Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) para produção de alimentos saudáveis e regulação do mercado interno. Os números são tão explícitos que basta mencionar que na safra de 2023/2024 foram destinados mais de R$ 9 bilhões para a equalização. Números expressivos destinados ao fortalecimento das cadeias produtivas do “agronegocinho”, o mesmo que é integrado ao agronegócio e que se esforça para ser conhecido por não precisar do Estado.

Diante desse contexto, o Pronaf deve ser reconstruído a partir de sua proposta original: um programa desenvolvido e direcionado para o apoio e o financiamento da agricultura familiar e camponesa no Brasil, com desburocratização do acesso ao programa, juros zerados para a produção de alimentos básicos que compõe o prato brasileiro – feijão, arroz, mandioca e hortifrutigranjeiros –, permitindo, portanto, a diversificação da produção e o fomento de práticas agroecológicas que valorizem e preservem os saberes tradicionais e populares do manejo da terra e o convívio com a natureza.

Frente aos efeitos da crise climática, a necessidade de medidas estruturantes de combate à fome e ao desenvolvimento econômico do campo brasileiro, o país deve aproveitar a oportunidade de uma transição profunda em seus sistemas alimentares e promover uma agricultura de base agroecológica, atenta e cuidadosa do meio ambiente e, portanto, de nossas vidas, compreendendo a saúde enquanto fenômeno amplo e integrado, preservando assim, a humanidade e sua existência.

A recente emergência climática no Rio Grande do Sul e em outras regiões do país evidencia a necessidade da realização desta mudança. Eventos climáticos extremos são cada vez mais frequentes e intensos, impactam severamente a agricultura, as cidades e as possibilidades de sobrevivência da população.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estimou que as mudanças climáticas geram prejuízos de até 5% do PIB agrícola mundial. A agricultura convencional, estruturada a partir das grandes cadeias produtivas para a produção de commodities contribui significativamente para o desequilíbrio ecológico, exacerbando a crise climática. No Brasil, a Confederação Nacional dos Municípios calculou prejuízos de R$ 28 bilhões com a seca e as cheias de 2023, representando mais da metade do valor contratado no Pronaf para a safra 2022/2023.

O campesinato brasileiro enfrenta uma situação complexa, resultado do processo histórico de formação econômica e social do Brasil. No entanto, a resistência e a reprodução social das famílias camponesas têm sido maiores que os problemas enfrentados. Para superar os desafios e ir além da resistência, é fundamental compreender o cenário e buscar soluções inovadoras e sustentáveis. A inflação dos alimentos, a crise do arroz, a importação de feijão e a demanda por alimentos saudáveis evidenciam a necessidade de uma agricultura de baixo impacto ambiental e a centralidade que a agricultura familiar e camponesa deve adquirir na recriação de políticas públicas que permitam a reversão do cenário de esgotamento do Pronaf.

 

Fonte: Outras Palavras/Le Monde

 

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