quarta-feira, 3 de julho de 2024

Acordo que prevê custeio de tratamentos registrados na Anvisa, acende alerta a pacientes com doenças raras

O Supremo Tribunal Federal (STF) analisa o termo apresentado pelo Ministério da Saúde, junto ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), que propõe um acordo de judicialização da saúde com o objetivo de organizar a questão no país. A proposta busca separar as competências de municípios, estados e União no custeio de medicamentos não incorporados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).

Tratamentos com custo anual unitário igual ou superior a 210 salários mínimos, aproximadamente 300 mil reais, devem ser pagos pelo Governo Federal, de acordo com a proposta. Medicamentos abaixo desse piso e acima de 10 mil reais serão custeados 65% pela União e 35% pelos estados, que também ficam responsáveis por cobrir processos com valores de medicamentos abaixo de 10 mil reais. O termo estabelece como critério o registro Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Secretários estaduais e municipais deverão firmar acordo sobre essas responsabilidades em câmaras bipartites após aprovação do termo pelo STF, podendo dividir o custeio conforme a capacidade financeira e demanda de cada um deles. A ideia é desonerar principalmente municípios menores, com poucos recursos destinados à saúde.

No entanto, a proposta tem dividido opiniões. Secretários de saúde vem a proposta como positiva, com capacidade de organizar o sistema e fazer com que o Ministério da Saúde assuma a principal fatia dos custos. Por outro lado, entidades como a Confederação Nacional de Municípios (CNM) solicitam que o STF suspenda o acordo, por não ter participado das tratativas. Também há críticas em relação à necessidade de registro da Anvisa. Apesar de apontar que o STF já fixou tese que permite a judicialização e custeio de medicamentos não registrados no Brasil de forma excepcional, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) afirma, em nota, que “a Anvisa nem sempre consegue analisar os pedidos de registro com a celeridade necessária para que os pacientes recebam o tratamento a tempo de mudar o curso da doença”.

Para a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas), o entendimento do ministro Gilmar Mendes sobre o acordo precisa manter essa tese. “Se surge um medicamento hoje no Japão, por exemplo, para uma doença com incidência no Brasil menor que 20 habitantes, a empresa não vai vir para registrar esse único tratamento na Anvisa. Não compensa montar uma estrutura aqui”, afirma Antoine Daher, presidente da entidade.

O que o acordo de judicialização muda?

Não há consenso atualmente sobre quem paga a judicialização de medicamentos no âmbito do SUS. Os processos podem envolver municípios, estados e Governo Federal de acordo com o entendimento dos juízes, da unidade de saúde que o paciente busca acesso ao tratamento ou da região em que ele entra com o processo.

“Hoje o STF tem uma tese de que a responsabilidade é solidária. Então, paga o ente federativo que figura no polo passivo. Se o cidadão entrou contra o município, o município paga e pode com ação regressiva ou procedimentos administrativos reaver o recurso, se isso era da competência do estado ou União, por exemplo”, explica Fernando Aith, professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).

O acordo busca organizar as decisões, para que os processos sejam cobrados diretamente dos entes que são considerados responsáveis. Isso pode contribuir para que municípios não tenham seu orçamento gasto com a judicialização, principalmente aqueles com verba limitada para a saúde.

No entanto, Aith, que também é co-diretor científico do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP, alerta que é preciso ver como o STF irá incorporar o acordo à sua decisão. Isso porque o tribunal pode buscar construir uma súmula vinculante com os termos propostos, o que pode orientar todas as instâncias do país.

“Esse acordo é mais uma tentativa de qualificar as decisões judiciais no campo da saúde, torná-las mais racionais e tentando fazer com que a decisão tenha mais aderência à política pública”, observa o professor.

Aith observa que apesar da importância para os gestores públicos, há o risco do acordo trazer um impacto na celeridade dos processos, já que será necessário incorporar o Ministério da Saúde nas discussões, o que leva os casos para outra instância, à Justiça Federal. Consequentemente, pode afetar o prazo para acesso a medicamentos.

“A política pública no Brasil é falha. Muitas vezes o medicamento está na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e não está na ponta ou no serviço que se solicita. É um problema de gestão. O fato de chamar a União para junto dos processos pode tornar mais moroso e dificultar o acesso à Justiça ao cidadão”, explica o professor.

·        Estados e municípios

“De certa forma é mais uma maneira de buscar correção na histórica distorção entre os gastos em ações e serviços públicos de saúde feitos por estados e municípios, em relação aos gastos da União. Portanto, é de extrema importância o redimensionamento das responsabilidades pelo financiamento da judicialização sobre a União, reduzindo a pressão sobre os sistemas de saúde locais, já desfinanciados”, afirma Tânia Mara Coelho, secretária de estado da Saúde do Ceará e vice-presidente do Conass.

A gestora explica que o principal problema da judicialização é a utilização de recursos não previstos para o pagamento de tratamentos, em especial aqueles de alto custo. Com isso, há uma desorganização do sistema, já que é preciso realocar as verbas, o que pode, a longo prazo, inviabilizar serviços.

“Ao tempo que ações judiciais garantem o direito individual dos cidadãos, o cumprimento destas ações, na magnitude e frequência com que tem ocorrido, comprometem direta e significativamente o planejamento de ações de caráter coletivo pelos gestores – do que decorre um impacto direto na sustentabilidade do sistema público de saúde, tornando-o menos eficiente”, observa a vice-presidente do Conass.

Levantamento feito pela Instituto Cabem Mais Vidas, com informações obtidas na Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud), aponta que em 14% dos estados e 11% dos municípios brasileiros a judicialização pode empenhar entre 10% e 30% do orçamento da saúde.

“Há cidadãos buscando garantir o direito de acesso ao tratamento que muitas vezes deveriam estar acessíveis, e que precisam ir à Justiça. Em contrapartida há o volume da judicialização e o gasto aumentando absurdamente, o que traz riscos à sociedade. Grande parte dos recursos acabam indo por esse caminho, e não para uma política pública pensada”, explica Fernando Korkes, médico urologista, membro do Conselho Científico do Instituto Oncoguia e um dos responsáveis pelo levantamento.

Os municípios estão entre os entes federativos mais afetados. O levantamento do Instituto observou que cerca de 270 cidades do Brasil gastam entre 30% e 100% dos seus orçamentos da saúde com a judicialização. A busca por tratamentos não incorporados ao SUS está entre os principais motivos.

“Em São Bernardo do Campo, o gasto com medicamentos para todos os 800 mil habitantes é de 30 milhões de reais. O gasto com a judicialização é de quase 20 milhões de reais anualmente. Atualmente, esse valor é gasto com aproximadamente 400 ações, e ano a ano tem um acréscimo entre 10% e 15% com novos casos”, afirma Geraldo Reple Sobrinho, secretário municipal de Saúde de São Bernardo do Campo e presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems/SP).

Sobrinho explica que o ressarcimento de gastos judiciais de municípios com tratamentos que eram de competência de estados ou União ocorre em raras ocasiões. Mesmo pacientes que têm plano de saúde acabam entrando com processos contra o SUS, e os municípios não conseguem ressarcimento.

“A proposta para os municípios é muito boa. Hoje quando tem um caso de judicialização, como o juiz está na Comarca ele processa o município, que acaba tendo que pagar indenizações altíssimas. Na proposta, até um determinado valor fica com o Governo Federal, outra faixa com os estados e os municípios ficariam com processos com valores menores”, observa o presidente do Cosems/SP.

·        Pontos de atenção

Apesar de o Ministério da Saúde buscar um termo de acordo com estados e municípios, provocado pelo ministro Gilmar Mendes, Fernando Korkes, do Oncoguia, afirma que é preciso haver uma atenção às políticas públicas para além da judicialização. É o caso, por exemplo, da incorporação de tecnologias ao SUS.

“As análises de custo-efetividade que a Conitec faz não leva em consideração a judicialização. Os relatórios são super elaborados por gente competente que participa da Comissão, mas é uma conta inocente. Tem o outro lado para se pensar. Se a gente não aprovar esse tratamento, qual será o impacto orçamentário?”, observa o médico.

Ele explica que é preciso refletir sobre o diagnóstico tardio de doenças, em especial o câncer, e a falta de políticas públicas robustas de prevenção. Isso porque o investimento em tratamentos para estágios mais avançados da doença tendem a ser mais caros, sendo uma das áreas que as empresas farmacêuticas mais investem hoje.

“O câncer de próstata tem novos tratamentos que multiplicam por 10 vezes o valor do tratamento padrão utilizado. Hoje, para o câncer de bexiga, o custo do tratamento ao SUS é de cerca de 60 mil reais ao ano por paciente, mas já há tratamentos aprovados pela Anvisa que custam 1,3 milhão de reais ao ano, e existem casos de judicialização para acessá-los, no público e privado”, analisa Korkes.

Também há a preocupação sobre o acordo proposto em relação a pacientes com doenças raras. Em 2019, o STF estabeleceu a tese que é possível a concessão judicial de medicamentos sem registro sanitário no Brasil em casos excepcionais. Um desses casos seria o de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras, registrados em agências de renome no exterior, com o U.S. Food and Drug Administration (FDA) ou o European Medicines Agency (EMA).

“Estamos falando da exceção, porque tem muitas empresas que demoram para registrar porque querem ser judicializadas para vender pelo preço cheio. Não querem nacionalizar o preço. Não somos a favor desses casos. Somos a favor daqueles que o único tratamento que surgiu está registrado em um país com as agências reconhecidas, principalmente para doenças ultrarraras”, explica Antoine Daher, presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas).

Por isso, a entidade entrou como amicus curiae no processo do STF, para reforçar o pedido aos ministros que mantenham o entendimento, já que o acordo proposto pelo Ministério da Saúde fala apenas em custeio de medicamentos com registro na Anvisa. A entidade pretende levar dados para corroborar seu posicionamento.

“O paciente que nasce com doenças de depósitos, que agora foram contemplados com a ampliação do teste do pezinho e serão diagnosticados, cada dia que passa tem degeneração. É o caso da AME, por exemplo. Imagina startups pequenas, com poucos anos de vida, que desenvolveram moléculas inovadoras que podem ajudar o paciente. Vamos deixar esse paciente morrer porque o produto não pôde ser registrado aqui, mas tem a chancela do EMA e FDA?”, questiona Daher.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

Nenhum comentário: