Padre Cícero, admirado por Lampião e banido
pela Igreja, agora pode virar santo
Graças a uma guinada
na alta cúpula do Vaticano, o religioso brasileiro Cícero Romão Batista
(1844-1934), conhecido simplesmente como Padre Cícero ou Padim Ciço, pode se
tornar santo em breve.
Uma santidade, aliás,
já reconhecida pelo catolicismo popular, sobretudo do Nordeste brasileiro. Ali,
é comum que o sacerdote, que morreu há 90 anos, seja invocado em rezas e
promessas. Não raras vezes com o epíteto de “santo”. Santo Padre Cícero.
A reviravolta da Santa
Sé é curiosa porque Padre Cícero não só ainda não foi canonizado como, de
quebra, em vida foi banido pela própria Igreja.
Admirado por Virgulino
Ferreira da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, e por outros cangaceiros, o
religioso se tornou político — foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, no
Ceará —, era próximo dos coronéis que ali atuavam e tem uma biografia recheada
de controvérsias.
O que não impediu que
a fé popular o venerasse. Em Juazeiro há uma estátua de 30 metros em sua
homenagem, inaugurada em 1969. O local recebe 2,5 milhões de peregrinos por
ano.
“Falar de romarias na
Diocese de Crato e em Juazeiro do Norte é falar do querido padre Cícero Romão
Batista. Este sacerdote dinamizou a espiritualidade católica na região do
Cariri, sendo responsável pela espiritualidade de todo o povo nordestino até os
dias de hoje”, afirma o padre Aureliano Gondim, em nota publicada no site da
Diocese de Crato.
Para o pesquisador e
hagiólogo José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e
professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará, “há muita
incompreensão e distorção sobre a figura do Padre Cícero”.
“Ele não foi expulso
do sacerdócio. Por não aceitar testemunhar contra os fatos que presenciou em
Juazeiro, foi suspenso da ordem”, diz ele, à BBC News Brasil.
“Padre Cícero foi
suspenso das ordens sacerdotais, por causa do ‘milagre da hóstia’, que teria
sangrado na boca de uma beata. Tal fato foi questionado severamente pela
Igreja, que o proibiu de exercer seu ministério sacerdotal”, afirma à BBC News
Brasil o teólogo e escritor J. Alves, autor do livro ‘Os Santos de Cada Dia’.
Em entrevista à BBC
News Brasil, o antropólogo e sociólogo Joaquim Izidro do Nascimento Junior,
especialista em religiosidades populares e professor na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), atribui à trajetória de Padre Cícero as controvérsias que recaem
sobre ele.
“Um padre do nordeste
brasileiro, de uma Igreja católica do século 19, que acreditou na manifestação
de Jesus Cristo na boca de uma mulher pobre e negra e enfrentou a Igreja”,
ressalta ele, lembrando que o religioso “passou sua vida tentando o apoio e o reconhecimento
dessa manifestação, por parte da Igreja Católica” e “optou por se tornar
político para demonstrar influências e conseguir reverter sua suspensão na
própria Igreja”.
“São elementos que
reforçam um acontecimento único e controverso por si só”, analisa o
antropólogo. “O crescimento da cidade e, consequentemente, das peregrinações,
abriram um fosso entre uma trajetória de um padre sertanejo e uma Igreja romana
europeia, o que deu contornos dramáticos.”
• O suposto milagre
Em 1º de março de
1889, Padre Cícero era um homem prestes a completar 45 anos e já gozava de
experiência no sacerdócio — havia sido ordenado em 1870.
Popular pela eficaz e
contagiante oratória, ferramenta de inflamados sermões, e pelo trabalho
pastoral então inédito naquele carente sertão nordestino, ele celebrava missa
em Juazeiro.
Na hora da comunhão, a
hóstia recebida pela religiosa Maria de Araújo (1861-1914) alegadamente se
transformou em sangue — na boca da mulher. Na visão dos que acreditam: a prova
de que aquele pão é o corpo de Jesus.
Seria um milagre.
Cabem aqui parênteses
para explicar quem era essa mulher. Nascida do povoado de Tabuleiro Grande,
ficou órfã logo cedo e teve uma adolescência difícil, trabalhando no artesanato
e em uma olaria. Aos 22 anos, decidiu usar hábito como se fosse uma freira —
para o povo, ela acabou sendo reconhecida como uma beata.
Acabou sendo acolhida
pelo Padre Cícero, residindo em sua casa. De acordo com Gondim, o fato
milagroso se repetiria “por mais 138 vezes, num período de quase dois anos”.
O sacerdote enfatiza
que aquela missa do dia 1º de março exigiu preparação especial. Segundo ele,
antes “houve horas de oração e jejum por ocasião da quaresma” e da celebração
participavam “moças que viviam da caridade, auxiliando a catequese daquele povo”.
Estudiosa do fenômeno,
a historiadora e escritora Dia Nobre busca trazer o protagonismo de volta para
Maria de Araújo. “Não considero que ela participa do milagre. A partir dos
relatos [da época], ela é o próprio instrumento divino para a realização desses
fenômenos extraordinários na cidade de Juazeiro”, diz ela à BBC News Brasil.
No fim do mês, Nobre
lança o livro Incêndios da Alma, que traz a história dessa mulher e a
contextualiza dentro desse ambiente nordestino de catolicismo popular do fim do
século 19.
“Não eram somente a
transubstanciação das hóstias [a transformação delas em sangue], outros
fenômenos também aconteciam, como viagens espirituais, viagens ao purgatório,
profecias… Ela recebia estigmas da crucificação”, elenca a pesquisadora. “Ela e
outras mulheres se colocavam como protagonistas desses fenômenos, como
representantes do próprio Jesus na Terra, dispensando a mediação da Igreja, dos
padres. Isso foi uma afronta muito grande à hierarquia do próprio catolicismo.”
“As mulheres foram
protagonistas da transformação de Juazeiro em espaço sagrado”, ressalta ela.
Para Nascimento
Junior, “no século 19 não havia [na Igreja] nenhum espaço para o reconhecimento
de uma manifestação envolvendo a ‘presença’ do próprio Jesus Cristo na boca de
uma mulher pobre e negra”.
• Encrencas com a cúpula da Igreja
A repercussão do
suposto milagre, contudo, não caiu bem para o sacerdote responsável pela missa.
Quando a notícia se espalhou, formou-se uma comissão na diocese para investigar
o ocorrido — com a participação de dois médicos e um farmacêutico.
Em outubro de 1891, o
grupo apresentou um relatório alegando que não havia explicação natural para o
fenômeno.
Não satisfeito, o
então bispo do Ceará Joaquim José Vieira (1836-1917) nomeou outra comissão —
para alguns biógrafos, com integrantes “de cartas marcadas”. O novo relatório
concluiu que tudo não havia passado de embuste.
Padre Cícero foi
suspenso do sacerdócio, impedido de celebrar missas e de ministrar sacramentos.
A pena imputada a Maria de Araújo foi viver em clausura até o fim da vida.
O sacerdote chegou a
ir até o Vaticano para buscar uma absolvição diretamente com o papa Leão 13
(1810-1903). De acordo com Lira, seu banimento era restrito à diocese do Ceará
e, em qualquer outro local, “com a permissão do bispo, ele poderia exercer o sacerdócio”.
O pesquisador
reconhece que “boa parte das controvérsias” em torno de Padre Cícero têm origem
nesse episódio do suposto milagre. Ele argumenta que a primeira comissão, que
atestou o fato como fora das explicações naturais, contava com dois médicos e
um farmacêutico, além de dois religiosos. Já a segunda, constituída por
insatisfação do bispo, tinha apenas dois padres.
“Como essa era a
pretensão do bispo, ele aceitou o segundo e menos técnico parecer e decretou
que se Padre Cícero não negasse aqueles fatos ele estaria suspenso”, explica
Lira. “Foi o que ocorreu.”
“Padre Cícero ainda
tentou se explicar com o bispo. Não adiantou e ele foi a Roma e foi
reabilitado, mas a Igreja local, nos moldes do Direito Canônico da época, não
aceitou a reabilitação e Padre Cícero permaneceu suspenso.”
Lira ressalta que ele
esteve “suspenso, mas obediente”. “Aceitou a punição, embora injusta, e ficou
até o fim da vida usando sua batina sacerdotal e assistindo a missas como
leigo. É um grande exemplo”, afirma.
O pesquisador
argumenta que Cícero “teria prestígio para fundar um movimento religioso, mas
preferia orientar seus amigos — ele chamava a todos de ‘amiguinhos’ — a
seguirem as orientações do papa e da Igreja.”
“Apesar dessas
imposições da Santa Sé, ele continuou dando o seu testemunho de fé e de
pregação, colocando-se a serviço da comunidade e zelando de seus fiéis. Com o
passar do tempo, tornou-se respeitado e venerado ainda em vida por todos, sendo
aclamado, pelo povo, um santo vivo. São milhares de fiéis que a ele acorrem,
pedindo a sua intercessão e agradecendo pelas graças recebidas”, diz Alves.
Para o teólogo, Padre
Cícero representa “uma figura emblemática dessas idiossincrasias entre uma
postura dogmática da Igreja e a devoção popular”.
“Tudo isso cria uma
atmosfera fértil para polêmicas e controvérsias”, afirma.
“Além disso, o fato de
se envolver em questões de política local e sua relação com figuras como
cangaceiros e coronéis polariza a discussão tanto no campo dogmático quanto
sociopolítico e cultural.”
Filiado ao extinto
Partido Republicano Conservador (PRC), Padre Cícero foi o primeiro prefeito de
Juazeiro do Norte, em 1911, quando o povoado se tornou município independente.
Em 1926, ainda seria
eleito deputado federal — mas acabou não assumindo o cargo. Ele também chegou a
ser nomeado vice-presidente do Ceará, equivalente atual a vice-governador, mas
não exerceu a função.
Na década de 1910,
acabou sendo o artífice do acordo que ficou conhecido como “pacto dos
coronéis”, em que a elite da região se comprometeu a apoiar o governo estadual
cearense.
Conservador, ele
chegou a dar uma entrevista em 1931 em que afirmou que “o comunismo foi fundado
pelo demônio, Lúcifer é o seu nome e a disseminação de sua doutrina é a guerra
do diabo contra Deus”.
Em 1926, quando a
Coluna Prestes estava na região de Juazeiro e havia um esforço do governo
federal de combatê-la, muitas vezes arregimentando mercenários e cangaceiros,
Padre Cícero se encontrou com Lampião e outros 49 integrantes do seu bando.
Eram todos seus admiradores e devotos.
Conforme o jornalista
e escritor Lira Neto conta no livro Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão,
Padre Cícero carrega sobre suas costas o fato de que seus “detratores jogam
[sobre ele] a responsabilidade pela concessão da patente de capitão ao mais feroz
de todos os bandoleiros nordestinos”, Lampião, “em troca do compromisso para
que o ‘Rei dos Cangaceiros’ enfrentasse, em 1926, a célebre Coluna Prestes em
sua passagem pelo sertão”.
“Como indultar um
clérigo que, mesmo antes disso, em 1914, teria benzido rifles, punhais e
bacamartes, aparato bélico entregue à jagunçada para promover uma revolução
armada, uma sedição que envolveu saques violentos a várias cidades
interioranas, provocou a morte de centenas de inocentes e resultou na derrubada
de um governo legal?”, questiona Lira Neto. “Como redimir a penalidade de um
sacerdote que se transformou em líder político […] e arquitetou um pacto
histórico entre os poderosos coronéis do sertão?”
“O fato de ele ter
mantido relações com os cangaceiros é um ponto sensível, pois pode ser visto
tanto como uma tentativa de mediação e pacificação, quanto como um envolvimento
problemático”, comenta Alves. “É preciso avaliar esses aspectos de sua vida à luz
de seu impacto positivo na fé, na espiritualidade e na comunidade, sem ignorar
as complexidades históricas e sociais, devidamente situadas em seu contexto
vital.”
O pesquisador e
professor Lira tem uma opinião um pouco diferente. “Ele não foi político nem
amigo de cangaceiros. Mas recebia a políticos e autoridades que o buscavam, do
mesmo modo que recebia o sofrido homem do campo, a ele dando conforto
espiritual e até ajuda financeira, na medida de suas posses”, afirma.
O teólogo e escritor
Alves lembra que é preciso entender, “por exemplo, que o cangaço e o
coronelismo foram fenômenos históricos no Nordeste do Brasil”.
“O primeiro desafiava
a ordem estabelecida e o segundo detinha o poder econômico e político”, pontua.
“Há que considerar, também, que Padre Cícero viveu em uma região assolada por
secas severas, migração em massa, fome e miséria, falta de políticas públicas.”
“Foi nesse contexto
complexo, conflituoso e sofrido que viveu e exerceu a sua ação social e
pastoral, sua liderança religiosa e política, que consistia em mediar conflitos
e prover as necessidades de sua comunidade. Os sertanejos encontravam nele
esperança e apoio para a sua luta em busca de melhores condições de vida e
trabalho.”
Assim, Alves conclui
que se houve conivência ou manipulação, estes são pontos que permanecem
“sensíveis e controversos” na biografia de Padre Cícero.
• Devoção
Os destinos da beata
Maria de Araújo e de Padre Cícero seguiram rumos bem diferentes no decorrer do
século 20.
Personagem principal
dos milagres que acabaram sendo testemunhados e defendidos pelo sacerdote, ela
sofreu um processo de apagamento.
“Houve um deslocamento
da crença da beata para o padre”, explica Nobre. “É sabido que as primeiras
romarias, feitas a partir de 1889, tinham como destino a casa de Maria de
Araújo.”
Entretanto, com a
repressão do bispo frente a essa devoção popular e a condenação da beata ao
isolamento, Padre Cícero acabou herdando os holofotes.
“Minha hipótese é que,
para não sufocar o movimento das romarias, ele as transferiu para a Igreja de
Nossa Senhora das Dores, padroeira do povoado. E, a partir do envolvimento dele
na política, ele vai ganhando mais fama e se consolidando”, diz a historiadora.
“As romarias acabam
completamente deslocadas para a figura do Padre Cícero, provocando o
esquecimento total da beata Maria de Araújo”, afirma.
Quando Maria de Araújo
morreu, em 1914, um movimento de devotos começou a visitar seu túmulo. “Mas até
isso acabou sendo destruído pelo cônego, consolidando o apagamento social e
memorialístico da beata”, afirma Nobre.
A fama de Padre
Cícero, por outro lado, só aumentou. Após sua morte, em 1934, ele acabou sendo
praticamente canonizado pela fé popular.
Se o movimento em si
nunca teve a chancela oficial da Igreja, é verdade que ela acabou o abraçando
pastoralmente.
Padre Gondim escreve
que esses acontecimentos “serviram para fomentar as peregrinações à Juazeiro do
Norte”, permitindo “alavancar a vida do pequeno povoado, pois muitos vinham
mesmo para residir e estar perto do padrinho querido”.
Nas altas esferas do
Vaticano, a reabilitação de fato do outrora banido sacerdote só ocorreria de
fato no século 21. Em seu livro, o jornalista e escritor Lira Neto detalha
esses bastidores da fé.
Conforme apurou o
jornalista, em 2001 o então cardeal Joseph Ratzinger (1927-2022), que mais
tarde seria o papa Bento 16, redigiu uma carta “enviada em caráter reservado à
Nunciatura Apostólica do Brasil”.
Na época, Ratzinger
comandava a Congregação para a Doutrina da Fé, organização herdeira do Tribunal
da Inquisição. Tinha, portanto, o papel de ser o guardião da ortodoxia da
Igreja. Além disso, era visto como homem de confiança do então papa João Paulo
2º (1920-2005).
Nunciatura Apostólica
é uma espécie de embaixada do Vaticano, instalada nos países com os quais a
Igreja mantém relações. A missiva do alto prelado tinha como assunto o
espinhoso caso de Padre Cícero — nas palavras de Lira Neto, “um delicado tema”.
Mais especificamente,
Ratzinger tratava da “pertinência de uma possível reabilitação canônica” do
sacerdote brasileiro.
“Alguém que levou para
o túmulo o estigma de ter sido um proscrito da Igreja. Um clérigo julgado e
condenado como insubmisso, contra o qual os inquisidores da época decretaram a
pena de excomunhão. Um reverendo maldito, que a despeito disso continua a arrebanhar
milhões de peregrinos e devotos, incansáveis perpetuadores de sua memória”,
define o escritor.
Lira Neto comenta que,
certamente, o que mais motivava Ratzinger em seu empenho era o conhecimento de
que o santo popular brasileiro atraía uma multidão anual de cerca de 2,5
milhões de pessoas — nada desprezível em tempos de perda constante de fiéis pelo
mundo.
Em sua análise, negar
a devoção ao religioso nordestino significaria “negar o acolhimento pastoral a
toda uma preciosa legião de devotos”.
“Em Juazeiro, a
multidão compacta paga promessas, acende velas, renova a fé, faz novos pedidos
e invoca a proteção de seu guia espiritual”, diz ele, acrescentando que é
“difícil encontrar uma casa no sertão nordestino na qual não exista uma imagem
de padre Cícero”.
“Retratado sempre com
o cajado, o chapéu e a batina, ele parece onipresente entre os sertanejos”,
afirma o escritor.
O próprio Lira Neto
enfatiza que é certo que Ratzinger e a sua congregação tinham conhecimento das
“graves acusações históricas que recaem sobre o homem Cícero Romão Batista”.
“Elas não são poucas. Quando reunidas, constituem notórios obstáculos à ideia de
anistiar, post mortem, as penas que foram impostas ao padre, em vida, pelo
Tribunal do Santo Ofício”, ressalta.
“A primeira
incriminação que incide sobre Cícero é a de ter sido ele um mistificador, um
aproveitador das crenças do povo mais simples, um semeador de fanatismos. Homem
de ideias religiosas pouco ortodoxas, leitor de autores místicos, dado a ver
almas do outro mundo e defensor de milagres não endossados pelo Vaticano,
Cícero estaria mais próximo da superstição do que da fé, disseram dele os
muitos adversários que colecionou no meio do próprio clero”, detalha Lira Neto,
em seu livro.
“Decorre daí outra
incriminação, ainda mais incisiva: a de que nas vezes em que fora repreendido
por seus superiores eclesiásticos agira como um rebelde e caíra em
desobediência”, afirma ainda. Para o biógrafo, outro entrave seria suam
“discutida relação” com “jagunços e cangaceiros”.
Lira Neto comenta,
entretanto, que “não são poucos os que definem a eterna tempestade de
acusações” contra o padre “como frutos de inverdades históricas, interpretações
distorcidas e preconceitos elitistas”.
Alguns meses depois da
carta de Ratzinger chegar ao Brasil, um novo bispo assumiu a diocese de Crato,
o italiano Fernando Panico. Não foi coincidência. Panico se tornou um grande
defensor da causa do Padre Cícero. E, já em sua primeira missa como bispo daquela
diocese enfatizou que iria encorajar novos estudos sobre a trajetória do
controverso sacerdote.
Um discurso
completamente diferente daquele do seu antecessor, Newton Holanda Gurgel
(1923-2017), que costumava dizer que “Padre Cícero chegou a Juazeiro
missionário, tornou-se visionário e acabou milionário”.
Naquele mesmo ano de
2001, o bispo Panico foi até Roma e teve uma audiência privada com o então
cardeal Ratzinger. Conforme apurou Lira Neto, escutou do futuro papa “as
palavras que provavelmente já esperava ouvir”.
“O cardeal não só o
estimula a levar adiante os novos estudos sobre a polêmica trajetória de
Cícero, como também dá instruções detalhadas a respeito da forma de conduzir o
processo, de acordo com os rituais e procedimentos da Congregação”, escreve.
Ratzinger também
sugeriu uma nova postura da diocese cearense: a partir de então, era importante
incentivar a acolher as romarias a Juazeiro.
Em carta aos seus
diocesanos, no retorno ao Brasil, Panico declarou que “mais do que nunca é
necessário reconhecer as romarias de Juazeiro do Norte como uma profunda
experiência de Deus e legítima experiência de fé”.
Uma nova comissão de
estudos foi formada, reunindo especialistas em antropologia, história,
filosofia, teologia, psicologia e sociologia. Foram cinco anos de pesquisa para
um novo julgamento acerca da idoneidade do religioso.
O catatau produzido
por esse time foi entregue ao Vaticano em 30 de maio de 2006. Ratzinger já era
o papa Bento 16. No total, segundo Lira Neto, foram 11 “grossos volumes
encadernados em capa vermelha e identificados com letras gravadas em dourado”,
com “cópias de documentos religiosos e seculares, incluindo a vasta
correspondência trocada entre os protagonistas da história tumultuosa” do padre
brasileiro.
Além disso, a Santa Sé
recebeu 150 mil assinaturas de populares pedindo a reabilitação de Padre Cícero
e um abaixo-assinado de 253 bispos favoráveis à causa.
Na carta que
acompanhou esse material, o bispo Fernando Panico afirmou que estava suplicando
ao papa pela reabilitação canônica do personagem, “libertando-o de qualquer
sombra e resquício das acusações por ele sofridas”.
De lá para cá, o
processo avançou — foi adiante pelas mãos do sucessor de Bento 16, papa
Francisco, um notório defensor do acolhimento a manifestações populares de fé.
“Sua reconciliação com
a Igreja foi tardia”, diz Alves. “Foi somente em 2015 que a Igreja reconheceu a
importância pastoral de Padre Cícero e retirou a suspensão que pesava sobre
ele, possibilitando, desse modo, a abertura de seu processo de beatificação.”
O hagiólogo Lira
explica que, para abrir uma causa de beatificação e de canonização, é preciso
antes de um atestado de “nihil obstat” — ou seja, “nada obsta” — da Santa Sé.
A partir dessa
reabilitação de 2015, esse passo pode ser tomado. Em 2022, o atual bispo de
Crato, Magnus Henrique Lopes, apresentou ao papa Francisco um pedido de
abertura do processo de beatificação. “A resposta foi tornada pública em 20 de
agosto de 2022, por meio do anúncio do ‘nihil obstat’ datado de 24 de junho,
para dar início à causa”, afirma Lira.
“Como estudioso, posso
afirmar que a Igreja sinaliza para um estudo aprofundado da vida e das virtudes
que teria o Padre Cícero”, comenta ele. “Não vejo como uma revisão de
posicionamento, mas como uma abertura para a continuidade de um estudo sério
sobre aquele cristão que testemunhou Jesus em sua vida.”
Alves ressalta que as
perspectivas de que Padre Cícero se torne um santo oficialmente pela Igreja
“vão depender de vários fatores, incluindo a condução e conclusão bem-sucedida
do processo de beatificação e a confirmação de milagres atribuídos à sua intercessão”.
“A reabilitação de sua
imagem pela Igreja e a abertura do processo de beatificação são passos
importantes, mas o caminho para a canonização pode ser longo e complexo”,
avalia. “A devoção popular e a pressão da comunidade de fiéis certamente
desempenham um papel, mas a decisão final cabe ao Vaticano, que deve avaliar
todos os aspectos de sua vida e os milagres atribuídos a ele com rigor e
cautela.”
O antropólogo
Nascimento Junior acredita que as chances dessa santificação são “enormes”.
“Penso que será uma questão de tempo. Os novos homens da Igreja Católica
parecem estar muito interessados”, diz.
Fonte: BBC News Brasil
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