Em Brasília, a presença do agronegócio
O secular desejo da
oligarquia goiana para trazer a capital federal para o Centro-Oeste terminou
por se consumar na Brasília do século XXI,
• Uma metrópole tipicamente brasileira
A muito se disseminou
a imagem de Brasília como uma “Ilha da Fantasia” anódina, corrupta, vazia e
“sem esquinas”, o que ignora o fato da capital federal ser tão complexa e
multifacetada como qualquer metrópole brasileira do século XXI. Com quase três
milhões de habitantes, 35 regiões administrativas (um meio-termo entre bairros
e municípios), o cenário socioeconômico do Distrito Federal vai do Lago Sul,
com IDH similar ao da Noruega, até a maior favela do Brasil, o Sol Nascente,
com apenas 30 km de distância separando as duas regiões.
É um tema recorrente
na tradição crítica brasileira interpretar Brasília como símbolo do fracasso do
projeto desenvolvimentista administrado pelo estado brasilerio desde a Era
Vargas. Segundo, por exemplo, Roberto Schwarz, Brasília, “a realização mais sensacional
e abrangente do programa histórico das vanguardas artísticas incluía entre suas
virtualidades o servir de álibi a um processo de modernização passavelmente
sinistro, em cuja esteira ainda nos encontramos”.
O que ainda não foi
devidamente destacado nessa perspectiva é quanto a capital federal que a “meta
síntese” do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, plano esse marcado pelo
intuito em aprofundar a industrialização brasileira, também foi, desde sua concepção,
parte do plano de poder oligarquias agrárias do Centro-Oeste. A mesma
oligarquia que atualmente se serve do soft power do sertanejo e do slogan “O
Agro é Pop” para se legitimar como um dos protagonistas da política e economia
nacionais.
• Brasília e o colapso da modernização
Nas palavras da
filósofa Otília Beatriz Fiori Arantes, “nossa festejada tradição moderna em
arquitetura sempre alimentou a fantasia de estar na vanguarda da integração das
classes mais desfavorecidas”. Como essa integração nunca se realizou, a
arquitetura moderna brasileira e seu símbolo maior, Brasília, acabou se
tornando uma espécie de “arquivo morto”, ou “um verdadeiro trauma”, nas
palavras de Edemilson Paraná e Gabriel Tupinambá em seu livro Arquitetura de
Arestas. Mas essa massa falida social e arquitetônica, esse trauma coletivo
saído das pranchetas de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, já apresentava em seus
canteiros de obras, antes mesmo de sua inauguração, uma série de contradições
indisfarçáveis.
O arquiteto marxista
Sérgio Ferro, que participou de alguns projetos na construção de Brasília,
descreve o contraste entre o “desenho de Lúcio Costa e Niemeyer” e a vida nos
canteiros de obras. Estes últimos eram “doidíssimos, sofridíssimos, cercados,
ameaçados, com condições de trabalho péssimas”, um cenário segundo os relatos
dos operários marcado por suicídios, com trabalhadores “se jogando debaixo de
caminhões, desesperados, com fome, com desinteria, impossibilitados de sair de
lá”. O contraste sentido por Sérgio Ferro entre o desenho dos arquitetos
modernistas e a realidade brutal dos canteiros sob o controle da Guarda
Especial de Brasília (GEB) não surpreende quando se leva em conta certas visões
de mundo que acompanharam Lúcio Costa durante sua carreira.
Abílio Guerra em seu
livro sobre as relações entre Lúcio Costa e o modernismo paulista, afirma que
desde os anos 1930 havia nas concepções do arquiteto uma espécie de “profunda
desconfiança acerca da capacidade do homem comum de dar conta dos problemas urbanos
e existenciais no qual está enredado”. Em 1952, Lúcio Costa declarou que as
“populações interessadas” não estão em condições de antever o que elas mesmas
desejam e, portanto, “se não antevêem não podem aspirar; se não aspiram não
terão motivos para reclamar o que de direito já lhes é devido”.
Em outras palavras,
arquitetos e urbanistas conheceriam o desejo, as aspirações e os direitos
daqueles que não reconhecem o próprio direito que lhes é devido. Não é
necessário destacar como tal postura é profundamente autoritária e
paternalista.
O arquiteto e
urbanista Paulo Tavares no ensaio “Lúcio Costa era racista?” evidenciou trechos
da obra escrita do criador do Plano Piloto eivados de eugenismo e racismo, tais
como: “Enquanto o nosso povo for essa coisa exótica que vemos pelas ruas, a
nossa arquitetura será forçosamente uma coisa exótica […] essa multidão anônima
[…] que nos envergonha por toda a parte. O que podemos esperar em arquitetura
de um povo assim? Tudo é função da raça. A raça sendo boa, o governo é bom.
será boa a arquitetura”.
Existem outros
trechos, e mesmo considerando que esse tom racista mais violento tenha sido
suavizado na forma pela influência de Gilberto Freyre, a questão racial
reaparece em diversos momentos da obra de Lúcio Costa. O que se coaduna
perfeitamente a interpretação que a já citada Otília Arantes faz do que ela
chama de “esquema de Lúcio Costa”: “nascemos modernos e coloniais, sob a égide
do capitalismo comercial em expansão” misturando escravidão, monocultura, a um
só tempo patriarcal e mercantil.
Nessa equação entre
desenvolvimentismo falido, autoritarismo e racismo que resultou em Brasília
como imagem acabada de nossas desigualdades seculares, ainda resta acrescentar
a participação ativa da camada da elite nacional que atualmente é classificada como
“agronegócio”.
• A grande aceleração e a ocupação do
Centro-Oeste
É espantoso que até
meados do século XX o Brasil importava produtos agrícolas tais como arroz,
milho, cereais e carne de frango. Em cinquenta anos nos tornamos uma potência
exportadora de produtos agropecuários, o que só foi possível a partir de uma
série de transformações geológicas, demográficas, tecnológicas e culturais que
atingiram o Brasil do oeste baiano até o Acre e de Roraima até o Paraná.
Elas podem ser
consideradas como o capítulo brasileiro da Grande Aceleração, etapa do
Antropocenoque teve início após a Segunda Guerra Mundial. Desde 1950, segundo
J.R. McNeill e Peter Engelke, a intervenção humana no planeta atingiu
proporções inéditas em função da aceleração do crescimento populacional, dos
fluxos migratórios, da urbanização, do consumo de energia e, consequentemente,
das mudanças climáticas.
A Grande Aceleração no
Centro-Oeste brasileiro se apresenta na interferência humana nos ciclos
biogeoquímicos do solo, na decisão política pela monocultura exportadora de
larga-escala, na ampliação, ainda incompleta, da rede viária e energética em
função das necessidades logísticas do agribusiness e até mesmo pelo incentivo a
migração de brancos provenientes da região Sul para a nova fronteira agrícola.
Donna Haraway sugere
classificar essa variedade do Antropoceno como Plantationoceno, que seria
marcada pela“crescente ferocidade na produção global de carne industrializada,
no agronegócio da monocultura, e nas imensas substituições de florestas
multiespecíficas, que sustentam tanto os humanos quanto os não humanos, por
culturas que produzem, por exemplo, óleo de palma”.
Enquadrar o
agronegócio brasileiro na escala geológica do Antropoceno ou do
Plantationoceno, apesar de certo valor heurístico, pode recair em um tipo de
fatalismo político que tem se tornado recorrente na esquerda. Como se em uma
repetição de fundo psicanalítico, após os humanos comerem o fruto proibido, e
terem sidos expulsos irremediavelmente do Éden, restaria apenas o desespero da
ausência de perspectivas diante de uma nova era geológica. Mas o agronegócio em
suas múltiplas facetas é primordialmente consequência do agenciamento humano e,
portanto, um fato político. E Brasília é um ponto crucial desse fato político.
• A construção de Brasília e o lobby
goiano
Antes mesmo da criação
de Goiânia, já havia interesse das oligarquias goianas na criação de uma nova
capital no Planalto Central. Em 1891, o constituinte goiano Sebastião Fleury
Curado propôs o Artigo 3° da primeira Constituição republicana do Brasil que
determinava “Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma
zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para
nela estabelecer-se a futura Capital federal”.
A pedra fundamental de
Brasília, um obelisco localizado na cidade-satélite de Planaltina, foi
inaugurada em 7 de setembro de 1922, no centenário da Independência, nasceu de
uma proposta do deputado federal goiano Americano do Brasil. Além disso,
segundo o sociólogo Márcio de Oliveira, a influente revista Informação Goyana,
que circulou entre 1917 e 1935, “fazia críticas à presença da capital na cidade
do Rio de Janeiro, afirmando que o Brasil era o sertão onde poderia ocorrer o
‘renascimento da raça’”.
Em 1953, Getúlio
Vargas entregou a presidência da Comissão de Localização da Nova Capital ao
chefe de seu gabinete militar, o general Aguinaldo Caiado de Castro, que apesar
de nascido no Rio de Janeiro, era integrante de uma poderosa família goiana. A
equipe da Comissão liderada por ele contou com o major Mauro Borges Teixeira,
representando o governo de Goiás e com o engenheiro e urbanista Jerônimo
Coimbra Bueno, dono da empreiteira Coimbra Bueno e Cia., responsável pelas
obras de construção de Goiânia na década de 1930.
A transferência da
capital goiana da centenária Goiás para Goiânia a partir de 1933 serviu como
modelo precursor para a construção de Brasília na década de 1950, ao ponto do
próprio Juscelino Kubitschek considerar a “construção de Goiânia como
‘obra-piloto’ de Brasília”. Além de fornecer soluções técnicas e logísticas
para a criação de uma cidade no Planalto Central, encorajou a ainda mais a
elite goiana pela busca de um empreendimento ainda mais arrojado.
Exemplo disso foi a
criação, por parte dos donos da Coimbra Bueno e Cia., da Fundação Coimbra Bueno
pela Nova Capital do Brasil com o objetivo de liderar o lobby público e privado
a favor da mudança da capital federal. O irmão e sócio de Jeronymo, Abelardo
Coimbra Bueno, defendia a necessidade de “criar [no interior do Brasil] um pólo
de desenvolvimento da civilização brasileira”, afinal de contas, o país seria,
na verdade, uma espécie de “civilização sertaneja”.
A partir de 1955, o
complicado processo de desapropriação de terras públicas e privadas para a
União foi liderado pelo governador do Goiás, José Ludovico de Almeida, à
revelia do presidente Café Filho, com a fundação da Comissão de Cooperação da
Mudança da Capital Federal. José Ludovico era sobrinho do interventor varguista
Pedro Ludovico Teixeira, que liderou a construção de Goiânia na década de 1930.
Segundo os
historiadores Luiz Humberto Del’Isola e Noemia Boianovsky, foi o estado de
Goiás que assumiu integralmente as ações concretas para a transferência da
capital, diante das hesitações do Executivo Federal. Jeronymo Coimbra Bueno, já
como senador udenista e ex-governador de Goiás à época, além de ajudar no
processo de busca por financiamento para a desapropriação de terras goianas
para o Distrito Federal, chegou a viajar para São Paulo, Rio de Janeiro e Porto
Alegre para defender o estado de Goiás como sendo a região ideal para receber
uma nova capital.
Diante disso, não
surpreende que a primeira fazenda a ser desapropriada teve reflexos na política
do Distrito Federal décadas depois. O atual terreno ocupado pela Esplanada dos
Ministérios e pela Praça dos Três Poderes era parte da Fazenda Bananal de propriedade,
pelo menos segundo um precário documento lavrado no cartório de 1º Ofício de
Luziânia, Goiás, de Jorge Peles. Peles é pai de Weslian Roriz – candidata ao
governo de Brasília em 2010, e esposa de Joaquim Domingos Roriz,
vice-governador de Goiás, prefeito de Goiânia e governador do Distrito Federal
por quatro mandatos.
Por fim, e dando
consecução legal ao previsto pela Constituição de 1946, que previa que após a
demarcação do terreno da nova capital haveria a transferência da sede do poder
executivo, o deputado federal Emival Ramos Caiado propôs a Lei n° 3.273 de 1°
de outubro de 1957, que fixou a transferência da Capital da União no dia 21 de
abril de 1960, “para o novo Distrito Federal já delimitado no planalto central
do País”. Emival, um dos líderes parlamentares dos mudancionistas, movimento
que defendia a mudança da Capital, era membro-fundador da UDN no Goiás – UDN de
Carlos Lacerda que se colocava diretamente contra Brasília.
Já a empresa estatal
responsável pelo planejamento e execução das obras de Brasília, a NOVACAP,
tinha entre seus mais atuantes diretores, o vice-governador do Goiás, Bernardo
Sayão. Sayão se tornou notório não só pela construção da BR-153, a
Belém-Brasília, mas também pelo seu papel na construção de outra cidade “surgida
do nada” no Goiás: a cidade de Ceres, fundada em 1953.
O comprometimento da
oligarquia goiana na criação de Brasília se torna mais evidente quando se sabe
que Emival Ramos Caiado e Aguinaldo Caiado de Castro são parentes de Ronaldo
Caiado, atual governador de Goiás – e presidenciável direitista para a eleição
de 2026. O impacto da construção de Brasília foi tão grande no estado que após
finalizar seu mandato como presidente em 1961, JK concorreu e ganhou uma vaga
ao senado pelo estado de Goiás.
• Brasília e o agronegócio
A Bancada Ruralista,
ou Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conta atualmente com 374
parlamentares, sendo 324 deputados federais e 50 senadores, perfazendo 63.16%
das cadeiras da Câmara e 61.73% do Senado. Desde Assembleia Nacional
Constituinte de 1987-1988, com a Frente Ampla Ruralista e grupos de pressão
como a União Democrática Ruralista (UDR), fundada por Ronaldo Caiado em 1985, o
que se tem é a presença cada vez maciça do agronegócio como um dos mais
poderosos players da política nacional.
A infantaria
parlamentar do “Agro é Pop, Agro é Tudo” é apenas o braço político de um
conjunto de multinacionais, tais como a JBS, Basf, Cargill, Bayer, Syngenta,
Bunge e Nestlé. A partir do think tank Instituto Pensar Agro (IPA), que conta
com uma sede em uma luxuosa mansão no Lago Sul de Brasília, local de reuniões
semanais dos ruralistas, e uma dezenas de associações do agronegócio, a Frente
Parlamentar da Agropecuária propõe projetos de lei direcionadas a seus
interesses em áreas como demarcação de terras indígenas, armamento da
população, mineração e agrotóxicos. Segundo o dossiê Os Financiadores da
Boiada, a influência e ligações envolvendo a Frente Parlamentar da Agropecuária
chegaram ao gabinete da ministra da agricultura do governo de Jair Bolsonaro,
Tereza Cristina, até chegar a grandes fundos internacionais como o Blackrock e
JP Morgan.
O secular desejo da
oligarquia goiana para trazer a capital federal para o Centro-Oeste terminou
por se consumar na Brasília do século XXI. Apesar de formalmente ela ser a
representação acabada arquitetura moderna brasileira, conhecida em toda mundo,
e de ter também simbolizado por algum tempo uma certa ideia do Brasil como país
do futuro, seja pela indústria automobilística, pela urbanização modernizante e
até mesmo pela Bossa Nova, Brasília em 2024 é, de fato, outra coisa.
O museu arquitetônico
dos nossos malogros desenvolvimentistas do século XX, agora serve como feitoria
política para uma tradição brasileira bem distante das ambições urbanas e
industriais do Plano de Metas de JK. Brasília agora serve para a versão contemporânea
daquilo que o historiador Victor Leonardi chamou de “colonialismo interno”.
Para ele, a conquista das terras brasileiras não foi concluída pelos
portugueses, apesar dos três séculos de colonização. “Foram as classes
dominantes brasileiras que levaram adiante esse processo, ou seja, no século
XIX a nação brasileira deixa de ser colônia de Portugal para se tornar, ela
própria, colonialista em relação aos povos autóctones”.
Brasília fundada para
o futuro, ao ponto de em seu brasão oficial conter o dito latino “Venturis
Ventis” que significa “Aos ventos que hão de vir”, acabou por se reduzir a mera
feitoria política de nosso ancestral processo de colonização e destruição interna.
Fonte: Por Anderson
Cleiton Fernandes Leite, em A Terra é Redonda
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