sábado, 20 de julho de 2024

Em Brasília, a presença do agronegócio

O secular desejo da oligarquia goiana para trazer a capital federal para o Centro-Oeste terminou por se consumar na Brasília do século XXI,

•        Uma metrópole tipicamente brasileira

A muito se disseminou a imagem de Brasília como uma “Ilha da Fantasia” anódina, corrupta, vazia e “sem esquinas”, o que ignora o fato da capital federal ser tão complexa e multifacetada como qualquer metrópole brasileira do século XXI. Com quase três milhões de habitantes, 35 regiões administrativas (um meio-termo entre bairros e municípios), o cenário socioeconômico do Distrito Federal vai do Lago Sul, com IDH similar ao da Noruega, até a maior favela do Brasil, o Sol Nascente, com apenas 30 km de distância separando as duas regiões.

É um tema recorrente na tradição crítica brasileira interpretar Brasília como símbolo do fracasso do projeto desenvolvimentista administrado pelo estado brasilerio desde a Era Vargas. Segundo, por exemplo, Roberto Schwarz, Brasília, “a realização mais sensacional e abrangente do programa histórico das vanguardas artísticas incluía entre suas virtualidades o servir de álibi a um processo de modernização passavelmente sinistro, em cuja esteira ainda nos encontramos”.

O que ainda não foi devidamente destacado nessa perspectiva é quanto a capital federal que a “meta síntese” do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, plano esse marcado pelo intuito em aprofundar a industrialização brasileira, também foi, desde sua concepção, parte do plano de poder oligarquias agrárias do Centro-Oeste. A mesma oligarquia que atualmente se serve do soft power do sertanejo e do slogan “O Agro é Pop” para se legitimar como um dos protagonistas da política e economia nacionais.

•        Brasília e o colapso da modernização

Nas palavras da filósofa Otília Beatriz Fiori Arantes, “nossa festejada tradição moderna em arquitetura sempre alimentou a fantasia de estar na vanguarda da integração das classes mais desfavorecidas”. Como essa integração nunca se realizou, a arquitetura moderna brasileira e seu símbolo maior, Brasília, acabou se tornando uma espécie de “arquivo morto”, ou “um verdadeiro trauma”, nas palavras de Edemilson Paraná e Gabriel Tupinambá em seu livro Arquitetura de Arestas. Mas essa massa falida social e arquitetônica, esse trauma coletivo saído das pranchetas de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, já apresentava em seus canteiros de obras, antes mesmo de sua inauguração, uma série de contradições indisfarçáveis.

O arquiteto marxista Sérgio Ferro, que participou de alguns projetos na construção de Brasília, descreve o contraste entre o “desenho de Lúcio Costa e Niemeyer” e a vida nos canteiros de obras. Estes últimos eram “doidíssimos, sofridíssimos, cercados, ameaçados, com condições de trabalho péssimas”, um cenário segundo os relatos dos operários marcado por suicídios, com trabalhadores “se jogando debaixo de caminhões, desesperados, com fome, com desinteria, impossibilitados de sair de lá”. O contraste sentido por Sérgio Ferro entre o desenho dos arquitetos modernistas e a realidade brutal dos canteiros sob o controle da Guarda Especial de Brasília (GEB) não surpreende quando se leva em conta certas visões de mundo que acompanharam Lúcio Costa durante sua carreira.

Abílio Guerra em seu livro sobre as relações entre Lúcio Costa e o modernismo paulista, afirma que desde os anos 1930 havia nas concepções do arquiteto uma espécie de “profunda desconfiança acerca da capacidade do homem comum de dar conta dos problemas urbanos e existenciais no qual está enredado”. Em 1952, Lúcio Costa declarou que as “populações interessadas” não estão em condições de antever o que elas mesmas desejam e, portanto, “se não antevêem não podem aspirar; se não aspiram não terão motivos para reclamar o que de direito já lhes é devido”.

Em outras palavras, arquitetos e urbanistas conheceriam o desejo, as aspirações e os direitos daqueles que não reconhecem o próprio direito que lhes é devido. Não é necessário destacar como tal postura é profundamente autoritária e paternalista.

O arquiteto e urbanista Paulo Tavares no ensaio “Lúcio Costa era racista?” evidenciou trechos da obra escrita do criador do Plano Piloto eivados de eugenismo e racismo, tais como: “Enquanto o nosso povo for essa coisa exótica que vemos pelas ruas, a nossa arquitetura será forçosamente uma coisa exótica […] essa multidão anônima […] que nos envergonha por toda a parte. O que podemos esperar em arquitetura de um povo assim? Tudo é função da raça. A raça sendo boa, o governo é bom. será boa a arquitetura”.

Existem outros trechos, e mesmo considerando que esse tom racista mais violento tenha sido suavizado na forma pela influência de Gilberto Freyre, a questão racial reaparece em diversos momentos da obra de Lúcio Costa. O que se coaduna perfeitamente a interpretação que a já citada Otília Arantes faz do que ela chama de “esquema de Lúcio Costa”: “nascemos modernos e coloniais, sob a égide do capitalismo comercial em expansão” misturando escravidão, monocultura, a um só tempo patriarcal e mercantil.

Nessa equação entre desenvolvimentismo falido, autoritarismo e racismo que resultou em Brasília como imagem acabada de nossas desigualdades seculares, ainda resta acrescentar a participação ativa da camada da elite nacional que atualmente é classificada como “agronegócio”.

•        A grande aceleração e a ocupação do Centro-Oeste

É espantoso que até meados do século XX o Brasil importava produtos agrícolas tais como arroz, milho, cereais e carne de frango. Em cinquenta anos nos tornamos uma potência exportadora de produtos agropecuários, o que só foi possível a partir de uma série de transformações geológicas, demográficas, tecnológicas e culturais que atingiram o Brasil do oeste baiano até o Acre e de Roraima até o Paraná.

Elas podem ser consideradas como o capítulo brasileiro da Grande Aceleração, etapa do Antropocenoque teve início após a Segunda Guerra Mundial. Desde 1950, segundo J.R. McNeill e Peter Engelke, a intervenção humana no planeta atingiu proporções inéditas em função da aceleração do crescimento populacional, dos fluxos migratórios, da urbanização, do consumo de energia e, consequentemente, das mudanças climáticas.

A Grande Aceleração no Centro-Oeste brasileiro se apresenta na interferência humana nos ciclos biogeoquímicos do solo, na decisão política pela monocultura exportadora de larga-escala, na ampliação, ainda incompleta, da rede viária e energética em função das necessidades logísticas do agribusiness e até mesmo pelo incentivo a migração de brancos provenientes da região Sul para a nova fronteira agrícola.

Donna Haraway sugere classificar essa variedade do Antropoceno como Plantationoceno, que seria marcada pela“crescente ferocidade na produção global de carne industrializada, no agronegócio da monocultura, e nas imensas substituições de florestas multiespecíficas, que sustentam tanto os humanos quanto os não humanos, por culturas que produzem, por exemplo, óleo de palma”.

Enquadrar o agronegócio brasileiro na escala geológica do Antropoceno ou do Plantationoceno, apesar de certo valor heurístico, pode recair em um tipo de fatalismo político que tem se tornado recorrente na esquerda. Como se em uma repetição de fundo psicanalítico, após os humanos comerem o fruto proibido, e terem sidos expulsos irremediavelmente do Éden, restaria apenas o desespero da ausência de perspectivas diante de uma nova era geológica. Mas o agronegócio em suas múltiplas facetas é primordialmente consequência do agenciamento humano e, portanto, um fato político. E Brasília é um ponto crucial desse fato político.

•        A construção de Brasília e o lobby goiano

Antes mesmo da criação de Goiânia, já havia interesse das oligarquias goianas na criação de uma nova capital no Planalto Central. Em 1891, o constituinte goiano Sebastião Fleury Curado propôs o Artigo 3° da primeira Constituição republicana do Brasil que determinava “Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital federal”.

A pedra fundamental de Brasília, um obelisco localizado na cidade-satélite de Planaltina, foi inaugurada em 7 de setembro de 1922, no centenário da Independência, nasceu de uma proposta do deputado federal goiano Americano do Brasil. Além disso, segundo o sociólogo Márcio de Oliveira, a influente revista Informação Goyana, que circulou entre 1917 e 1935, “fazia críticas à presença da capital na cidade do Rio de Janeiro, afirmando que o Brasil era o sertão onde poderia ocorrer o ‘renascimento da raça’”.

Em 1953, Getúlio Vargas entregou a presidência da Comissão de Localização da Nova Capital ao chefe de seu gabinete militar, o general Aguinaldo Caiado de Castro, que apesar de nascido no Rio de Janeiro, era integrante de uma poderosa família goiana. A equipe da Comissão liderada por ele contou com o major Mauro Borges Teixeira, representando o governo de Goiás e com o engenheiro e urbanista Jerônimo Coimbra Bueno, dono da empreiteira Coimbra Bueno e Cia., responsável pelas obras de construção de Goiânia na década de 1930.

A transferência da capital goiana da centenária Goiás para Goiânia a partir de 1933 serviu como modelo precursor para a construção de Brasília na década de 1950, ao ponto do próprio Juscelino Kubitschek considerar a “construção de Goiânia como ‘obra-piloto’ de Brasília”. Além de fornecer soluções técnicas e logísticas para a criação de uma cidade no Planalto Central, encorajou a ainda mais a elite goiana pela busca de um empreendimento ainda mais arrojado.

Exemplo disso foi a criação, por parte dos donos da Coimbra Bueno e Cia., da Fundação Coimbra Bueno pela Nova Capital do Brasil com o objetivo de liderar o lobby público e privado a favor da mudança da capital federal. O irmão e sócio de Jeronymo, Abelardo Coimbra Bueno, defendia a necessidade de “criar [no interior do Brasil] um pólo de desenvolvimento da civilização brasileira”, afinal de contas, o país seria, na verdade, uma espécie de “civilização sertaneja”.

A partir de 1955, o complicado processo de desapropriação de terras públicas e privadas para a União foi liderado pelo governador do Goiás, José Ludovico de Almeida, à revelia do presidente Café Filho, com a fundação da Comissão de Cooperação da Mudança da Capital Federal. José Ludovico era sobrinho do interventor varguista Pedro Ludovico Teixeira, que liderou a construção de Goiânia na década de 1930.

Segundo os historiadores Luiz Humberto Del’Isola e Noemia Boianovsky, foi o estado de Goiás que assumiu integralmente as ações concretas para a transferência da capital, diante das hesitações do Executivo Federal. Jeronymo Coimbra Bueno, já como senador udenista e ex-governador de Goiás à época, além de ajudar no processo de busca por financiamento para a desapropriação de terras goianas para o Distrito Federal, chegou a viajar para São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre para defender o estado de Goiás como sendo a região ideal para receber uma nova capital.

Diante disso, não surpreende que a primeira fazenda a ser desapropriada teve reflexos na política do Distrito Federal décadas depois. O atual terreno ocupado pela Esplanada dos Ministérios e pela Praça dos Três Poderes era parte da Fazenda Bananal de propriedade, pelo menos segundo um precário documento lavrado no cartório de 1º Ofício de Luziânia, Goiás, de Jorge Peles. Peles é pai de Weslian Roriz – candidata ao governo de Brasília em 2010, e esposa de Joaquim Domingos Roriz, vice-governador de Goiás, prefeito de Goiânia e governador do Distrito Federal por quatro mandatos.

Por fim, e dando consecução legal ao previsto pela Constituição de 1946, que previa que após a demarcação do terreno da nova capital haveria a transferência da sede do poder executivo, o deputado federal Emival Ramos Caiado propôs a Lei n° 3.273 de 1° de outubro de 1957, que fixou a transferência da Capital da União no dia 21 de abril de 1960, “para o novo Distrito Federal já delimitado no planalto central do País”. Emival, um dos líderes parlamentares dos mudancionistas, movimento que defendia a mudança da Capital, era membro-fundador da UDN no Goiás – UDN de Carlos Lacerda que se colocava diretamente contra Brasília.

Já a empresa estatal responsável pelo planejamento e execução das obras de Brasília, a NOVACAP, tinha entre seus mais atuantes diretores, o vice-governador do Goiás, Bernardo Sayão. Sayão se tornou notório não só pela construção da BR-153, a Belém-Brasília, mas também pelo seu papel na construção de outra cidade “surgida do nada” no Goiás: a cidade de Ceres, fundada em 1953.

O comprometimento da oligarquia goiana na criação de Brasília se torna mais evidente quando se sabe que Emival Ramos Caiado e Aguinaldo Caiado de Castro são parentes de Ronaldo Caiado, atual governador de Goiás – e presidenciável direitista para a eleição de 2026. O impacto da construção de Brasília foi tão grande no estado que após finalizar seu mandato como presidente em 1961, JK concorreu e ganhou uma vaga ao senado pelo estado de Goiás.

•        Brasília e o agronegócio

A Bancada Ruralista, ou Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conta atualmente com 374 parlamentares, sendo 324 deputados federais e 50 senadores, perfazendo 63.16% das cadeiras da Câmara e 61.73% do Senado. Desde Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, com a Frente Ampla Ruralista e grupos de pressão como a União Democrática Ruralista (UDR), fundada por Ronaldo Caiado em 1985, o que se tem é a presença cada vez maciça do agronegócio como um dos mais poderosos players da política nacional.

A infantaria parlamentar do “Agro é Pop, Agro é Tudo” é apenas o braço político de um conjunto de multinacionais, tais como a JBS, Basf, Cargill, Bayer, Syngenta, Bunge e Nestlé. A partir do think tank Instituto Pensar Agro (IPA), que conta com uma sede em uma luxuosa mansão no Lago Sul de Brasília, local de reuniões semanais dos ruralistas, e uma dezenas de associações do agronegócio, a Frente Parlamentar da Agropecuária propõe projetos de lei direcionadas a seus interesses em áreas como demarcação de terras indígenas, armamento da população, mineração e agrotóxicos. Segundo o dossiê Os Financiadores da Boiada, a influência e ligações envolvendo a Frente Parlamentar da Agropecuária chegaram ao gabinete da ministra da agricultura do governo de Jair Bolsonaro, Tereza Cristina, até chegar a grandes fundos internacionais como o Blackrock e JP Morgan.

O secular desejo da oligarquia goiana para trazer a capital federal para o Centro-Oeste terminou por se consumar na Brasília do século XXI. Apesar de formalmente ela ser a representação acabada arquitetura moderna brasileira, conhecida em toda mundo, e de ter também simbolizado por algum tempo uma certa ideia do Brasil como país do futuro, seja pela indústria automobilística, pela urbanização modernizante e até mesmo pela Bossa Nova, Brasília em 2024 é, de fato, outra coisa.

O museu arquitetônico dos nossos malogros desenvolvimentistas do século XX, agora serve como feitoria política para uma tradição brasileira bem distante das ambições urbanas e industriais do Plano de Metas de JK. Brasília agora serve para a versão contemporânea daquilo que o historiador Victor Leonardi chamou de “colonialismo interno”. Para ele, a conquista das terras brasileiras não foi concluída pelos portugueses, apesar dos três séculos de colonização. “Foram as classes dominantes brasileiras que levaram adiante esse processo, ou seja, no século XIX a nação brasileira deixa de ser colônia de Portugal para se tornar, ela própria, colonialista em relação aos povos autóctones”.

Brasília fundada para o futuro, ao ponto de em seu brasão oficial conter o dito latino “Venturis Ventis” que significa “Aos ventos que hão de vir”, acabou por se reduzir a mera feitoria política de nosso ancestral processo de colonização e destruição interna.

 

Fonte: Por Anderson Cleiton Fernandes Leite, em A Terra é Redonda

 

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