A questão agrária no Brasil — segundo
Octávio Ianni
Octávio Ianni foi um
dos mais completos estudiosos do capitalismo brasileiro, tendo obras de grande
relevância na área de análise do Estado nacional, sendo que seu trabalho Estado
e planejamento econômico no Brasil (1986) constitui uma obra de referência
central para os que desejam entender o desenvolvimento da intervenção estatal
no país e As origens agrárias do Estado brasileiro (2004) central para se
estabelecer a permanência da questão agrária no debate nacional.
Nosso objetivo neste
texto será tratar das contribuições de Octávio Ianni em dois aspectos
correlatos: a questão agrária e sua relação com a questão amazônica, aspectos
que se entrelaçam na ampla e critica disputa social pela terra que caracteriza
a formação social brasileira. No texto sobre as origens agrárias o autor
observa, ainda no prefácio, que “é possível dizer que todos os momentos mais
notáveis da história da sociedade brasileira estão influenciados pela questão
agrária” (2004, p. 07).
A tese aqui esposada é
que no momento presente este pressuposto somente se reforçou e se tornou a
tônica do atual ciclo de acumulação capitalista periférica nacional.
O controle do acesso e
propriedade da terra pelo Estado brasileiro foi desde sempre sua principal
lógica de funcionalidade estatal, como nota Octávio Ianni, “a legislação do
Império cuidava para que as terras não estivessem disponíveis a quaisquer
interessados”, sendo que “em 1842 uma recomendação governamental sugeriu que
era necessário aumentar os custos de aquisição de terras, a fim de fixar
trabalhadores livres nas plantações” de café, essa recomendação foi
transformada em lei em 1850. Esse marco de ação do estado brasileiro, tornando
as terras devolutas em uso acessível e apropriável apenas por setores agrários
capitalizados constitui o fundamento da lógica que o autor aponta de origem
tanto do Estado oligárquico nacional, quanto da posterior organização de um
capitalismo centrado na grande concentração fundiária, com enormes
consequências daí derivadas.
Vale observar que a
abundância de terras estabeleceu uma condição autoritária a ação do Estado,
impedindo ou dificultando o acesso dos trabalhadores à propriedade da terra.
Tanto na expansão agrária do século XIX no oeste paulista, quanto na expansão
amazônica do século XX o Estado favorecerá a concentração fundiária, sendo que
a violência dos controladores fundiários será não somente tolerada como
estimulada pelo Estado agrário nacional.
Octávio Ianni (2004,
p.28) sumariza as condições de poder absoluto dos fazendeiros de café sobre os
trabalhadores colonos, aos quais impunham multas e “preços abusivos cobrados
pelos armazéns das fazendas”, levando as “tensões entre fazendeiros e colonos”,
tendo como consequência “greves de colonos, incêndios e assassinatos”, um
quadro de violência que se assemelhará as formações fundiárias em outras
localizações do país.
Esse poder de controle
e definição das relações políticas é projetado no tempo, assim, na constituição
da agroindústria açucareira, cuja formatação usina e canavial estabelece uma
totalidade reprodutiva, nota Octávio Ianni (2004, p. 62), o “usineiro aparece
como autoridade máxima”, sendo que “naquele mundo social da usina e canaviais”
tudo se organiza em conformidade a manutenção da reprodução da agroindústria,
inclusive ou principalmente o poder político.
Podemos com base em
Octávio Ianni afirmar que seus dois estudos com base em formações municipais
(Sertãozinho, no interior paulista, no final do século XIX e início do XX e;
Conceição do Araguaia, interior do estado do Pará, que se estende no século XX,
especialmente na sua segunda metade) são elementos da conformação do atavismo
agrário brasileiro.
As transformações
pelas quais passam Sertãozinho e Conceição do Araguaia constitui o eixo de
análise das teses desenvolvidas por Octávio Ianni. Quatro dessas teses nos
parecem centrais:
(i) As modificações
econômicas cíclicas encadeadas por bases de produção primário-exportadora, ao
entrarem em crise possibilitam, num primeiro momento uma desconcentração
agrária, porém logo superada por nova reconcentração agrária, puxada pela
dinâmica de novo ciclo agrícola exportador ou pela indução estatal que favorece
interesses dos capitalistas agrários.
(ii) A questão agrária
brasileira nunca parece concluída, sendo continuamente alterada pelas forças de
extensividade do uso e ocupação da terra — primeiramente no oeste paulista e
depois para as “terras do sem-fim” amazônicas. Como também não há uma única via
de solução do agrário, sendo ainda mais diversas do que aquelas estabelecidas
pelas perspectivas clássicas marxianas (inglesa, prussiana, americana), podemos
falar de vias de conformação brasileira, seja autoritária pela ação do Estado,
seja pela formação de novos campesinatos, inclusive vias campesinas
organizadas, a exemplo do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-terra).
(iii) A referida
questão agrária também se coloca num contínuo de produção e reprodução de
diferentes segmentos da classe trabalhadora, seja expandindo, em alguns
momentos o “proletariado”, com expulsão de populações campesinas; seja
expulsando populações urbanas, em função de crises contínuas de sobrevivência e
produzindo novos campesinatos.
(iv) Há uma dialética
entre o rural e urbano brasileiro, que Octávio Ianni demonstra em suas
análises.
A Amazônia surge como
objeto de estudo relacional para Octávio Ianni (1979, 1981) ainda no início da
década de 1970. Obra de referência constitui “A luta pela Terra”. Em diversos
aspectos este trabalho tem inovações no trato da sociedade amazônica:
(a) constitui um
estudo pioneiro de formação das cidades amazônicas, especificamente o autor
analisa a formação e desenvolvimento de Conceição do Araguaia, uma das áreas de
maior confrontação e disputa social no Brasil.
(b) A conformidade de
formas sociais que se relacionam ao poder fundiário e a lógica estatal;
(c) o papel que a
ditadura militar representa para organizar os interesses fundiários brasileiros
e sua intervenção no espaço amazônico;
(d) a conformação
histórica do campesinato e
(e) as condições de
luta e violência no campo.
A conformação de
cidades ou núcleos de aglomeração populacional são diversas, sendo que no caso
amazônico os núcleos clássicos advindos da ocupação colonial e do escravismo
indígena são centrais. Conceição do Araguaia, como relata Octávio Ianni (1978,
p. 233) advém desta forma histórica, sendo que nas suas origens “a terra era
farta e disponível; sobrava para quem quisesse; era devoluta ou tribal, o que
era quase a mesma coisa, para os cristãos que chegavam”.
A ocupação territorial
colonial sempre se traduz em três violências: o uso escravocrata da população
nativa, mesmo que, no caso brasileiro, camuflada com a ideologia religiosa do
poder Católico; a redução cultural das populações dominadas com a supressão de
suas referências linguísticas e, por fim, o extermínio físico das referidas
populações (genocídio).
O padrão de
crescimento populacional, principalmente pensando o atrator migratório, como
lembra ainda Octávio Ianni (1978, p. 157) se referindo ao período entre 1960 e
1970 a população local, ele trata de Conceição do Araguaia, mas isso é
aplicável a outras áreas da Amazônia, “aumentou quase cinco vezes (…)
principalmente por efeito da imigração de trabalhadores rurais provenientes das
zonas rurais do Nordeste, Goiás, Minas e outras que havia superpopulação, ou
superexploração, de trabalhadores”.
Na origem e
permanência da formação social moderna amazônica está o Estado e o Capital.
Conceição do Araguaia é um exemplo tipológico tratado por nosso autor. A origem
do “arraial” do Araguaia está na exploração extrativista da borracha. A trama
histórica que remonta ao século da borracha (1820/1920) é principalmente a
trama de desfazimento de povos milenares estabelecidos no solo amazônico, mas
também a constituição de formas de exploração arcaicas tão adequadas a
acumulação primitiva de capital, trata-se especificamente do aviamento e de
como as formas de exploração por dívida já se enredavam com circuitos
financeiros que uniam seringalistas (patrões), tradings de comércio de
borracha, bancos ingleses e, na ponta, os trabalhadores explorados na forma de aviamento,
os seringueiros.
Vale observar que
parte importante dos seringueiros do primeiro ciclo da borracha eram nativos,
indígenas de diversas nações: Ticunas, Kaapós, Karajás, Oagoas. Nações que irão
desaparecer já no período analisado por Ianni e na trilha de estabelecimento da
fronteira de expansão amazônica.
O período que se
inaugura com a ditadura empresarial-militar de 1964 demarca um novo e extensivo
momento de ocupação capitalista e agrária na Amazônia, sendo que Octávio Ianni
(1981) sinaliza corretamente, em outro texto importante, que o poder estatal favoreceu
e protegeu a “concentração e a centralização do capital, propiciando a
transição decisiva da economia amplamente dominada pelo capital monopolista”.
A política econômica
da ditadura foi decisiva para o fortalecimento do agronegócio e da conformação
de uma burguesia agrária internacionalizada, sendo o processo de apropriação
fundiária de amplas áreas amazônicas parte desta convergência entre tecnocracia
estatal e interesses do grande capital. Vale anotar que Octávio Ianni marca o
surgimento da Sudam (1966) como marco central do processo de mercantilização da
terra na Amazônia.
Octávio Ianni (1979,
p. 47) observa que a “inclusão da agricultura, em geral, na política
governamental de exportação a qualquer custo, levou o poder estatal a
favorecer, sob todas as formas, os negócios das empresas que se criavam ou
estavam funcionando no setor”. O agronegócio se torna um dos centros
estratégicos, tanto estabelecendo uma base centrada na produção
primária-exportadora, quanto tornando as regras de controle fundiário como
parte de fortalecimento e reorganização da burguesia agrária brasileira.
Aspecto destacado por
Octávio Ianni (1979, p. 159) é que a ditadura favorece “a monopolização das
terras pelos capitalistas nacionais ou estrangeiros. A terra é transformada em
mercadoria, objeto e meio de produção de valores de troca, colocada no circuito
da reprodução do capital, como propriedade privada, principalmente da grande
empresa estimulada e protegida pelo poder estatal”.
Duas observações:
(i) a “terra enquanto mercadoria” implica um
capital fictício próprio para especulação, algo que somente se impulsionará nas
décadas seguintes e
(ii) a renda Fundiária organizará a dinâmica do
mercado de terras e da disputa pelos direitos de propriedade, com os óbvios
conflitos e extermínio de indivíduos e populações, originárias ou migratórias.
Assim as contribuições
de Octávio Ianni podem nos auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro,
sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura
fundiária brasileira e que podemos sintetizar em oito vetores relacionais:
(a) característica de
propriedade e posse dos estabelecimentos rurais;
(b) dimensões médias
dos estabelecimentos;
(c) tipo,
dimensionamento e apropriação de renda fundiária (absoluta e diferencial);
(d) principais
arranjos produtivos e base reprodutiva principal (capitalista,
semi-capitalista, campesina);
(e) padrão e forma de
intervenção estatal;
(f) conflitos sociais
pela terra;
(g) grau de impacto
ambiental e
(h) padrão de
crescimento populacional e relação rural-urbano.
A interatividade entre
os aspectos assinalados a fim de analisar mais detidamente e repor o debate da
questão agrária na atual conjuntura de expansão do agronegócio e crise social
brasileira vale muito o retorno ao professor Octavio Ianni.
Fonte: Por José
Raimundo Trindade, em A Terra é Redonda
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