sábado, 20 de julho de 2024

A questão agrária no Brasil — segundo Octávio Ianni

Octávio Ianni foi um dos mais completos estudiosos do capitalismo brasileiro, tendo obras de grande relevância na área de análise do Estado nacional, sendo que seu trabalho Estado e planejamento econômico no Brasil (1986) constitui uma obra de referência central para os que desejam entender o desenvolvimento da intervenção estatal no país e As origens agrárias do Estado brasileiro (2004) central para se estabelecer a permanência da questão agrária no debate nacional.

Nosso objetivo neste texto será tratar das contribuições de Octávio Ianni em dois aspectos correlatos: a questão agrária e sua relação com a questão amazônica, aspectos que se entrelaçam na ampla e critica disputa social pela terra que caracteriza a formação social brasileira. No texto sobre as origens agrárias o autor observa, ainda no prefácio, que “é possível dizer que todos os momentos mais notáveis da história da sociedade brasileira estão influenciados pela questão agrária” (2004, p. 07).

A tese aqui esposada é que no momento presente este pressuposto somente se reforçou e se tornou a tônica do atual ciclo de acumulação capitalista periférica nacional.

O controle do acesso e propriedade da terra pelo Estado brasileiro foi desde sempre sua principal lógica de funcionalidade estatal, como nota Octávio Ianni, “a legislação do Império cuidava para que as terras não estivessem disponíveis a quaisquer interessados”, sendo que “em 1842 uma recomendação governamental sugeriu que era necessário aumentar os custos de aquisição de terras, a fim de fixar trabalhadores livres nas plantações” de café, essa recomendação foi transformada em lei em 1850. Esse marco de ação do estado brasileiro, tornando as terras devolutas em uso acessível e apropriável apenas por setores agrários capitalizados constitui o fundamento da lógica que o autor aponta de origem tanto do Estado oligárquico nacional, quanto da posterior organização de um capitalismo centrado na grande concentração fundiária, com enormes consequências daí derivadas.

Vale observar que a abundância de terras estabeleceu uma condição autoritária a ação do Estado, impedindo ou dificultando o acesso dos trabalhadores à propriedade da terra. Tanto na expansão agrária do século XIX no oeste paulista, quanto na expansão amazônica do século XX o Estado favorecerá a concentração fundiária, sendo que a violência dos controladores fundiários será não somente tolerada como estimulada pelo Estado agrário nacional.

Octávio Ianni (2004, p.28) sumariza as condições de poder absoluto dos fazendeiros de café sobre os trabalhadores colonos, aos quais impunham multas e “preços abusivos cobrados pelos armazéns das fazendas”, levando as “tensões entre fazendeiros e colonos”, tendo como consequência “greves de colonos, incêndios e assassinatos”, um quadro de violência que se assemelhará as formações fundiárias em outras localizações do país.

Esse poder de controle e definição das relações políticas é projetado no tempo, assim, na constituição da agroindústria açucareira, cuja formatação usina e canavial estabelece uma totalidade reprodutiva, nota Octávio Ianni (2004, p. 62), o “usineiro aparece como autoridade máxima”, sendo que “naquele mundo social da usina e canaviais” tudo se organiza em conformidade a manutenção da reprodução da agroindústria, inclusive ou principalmente o poder político.

Podemos com base em Octávio Ianni afirmar que seus dois estudos com base em formações municipais (Sertãozinho, no interior paulista, no final do século XIX e início do XX e; Conceição do Araguaia, interior do estado do Pará, que se estende no século XX, especialmente na sua segunda metade) são elementos da conformação do atavismo agrário brasileiro.

As transformações pelas quais passam Sertãozinho e Conceição do Araguaia constitui o eixo de análise das teses desenvolvidas por Octávio Ianni. Quatro dessas teses nos parecem centrais:

(i) As modificações econômicas cíclicas encadeadas por bases de produção primário-exportadora, ao entrarem em crise possibilitam, num primeiro momento uma desconcentração agrária, porém logo superada por nova reconcentração agrária, puxada pela dinâmica de novo ciclo agrícola exportador ou pela indução estatal que favorece interesses dos capitalistas agrários.

(ii) A questão agrária brasileira nunca parece concluída, sendo continuamente alterada pelas forças de extensividade do uso e ocupação da terra — primeiramente no oeste paulista e depois para as “terras do sem-fim” amazônicas. Como também não há uma única via de solução do agrário, sendo ainda mais diversas do que aquelas estabelecidas pelas perspectivas clássicas marxianas (inglesa, prussiana, americana), podemos falar de vias de conformação brasileira, seja autoritária pela ação do Estado, seja pela formação de novos campesinatos, inclusive vias campesinas organizadas, a exemplo do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-terra).

(iii) A referida questão agrária também se coloca num contínuo de produção e reprodução de diferentes segmentos da classe trabalhadora, seja expandindo, em alguns momentos o “proletariado”, com expulsão de populações campesinas; seja expulsando populações urbanas, em função de crises contínuas de sobrevivência e produzindo novos campesinatos.

(iv) Há uma dialética entre o rural e urbano brasileiro, que Octávio Ianni demonstra em suas análises.

A Amazônia surge como objeto de estudo relacional para Octávio Ianni (1979, 1981) ainda no início da década de 1970. Obra de referência constitui “A luta pela Terra”. Em diversos aspectos este trabalho tem inovações no trato da sociedade amazônica:

(a) constitui um estudo pioneiro de formação das cidades amazônicas, especificamente o autor analisa a formação e desenvolvimento de Conceição do Araguaia, uma das áreas de maior confrontação e disputa social no Brasil.

(b) A conformidade de formas sociais que se relacionam ao poder fundiário e a lógica estatal;

(c) o papel que a ditadura militar representa para organizar os interesses fundiários brasileiros e sua intervenção no espaço amazônico;

(d) a conformação histórica do campesinato e

(e) as condições de luta e violência no campo.

A conformação de cidades ou núcleos de aglomeração populacional são diversas, sendo que no caso amazônico os núcleos clássicos advindos da ocupação colonial e do escravismo indígena são centrais. Conceição do Araguaia, como relata Octávio Ianni (1978, p. 233) advém desta forma histórica, sendo que nas suas origens “a terra era farta e disponível; sobrava para quem quisesse; era devoluta ou tribal, o que era quase a mesma coisa, para os cristãos que chegavam”.

A ocupação territorial colonial sempre se traduz em três violências: o uso escravocrata da população nativa, mesmo que, no caso brasileiro, camuflada com a ideologia religiosa do poder Católico; a redução cultural das populações dominadas com a supressão de suas referências linguísticas e, por fim, o extermínio físico das referidas populações (genocídio).

O padrão de crescimento populacional, principalmente pensando o atrator migratório, como lembra ainda Octávio Ianni (1978, p. 157) se referindo ao período entre 1960 e 1970 a população local, ele trata de Conceição do Araguaia, mas isso é aplicável a outras áreas da Amazônia, “aumentou quase cinco vezes (…) principalmente por efeito da imigração de trabalhadores rurais provenientes das zonas rurais do Nordeste, Goiás, Minas e outras que havia superpopulação, ou superexploração, de trabalhadores”.

Na origem e permanência da formação social moderna amazônica está o Estado e o Capital. Conceição do Araguaia é um exemplo tipológico tratado por nosso autor. A origem do “arraial” do Araguaia está na exploração extrativista da borracha. A trama histórica que remonta ao século da borracha (1820/1920) é principalmente a trama de desfazimento de povos milenares estabelecidos no solo amazônico, mas também a constituição de formas de exploração arcaicas tão adequadas a acumulação primitiva de capital, trata-se especificamente do aviamento e de como as formas de exploração por dívida já se enredavam com circuitos financeiros que uniam seringalistas (patrões), tradings de comércio de borracha, bancos ingleses e, na ponta, os trabalhadores explorados na forma de aviamento, os seringueiros.

Vale observar que parte importante dos seringueiros do primeiro ciclo da borracha eram nativos, indígenas de diversas nações: Ticunas, Kaapós, Karajás, Oagoas. Nações que irão desaparecer já no período analisado por Ianni e na trilha de estabelecimento da fronteira de expansão amazônica.

O período que se inaugura com a ditadura empresarial-militar de 1964 demarca um novo e extensivo momento de ocupação capitalista e agrária na Amazônia, sendo que Octávio Ianni (1981) sinaliza corretamente, em outro texto importante, que o poder estatal favoreceu e protegeu a “concentração e a centralização do capital, propiciando a transição decisiva da economia amplamente dominada pelo capital monopolista”.

A política econômica da ditadura foi decisiva para o fortalecimento do agronegócio e da conformação de uma burguesia agrária internacionalizada, sendo o processo de apropriação fundiária de amplas áreas amazônicas parte desta convergência entre tecnocracia estatal e interesses do grande capital. Vale anotar que Octávio Ianni marca o surgimento da Sudam (1966) como marco central do processo de mercantilização da terra na Amazônia.

Octávio Ianni (1979, p. 47) observa que a “inclusão da agricultura, em geral, na política governamental de exportação a qualquer custo, levou o poder estatal a favorecer, sob todas as formas, os negócios das empresas que se criavam ou estavam funcionando no setor”. O agronegócio se torna um dos centros estratégicos, tanto estabelecendo uma base centrada na produção primária-exportadora, quanto tornando as regras de controle fundiário como parte de fortalecimento e reorganização da burguesia agrária brasileira.

Aspecto destacado por Octávio Ianni (1979, p. 159) é que a ditadura favorece “a monopolização das terras pelos capitalistas nacionais ou estrangeiros. A terra é transformada em mercadoria, objeto e meio de produção de valores de troca, colocada no circuito da reprodução do capital, como propriedade privada, principalmente da grande empresa estimulada e protegida pelo poder estatal”.

Duas observações:

(i)      a “terra enquanto mercadoria” implica um capital fictício próprio para especulação, algo que somente se impulsionará nas décadas seguintes e

(ii)      a renda Fundiária organizará a dinâmica do mercado de terras e da disputa pelos direitos de propriedade, com os óbvios conflitos e extermínio de indivíduos e populações, originárias ou migratórias.

Assim as contribuições de Octávio Ianni podem nos auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira e que podemos sintetizar em oito vetores relacionais:

(a) característica de propriedade e posse dos estabelecimentos rurais;

(b) dimensões médias dos estabelecimentos;

(c) tipo, dimensionamento e apropriação de renda fundiária (absoluta e diferencial);

(d) principais arranjos produtivos e base reprodutiva principal (capitalista, semi-capitalista, campesina);

(e) padrão e forma de intervenção estatal;

(f) conflitos sociais pela terra;

(g) grau de impacto ambiental e

(h) padrão de crescimento populacional e relação rural-urbano.

A interatividade entre os aspectos assinalados a fim de analisar mais detidamente e repor o debate da questão agrária na atual conjuntura de expansão do agronegócio e crise social brasileira vale muito o retorno ao professor Octavio Ianni.

 

Fonte: Por José Raimundo Trindade, em A Terra é Redonda

 

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