Nuno Vasconcellos: ‘O melhor amigo do
mercado’
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não deixa passar
uma única oportunidade de falar mal dos
banqueiros. Sempre que pode, aponta sua metralhadora verbal para eles e
os trata como se o tal “mercado financeiro” não passasse de uma quadrilha. Oude
um monte de gente ardilosa, que age na calada da noite com a intenção
deliberada de tirar o pão da boca dos pobres.
Publicidade
Nessas últimas
semanas, então, Lula tem usado e abusado do direito de atacar esse pessoal. Na
quarta-feira da semana retrasada, dia 26 de junho, por exemplo, em entrevista
ao portal UOL, o presidente direcionou suas críticas à Faria Lima, a avenida de
São Paulo que concentra os maiores e mais vorazes operadores financeiros do
país.
“A Faria Lima tem
alguém que quer mais bem ao Brasil do que eu? Que tem interesse de melhorar a
vida do povo mais do que eu?”, perguntou o presidente. “Vamos ser francos!
Vocês acham que quando eles estão discutindo o aumento da taxa de juros eles
estão pensando no cara que está dormindo debaixo de uma ponte? No cara que está
morrendo de fome?” A reação do “mercado” às críticas do presidente foi
instantânea. E provocou nas mesas de câmbio das corretoras um frenesi e gerou
na cotação do dólar uma elevação que teve início antes mesmo do conteúdo da
entrevista ser conhecido na íntegra.
As críticas tinham
como alvo específico o comportamento do mercado de câmbio que, pelo que se
deduz ao ouvir as palavras do presidente, vem sendo manipulado pelos banqueiros
com o objetivo de lesar o povo. Na véspera dessa declaração, cada dólar era
negociado, de acordo com os dados do Banco Central, por R$ 5,43. Ao final da
quarta-feira em que Lula disparou contra a turma “da Faria Lima”, a cotação
bateu em R$ 5,51, uma desvalorização de quase 1,5% em um único dia.
A alta prosseguiu nos
dias seguintes, sempre atribuída às
declarações de Lula — que não recuou nem mesmo depois de ter sido
alertado por assessores sobre o efeito de seus ataques constantes sobre a
cotação da moeda. Na semana passada, o presidente esteve em Salvador para
comemorar o 2 de julho, data da independência da Bahia, e anunciar a liberação
de R$ 4 bilhões em obras do PAC no estado. Mais uma vez, não poupou críticas ao
“mercado” e, mais uma vez, acotação da moeda americana subiu no ritmo de suas
declarações. “Não tenho que prestar contas a nenhum ricaço ou banqueiro deste
país, mas ao povo pobre e trabalhador”, disse. O presidente anunciou ali que
não tem a menor intenção decortar gastos com programas sociais — o que bastou
para elevar a cotação da moeda norte-americana paraR$ 5,67 na terça-feira, dia
2 de julho...
Em defesa do
presidente e do próprio “mercado”, é importante dizer que o Brasil não é o
único país que, neste momento, vê sua moeda perder valor diante do dólar. Os
juros nos Estados Unidos estão mais elevados do que estiveram nos anos
anteriores e isso tem atraído para a maior economia do mundo uma parte dos
recursos que os investidores internacionais antes utilizavam para buscar lucros
em economias de juros estratosféricos, como é o caso do Brasil. Isso reduz o
estoque de dólares disponíveis e faz dele uma moedamais cara no mundo inteiro.
Mas o Brasil tem se
destacado nessa corrida. Um levantamento da consultoria Austin Ratingfeito com
base em dados do Banco Central e publicado na segunda-feira passada pelo portal
Poder 360, mostra que, no primeiro semestre deste ano, entre todas as moedas do
mundo, o Real foi a quinta que mais perdeu valor frente ao dólar. O problema
não é nem tanto a posição que o país ocupa — mas com quem ele divide os
primeiros lugares do ranking.
Em primeiro lugar está
a Naira, moeda da Nigéria, com 42,3% de desvalorização. Em segundo, a libra do
Egito, com 36%. A libra do Sudão do Sul vem em terceiro, com 29,8%. Gana, com
seu Cede, surge em quarto lugar, com 21,6%. Em quinto lugar, o Real brasileiro
teve uma desvalorização de 13,4% no período — à frente do Iene japonês (12,4%)
e do combalido Peso Argentino (11,6%).
Acontece, porém, que
entre todas as moedas que perderam valor frente ao dólar, o Real deve ser a
única que teve sua queda estimulada por declarações do próprio presidente da
República. É por essas e outras que, na avenida Faria Lima, em São Paulo,
comenta-se que Lula pode até não gostar dos ricaços nem dos banqueiros. Mas
eles adoram Lula. Sempre que o presidente abre a boca para criticá-los, os
ricaços ficam mais ricaços e os banqueiros veem seus lucros aumentarem ainda
mais.
OFERTA E PROCURA
Até a turma do
agronegócio, outro pessoal que sempre foi tratado como inimigo pelo presidente,
esfrega as mãos de felicidade toda vez que uma declaração de Lula repercute no
câmbio e eleva a cotação do dólar. O que eles ganham com isso? Elementar: todo
exportador adora quando o Real se desvaloriza em relação ao dólar. Assim,
eleprecisa gastar uma quantidade menor dos dólares que recebe em troca da soja,
do milho e da carne que vende no exterior para cobrir as despesas fixas em
reais com a produção no Brasil.
São razões como essa
que fazem cada palavra do presidente contra o “mercado” soar como uma nota
musical aos ouvidos dos operadores desse mesmo “mercado”. Juntas, essas notas
formam uma sinfonia que os estimula a agir conforme sua própria natureza. Para
eles, não importa se o governo é de esquerda, de direita ou de centro. O
“mercado” não tem ideologia, tem interesses. E ele sempre encontra uma maneira
de se apoiar nas expectativas de quem deseja manter seu dinheiro a salvo das
intervenções estatais e, assim, obter lucros extraordinários quando tudo à sua
volta parece desmoronar.
Atenção! O mercado não
faz isso apenas para proteger o dinheiro dos banqueiros e dos ricaços — mas
também os recursos da classe média, das pequenas empresas, dos fundos de
aposentadoria e de todos os que desejam proteger sua poupança da desvalorização
causada pela inflação.
Não estamos falando de
uma terra de ninguém. Os movimentos do “mercado” são fiscalizados pelas
autoridades e os impostos que ele recolhe ajudam a bancar a voracidade da
máquina estatal. Ele busca, e nesse ponto o presidente está certíssimo, o maior
lucro possível. Mas não age dessa maneira porque é malvado ou sem escrúpulos.
Ele age porque é assim que ele funciona em Nova York, em Londres, em Hong Kong
ou em qualquer outro lugar. Em todo lugar do mundo, especular faz parte da
essência do mercado.
Portanto, cada vez que
o presidente dá uma declaração que facilita a especulação, o “mercado”
agradece. Sempre que ele se recusa a discutir a necessidade de redução dos
gastos correntes do Estado, ele está sinalizando que continuará se endividando
para fechar suas contas. Declarações como essa geram o receio de que o governo
amplie o gasto do dinheiro público, como se não houvesse limite fiscal a ser
respeitado. Isso estimularia a inflação e reduziria o poder de compra do Real.
Numa hora como essa, os investidores recorrem ao dólar para proteger o valor de
seus recursos.
A cada crítica ele que
faz ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto e, pior do que isso, a
cada insinuação de que, depois da troca de comando no BC, no final deste ano, a
instituição seguirá a cartilha do governo sobre a definição da taxa de juros,
mais o mercado vai reagir e mais vai especular.
Lula, no entanto,
insiste na mesma tecla. Por mais que seus conselheiros econômicos recomendem
moderação em suas declarações e peçam que ele não brinque com uma fogueira que
não pode controlar, ele volta e meia dá uma bofetada no mercado. Que, ao invés
de responder, oferece a outra face. Ou, numa imagem mais precisa, age como se
estivesse numa competição de judô e usa a força do adversário em seu próprio
benefício.
RECUO TÁTICO
Lula quer porque quer
forçar o presidente do BC a acelerar o processo de redução da taxa básica de
juros no Brasil. Na última reunião do Copom, no dia 19 de junho, conforme já
foi discutido neste espaço, o colegiado que é integrado por todos os diretores
do Banco decidiu, por unanimidade, manter a taxa Selic nos mesmos 10,5%
definidos na reunião anterior, no dia 8 de maio.
No encontro de maio,
os quatro diretores nomeados por Lula defenderam uma redução de meio ponto
percentual — que baixaria a Selic para 10,25%. Os cinco remanescentes do
governo Bolsonaro que ainda estão no BC (no processo de mandatos fixos que deu
autonomia à instituição) insistiram na manutenção da taxa em 10,5%. Assim,
muita gente estranhou a unanimidade que, na reunião seguinte, manteve os juros
nesse patamar.
Na opinião da maioria
dos “analistas”, a decisão unânime do Copom significou a adesão do grupo
“lulista”, liderado pelo economista Gabriel Galipolo, às teses pró-mercado do
grupo que já estava no BC antes da posse do atuial governo e que, segundo Lula,
age sob orientação política de Jair Bolsonaro. Quem acompanhou a situação de
perto, no entanto, percebeu que o movimento realizado pelos quatro lulistas do
Copom está mais para um recuo tático do que para uma capitulação.
Sabendo que não teriam
votos suficientes para promover mais uma redução da taxa neste momento e
sabendo que uma nova divergência no colegiado poderia estimular ainda mais as
manobras especulativas do mercado, Galipolo e os outros três diretores nomeados
por Lula preferiram, desta vez, não bater de frente com os colegas egressos da
gestão anterior. Eles sabiam que, mesmo votando para que a taxa permanecesse
como estava, não seriam responsabilizados e o ônus da decisão recairia
integralmente sobre Campos Neto. Se, ao contrário, insistissem na divergência,
corriam o risco de ser mal-recebidos pelo “mercado” depois de assumir a direção
do BC, no final deste ano.
O problema desse
embate sem sentido é que pode tirar a credibilidade da redução da taxa de juros
que deve acontecer depois da saída de Campos Neto não porque Lula deseja, mas
porque existe espaço para isso. Todo mundo enxergará o movimento como uma
capitulação do BC às pressões de Lula quando, na verdade, existe respaldo
técnico para a medida. Na visão de muitos economistas, a receita adotada por
Campos Neto tem sido, de fato, mais amarga do que o necessário para manter a
inflação sob controle neste momento. E que não haveria qualquer efeito
inflacionário se, no segundo semestre, ao invés de ser mantida em 10,5% até
dezembro, como tudo indica que será, a taxa convergisse para os 9% ao ano que o
próprio “mercado” projetava no início de 2024.
De acordo com os
economistas que pensam dessa forma, não existe no cenário atual nenhuma pressão
causada por aumento de demanda ou por excesso de consumo — e a eficácia da taxa
de juros como antídoto inflacionário consiste exatamente em controlar a procura
exagerada que faz aumentar os preços das mercadorias. Mas, de acordo com quem
acompanha o raciocínio de Lula, a pressão do presidente por uma redução mais
acelerada nos jutos não tem a ver com qualquer preocupação relacionada à
execução da política monetária.
Tudo que parece
interessar ao presidente com a redução da taxa de juros é o impacto que isso
teria sobre a dinheirama que o governo gasta todo mês para rolar sua dívida
mobiliária no mercado financeiro. Segundo cálculos arredondados, cada ponto
percentual de redução da Selic significaria, ao final de um ano, R$ 50 bilhões
que o governo deixaria de usar na rolagem da dívida e que poderiam ser
destinados para bancar gastos públicos.
GATO ESCALDADO
No meio de tudo isso,
está quem de fato interessa— mas que dificilmente tem seus interesses levados
em conta nessa hora. A sociedade brasileira é um gato escaldado em matéria de
inflação e teme a possibilidade de ver voltar o desajuste de preços que existia
antes da entrada em circulação do Real — que, por sinal, completou 30 anos na
semana passada. Porém, ao mesmo tempo em que temea volta do descontrole
inflacionário que a incomodou até 1994, a sociedade espera pelo prometido
crescimento da economia. É por essa razão que, na opinião de um grupo
respeitável de economistas, existe espaço para uma política monetária um pouco
mais ousada do que essa que vem sendo conduzida por Campos Neto. Uma política
que facilite o crescimento econômico e force os bancos a cobrar juros menores
das pessoas e das empresas que precisam de capital para se financiar.
Alguns indicadores
apontam que, de fato, há espaço para um pouco mais de ousadia. A despeito do
impacto das palavras de Lula sobre o câmbio, o país não corre risco de entrar
em colapso nos próximos meses. O dado mais evidente, nesse sentido, diz
respeito às reservas cambiais. Uma situação mais instável geraria evasão de
divisas e as reservas cairiam. O fato, porém, é que elas estão num nível
superior ao que estavam no dia em que o presidente tomou posse. Quando Lula
assumiu, em janeiro de 2023, as reservas cambiais brasileiras eram de US$ 322
bilhões de dólares. Hoje elas são de US$ 355 bilhões.
POPULAÇÃO VULNERÁVEL
Outros indicadores
também ajudam a demonstrar que a situação do país não é tão desesperadora
quanto querem fazer crer os que se apoiam exclusivamente na flutuação do dólar
para dizer que tudo vai de mal a pior. Dias atrás, o IBGE divulgou a taxa de
desemprego referente ao trimestre encerrado no mês de maio. De acordo com o
instituto, a taxa de pessoas em busca de ocupação no país, que era de 8,3% em
maio do ano passado, caiu para 7,1% —a menor desde 2014.
A inflação acumulada
entre janeiro de maio deste ano é de 2,27% pelo IPCA — que é o índice utilizado
pelo Banco Central para efeito de cálculo da meta. Nada indica, pelo menos até
aqui, que o indicador ultrapassará oi limite definido pelo BC para a inflação
deste ano — que está entre 1,5% e 4,5%. Os indicadores mostram que a situação
da inflação está longe de ser desesperadora. Esse é o lado bom da história. O
lado ruim é que os números também mostram que o país está longe de dar a
arrancada de que necessita para gerar mais renda e garantir empregos de melhor
qualidade para a população. E se tornar, enfim, um país desenvolvido.
Para o país crescer e
se desenvolver, não basta contar com indicadores estáveis. Ele precisa, também,
inspirar confiança nos investidores que dispõem de recursos e ousadia
suficientes para abrir empresas, fazer seus negócios crescerem, gerar empregos,
obter lucros, recolher impostos justos, reinvestir parte de seus lucros e
continuar crescendo. Um país próspero e capaz de gerar recursos para investir
no crescimento da população vulnerável até que ela deixe de ser vulnerável e
possa, também, participar do esforço pelo desenvolvimento.
Num cenário como esse,
a situação do Brasil poderia estar melhorse o presidente, ao invés de se manter
em permanente campanha eleitoral, utilizasse seu indiscutível poder de
influenciar as pessoas para liderar o esforço por uma reforma administrativa
capaz de melhorar a qualidade da máquina estatal brasileira. Uma reforma que dê
mais racionalidade aos gastos públicos e não permita que o “mercado” que o
presidente tanto critica receba de bandeja tantas oportunidades para especular.
Oportunidades que são
oferecidas, mais do que pela incontinência verbal do presidente, por um Estado
ineficiente e perdulário que, por não medir o tamanho de seus gastos, está
sempre dependendo do “mercado” para bancá-lo. É difícil imaginar que Lula mude
a ponto de liderar esse processo. Mas, como se diz, sonhar não custa nada.
Fonte: Ultimo Segundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário